A era da "boiada"

Lilian Kingston Freitas
O Veterano
Published in
4 min readFeb 24, 2021
IBAMA

Você sabe o que realmente significa “passar a boiada”? Veja bem, a pergunta não é se já ouviu o dito popular sendo proferido pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ou se já leu – entre aspas, como citação direta do discurso do Ministro – a fraseologia em manchetes de jornal. Em verdade, esse coloquialismo não constava no vocabulário cotidiano de muitos brasileiros até virar notícia de jornal. Diferente de “arroz de festa”, “amigo da onça” e “casa da Mãe Joana”, o dito de Salles não era “pop”.

. Não somente pouco usado, como também ambíguo e enigmático. Assim como “acertar na lata”, que significa tanto um acerto preciso quanto uma adivinhação correta na primeira tentativa de quem adivinha, o “passar a boiada” de Salles pode ter diferentes interpretações. Cabe parafrasear o emprego dado pelo Ministro ao termo, em uma reunião com o Presidente da República, para evidenciar essa ambiguidade:

“Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de Covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento, e simplificando normas.”

No dia seguinte à divulgação do diálogo de Salles e Bolsonaro, todos os grandes jornais brasileiros – O Globo, Folha, Estadão – continham matérias sobre a “boiada”. Para jornalistas, editores e grande parte da população, a impressão passada foi de que o Ministro do Meio Ambiente pretendia flexibilizar as normas ambientais em favor do agronegócio. Entretanto, segundo o falante do dito, ele não foi compreendido corretamente – “Talvez a expressão ‘passando a boiada’, claro que tirada de contexto, pode dar uma impressão de uma coisa, mas o que queria dizer é que tem muita coisa para fazer”.

Ao longo do ano, de fato, muito foi feito. Façamos, brevemente, uma retrospectiva da política ambiental de 2020. Em meados de maio, o Presidente assinou um decreto transferindo do Ministério do Meio Ambiente ao da Agricultura o poder de conceder as florestas nacionais à exploração privada. Em abril, Salles aprovou a adoção de medidas mais brandas de preservação da Mata Atlântica e, também nesse mês, Bolsonaro determinou a necessidade de “audiências de conciliação” entre fiscais e infratores no caso de aplicação de uma multa ambiental.

Embora não haja concordância sobre o significado da fraseologia, os fatos que se sucederam desde a reunião ministerial na qual a mesma surgiu são concretos e indiscutíveis. De forma geral, as ações do Executivo no âmbito ambiental não foram direcionadas para a preservação da valiosa biodiversidade nacional, mas para o favorecimento da exploração privada das áreas de vegetação brasileira nativa, principalmente por atividades agropecuárias e extrativistas.

Contudo, vale recordar as conquistas da política ambiental nacional frente aos eventos recentes, os quais obscurecem as medidas de preservação do passado. A saber, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) completa 32 anos desde sua criação no dia 22 de fevereiro deste ano. Aliás, a instituição desse órgão precede, inclusive, o estabelecimento do Ministério do Meio Ambiente, criado em 1992. Atualmente, o IBAMA atua com a autorização de uso dos recursos naturais e com o licenciamento, a fiscalização, o monitoramento e o controle da qualidade ambiental.

Desde 1989, o órgão acumulou conquistas de muita importância para a preservação da flora, da fauna e dos recursos naturais renováveis brasileiros. Como “polícia ambiental”, apreende com frequência madeireiros ilegais e traficantes de animais. Desempenhando papel de administrador ambiental, estabelece critérios para a gestão do uso de recursos florestais, hídricos, pesqueiros e outros. Como vigilante ambiental, monitora desmatamentos, queimadas e incêndios no país. Mais amplamente, lança diversas propagandas informativas voltadas para a educação ambiental da população.

Entre as campanhas mais conhecidas com apoio do IBAMA está a #ACulpaNãoÉDoMacaco. Essa iniciativa, voltada para desmentir a crença popular de que a febre amarela é transmitida por macacos e evitar o maltrato e extermínio dos primatas no país, teve grande visibilidade. Efetivamente, contribuiu para a desvinculação do animal e da doença por parte do público e, assim, minorar os índices de crime ambiental de agressão à fauna.

Atualmente, entre os diversos problemas ambientais brasileiros, um dos mais sérios é o deflorestamento ilegal. Nesse sentido, seria interessante o IBAMA lançar uma campanha de conscientização popular que incentiva a verificação das origens da madeira usada na mobília caseira, como #CompreCadeirasComConsciência. Caso as propagandas fossem um sucesso em estimular consumidores brasileiros a investigar a origem da madeira de suas aquisições de mobília, teríamos um suspiro de bom senso na condução da política ambiental em tempos da “era da “boiada”” de Ricardo Salles.

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