A Justiça Militar no Brasil

Bianka Chácara
O Veterano
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6 min readAug 10, 2022

Em setembro de 2021, ocorreu a 21ª sessão do Comitê sobre Desaparecidos Forçados da Organização das Nações Unidas (ONU), que tratou especialmente dos casos brasileiro, francês, panamenho e espanhol. Através do documento Concluding observations on the report submitted by Brazil under article 29 (1) of the Convention, disponibilizado no dia 03 de novembro de 2021, a ONU sugere diversas medidas que podem contribuir para uma mais efetiva investigação sobre os casos de pessoas desaparecidas, sendo uma delas o reconhecimento de que tribunais militares não possuem competência para investigar e julgar casos de desaparecimento em que militares são suspeitos. De acordo com a entidade, esses processos devem ser levados à justiça comum.

No relatório, destaca-se uma ocorrência de 2018, em que foi determinado que o processo que apurava o desaparecimento do baiano Davi Fiúza seria cuidado pela Justiça Militar. Tal decisão foi tomada pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, com base na Lei 13.491/17, de outubro de 2017, que diz que “todos os crimes cometidos por policiais militares serão julgados pela Justiça Militar, com exceção de homicídios, que continuam na justiça comum”. Tendo o Ministério Público da Bahia (MP-BA) denunciado sete policiais militares, torna-se muito conveniente o julgamento da Justiça Militar para os culpados, levando em consideração o forte corporativismo e o recorrente “acobertamento” presentes da instituição.

Sobre a Justiça Militar da União, vale lembrar que ela não só foi a primeira instituição jurídica a ser estabelecida no país, mas também foi a Justiça principal da ditadura militar no Brasil, podendo acusar ou absolver tanto civis quanto militares por crimes políticos e militares. Porém, nos dias atuais de Estado Democrático de Direito e de paz, a Justiça castrense já não é mais tão relevante quanto já foi do ponto de vista político e, com essa decadência, só lhe resta ser uma Justiça especializada corporativista para se sustentar, o que acaba afetando seu julgamento.

Outro caso envolvendo militares ocorreu em abril de 2019, data em que o músico e segurança Evaldo Rosa dos Santos e o catador de recicláveis Luciano Macedo foram vítimas de disparos de fuzis militares no Rio de Janeiro. Foram contabilizados 257 tiros no local, tendo mais de 80 no carro de Evaldo. Com 12 militares sendo denunciados em maio de 2019, não é de se admirar que o caso foi adiado 3 vezes e que só ganhou uma sentença no dia 13 de outubro de 2021, quando 10 integrantes do 1º Batalhão de Infantaria Motorizado foram presos. É claro, não sem, num primeiro momento, o Comando Militar do Leste sugerir que os militares foram vítimas de uma ‘agressão’, sugestão essa refutada pelos familiares de Evaldo.

O julgamento feito pela Justiça Militar condenou 8 dos 12 militares: 7 praças a 28 anos de prisão e um tenente a 31 anos e meio de prisão. Os outros 4 militares foram retirados das acusações feitas pelo Ministério Público Militar. Entretanto, todos permanecem em liberdade, esperando há meses o julgamento dos recursos. E a família de Evaldo espera há anos pela real justiça.

Além disso, estão esperando uma decisão final a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 289 e as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 5032 e 5901 — processos em trâmite no Superior Tribunal Federal (STF) contra a Justiça Militar. A primeira se trata da limitação à atuação dos tribunais militares, tirando-lhes o poder de julgar civis em tempos de paz. A petição foi apresentada pela Procuradoria-Geral da República em 2013, incluída no cronograma de julgamento pela primeira vez em junho de 2019 e retirada quatro meses depois. Em 2021, foi novamente incluída na pauta de julgamento prevista para 21 de outubro desse mesmo ano. Entretanto, foi adiada por mais 6 dias, acontecendo no dia 27 de outubro de 2021 para inclusão de algumas instituições como amicus curiae (amigos da corte — “terceiro que ingressa no processo com a função de fornecer subsídios ao órgão julgador”, pela definição do Superior Tribunal de Justiça). Depois disso, a petição foi incluída mais duas vezes no cronograma de julgamento, não ocorrendo na primeira data marcada e, por fim, sendo retirada do calendário.

Também iniciada em 2013, a ADI 5032 pede que militares das Forças Armadas que cometem crimes em ações militares atípicas, como as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op. GLO), sejam julgados pela Justiça comum, e não pela militar. O processo não foi adicionado para ser julgado no próximo cronograma do STF.

Já a ADI 5901 foi iniciada em 2018 e questiona, principalmente, a sanção da Lei 13.491/2017, que transfere a competência de investigar e julgar crimes cometidos por militares somente para a Justiça Militar, retirando de vez a participação da Justiça Comum desses processos. Antes, os casos em que militares eram acusados de crimes em tempos de paz eram investigados e julgados pelos dois âmbitos do Judiciário. Atualmente, a ADI 5091, assim como os outros dois processos, segue sem uma palavra final e sem um próximo julgamento marcado.

Outro ponto a ser levado em consideração quando se fala sobre Justiça Militar é a sua incapacidade em atender plenamente a demanda de sua clientela. Militares ainda disputam a atenção da Justiça comum para seus casos envolvendo problemas administrativos nos quartéis. A dita “justiça do comandante” pode não lhes parecer tão justa, e recorrer ao STM não acarretará numa solução para seu problema. Abusos de poder e assédio moral nos quartéis não são levados para os tribunais militares. Se as patentes mais baixas se sentirem injustiçadas, só lhes resta aceitar ou recorrer à justiça comum, já que, mesmo o direito à dignidade sendo garantido por lei, os métodos de disciplina aplicados pelos comandantes devem ser mantidos e aceitos, não importando o quão extremos possam ser.

Já sobre os casos que são tratados diretamente pela Justiça Militar, a pesquisadora Maria Celina D’Araujo afirma que “quase 60% dos trabalhos de nosso Tribunal Militar (…) dizem respeito a crimes tipicamente juvenis ou a crimes correntes na sociedade em geral”, ou seja, crimes que poderiam ser tratados pela Justiça comum. Ademais, há a possibilidade de civis, acusados de cometerem crimes contra as instituições militares, serem julgados pela justiça castrense, ação eticamente questionável devido à diferença de rigor na disciplina e na hierarquia entre os âmbitos militar e civil.

A situação nos leva a perguntar: mesmo que o ramo militar esteja intrinsecamente ligado à política e à história política brasileira, vale a pena continuar sustentando instituições tão custosas e de ações questionáveis à nação somente para manter os privilégios de uma minoria? Por que não investir esse dinheiro em outras áreas sob o cuidado público?

Referências:

ADI 5032: crimes cometidos por militares devem ser processados pela Justiça Civil. Conectas, 2022. Disponível em: https://www.conectas.org/litigiopt/adi-5032-crimes-cometidos-por-militares-devem-ser-processados-pela-justica-civil/. Acesso em 25 de julho de 2022.

ADI 5901: as competências da Justiça Militar. Conectas, 2021. Disponível em: https://www.conectas.org/litigiopt/as-competencias-da-justica-militar/. Acesso em 26 de julho de 2022.

Justiça Militar não pode investigar casos de desaparecimento forçado, afirma relatório da ONU sobre Brasil. Conectas, 2021. Disponível em : https://www.conectas.org/noticias/justica-militar-nao-pode-investigar-casos-de-desaparecimento-forcado-afirma-relatorio-da-onu-sobre-brasil/. Acesso em 26 de março de 2022.

Concluding observations on the report submitted by Brazil under article 29 (1) of the Convention. Organização das Nações Unidas, 2021. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CED%2fC%2fBRA%2fCO%2f1&Lang=en. Acesso em 26 de março de 2022.

HORTÉLIO, Marina. Audiência do caso Davi Fiúza é marcada para abril de 2020. Correio, 2019. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/audiencia-do-caso-davi-fiuza-e-marcada-para-abril-de-2020/. Acesso em 27 de março de 2022

Justiça julga 12 militares do Exército por morte de músico com 80 tiros no Rio. CNN Brasil, 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/10/4954882-justica-julga-12-militares-do-exercito-por-morte-de-musico-com-80-tiros-no-rio.html. Acesso em 27 de abril de 2022

PIERRE, Eduardo e COELHO, Henrique. G1, 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/10/14/caso-guadalupe-condenados.ghtml. Acesso em 26 de maio de 2022.

SATRIANO, Nicolás. STM rejeita anular julgamento de militares condenados por mortes de músico e catador em Guadalupe. G1, 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/11/stm-rejeita-anular-julgamento-de-militares-condenados-por-morte-de-musico-e-catador-em-guadalupe.ghtml. Acesso em 26 de maio de 2022.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo Tribunal Federal, 2022. Detalhes do trâmite da ADPF 289. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4448028. Acesso em 25 de julho de 2022.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo Tribunal Federal, 2022. Detalhes do trâmite da ADI 5032. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4451226. Acesso em 25 de julho de 2022.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo Tribunal Federal, 2022. Detalhes do trâmite da ADI 5901. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5359950. Acesso em 25 de julho de 2022.

Os amigos da corte: requisitos para admissão, funções e limites, segundo a jurisprudência do STJ. Superior Tribunal de Justiça, 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/22082021-Os-amigos-da-corte-requisitos-para-admissao--funcoes-e-limites--segundo-a-jurisprudencia-do-STJ.aspx#:~:text=%E2%80%8B%E2%80%8BAmicus%20curiae%20. Acesso em 03 de agosto de 2022.

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Bianka Chácara
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