A nova cédula do real

Lilian Kingston Freitas
O Veterano
Published in
8 min readAug 3, 2020
Foto disponível em Pixabay

A discordância caracteriza o debate econômico. De fato, o desacordo é tão comum que invalida a máxima de Hamlet, “Ser ou não ser: eis a questão”. Em verdade, não há somente um grande questionamento – trade-off – nas ciências econômicas, mas vários: se o Estado deve ou não intervir, como a taxa de juros e a inflação estão correlacionados, se a economia independe da política, entre outros. Embora a divergência seja inerente aos estudos econômicos, em discussões acerca de teorias contrastantes, a polarização realmente evidencia-se na política econômica. Por certo, a vastidão de opiniões discordantes manifestadas em resposta às novas leis tributárias implementadas por Paulo Guedes e sua equipe demonstram claramente a existência de posicionamentos econômicos divergentes entre a população – e na própria academia. Assim também, igualmente polarizada, foi a reação à mais recente medida monetária anunciada: a criação da nota de duzentos reais.

Por um lado, muitos estão de acordo com o momento de crise atual ser ideal para a implementação da nova cédula, que diminuirá os custos de fabricação e as dificuldades logísticas de distribuição monetária. Por outro, a medida foi criticada por apresentar uma inconveniência na questão do troco em comércios, facilitar a corrupção, simbolizar períodos de inflação anormal e contrastar com a tendência mundial de diminuição do uso do papel-moeda para transações. Além da disparidade de opiniões quanto à pertinência da nova medida, a população expressou pontos de vista diferentes acerca de qual personagem deveria ser homenageado como ilustração da nota.

O posicionamento do Banco Central

No dia 29 de julho, a diretora do Banco Central do Brasil, Carolina de Assis Barros, conduziu a coletiva de apresentação da nova nota do real. Em seu pronunciamento, revelou que a emissão da nota de duzentos reais já estava há tempo em discussão e expôs o cenário de crise econômica atual como um momento oportuno para o lançamento da nova cédula. Segundo a diretora do BC, é uma ação preventiva em resposta ao aumento da procura por numerário. Realmente, tal alargamento da demanda por “dinheiro vivo” comprovadamente ocorreu neste ano no Brasil. A saber, o dinheiro em espécie nas mãos da população aumentou em 61 bilhões de reais no período de março a julho, segundo o BCB. Em explicação para esse fenômeno, são apontados o entesouramento e o Auxílio Emergencial como motivos principais.

Gráfico apresentado em anúncio oficial do BCB, disponível no Youtube

Tipicamente, pessoas tendem a guardar dinheiro em casa em momentos de crise como garantia, segundo Fernando Rocha, analista do BCB. Essa ocorrência, “guardar dinheiro debaixo do colchão”, chama-se entesouramento, no jargão econômico. Na crise atual, o aumento de saques por pessoas e empresas para a formação de reservas e a diminuição de gastos no comércio em geral provocaram o crescimento do papel-moeda em poder público (PMPP), isto é, aumentou a quantidade de dinheiro retido nas mãos da população, não depositado em bancos. Além disso, os saques do Auxílio Emergencial contribuíram de forma incisiva no acréscimo de demanda por “dinheiro vivo”, e a lentidão inesperada do retorno dessa renda ao sistema bancário implica na ampliação da retenção de cédulas pela população.

Assim, o lançamento da nota de duzentos reais é apontado como uma resposta ao aumento da demanda popular por meio circundante. Segundo a diretora do BCB, “Se [a demanda] existe, a gente precisa atender. A gente não sabe por quanto tempo essa demanda adicional por dinheiro vai durar”. Quando a população voltar a devolver o dinheiro ao sistema bancário na velocidade esperada, será ajustada, segundo Carolina Barros, a quantidade de notas emitidas.

Ademais, em defesa da cédula de duzentos reais, são apresentados os argumentos da redução de custos na impressão de papel-moeda e a facilitação da logística de distribuição monetária. Bem como o lançamento da nota de dois reais, a emissão da nova cédula pode diminuir a quantidade de notas usadas em transações feitas com dinheiro em espécie. Dessa forma, acarreta em uma poupança de gastos governamentais nas casas de impressão. Tal qual a nota de dois reais, equivalente a duas de um real, a cédula de duzentos, correspondente a duas de cem, gera, também, uma economia na distribuição dessas cédulas. Tanto a redução de custos de impressão quanto de logística contribuem para uma maior poupança de recursos estatais.

As críticas

Embora haja validade nas justificativas do Banco Central do Brasil para o lançamento de uma cédula de duzentos reais, é muito raro que uma medida econômica não seja contestada. Nesse caso, as principais objeções concernem à distribuição de troco, à lavagem de dinheiro e à tendência mundial de ampliação de pagamentos por vias digitais. Além dessas, também são preocupações a possibilidade de falsificação, o cenário de insegurança brasileiro e a memória da época hiperinflacionária na história recente do país.

Quanto à. inflação, tanto a diretora de apresentação do BCB, Carolina de Assis Barros, quanto o analista Fernando Rocha, asseguram que a inflação não. está relacionada ao lançamento da cédula. De fato, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA 15) está estável no momento presente. De fato, depois da divulgação do IPCA em 15 de julho, a projeção da inflação para 2020 passou de 1,72% para 1,67%. Ainda assim, a emissão de uma nova denominação desperta, em parte da população que experienciou a hiperinflação brasileira do período precedente à criação do Plano Real, um efeito psicológico: o medo da desvalorização da moeda nacional e seus resultados perversos.

Como um dos idealizadores do plano econômico que impôs um fim à inflação desenfreada no Brasil, além de ser ex-presidente do Banco Central, o economista Gustavo Franco é uma personalidade pública, e suas opiniões têm amplo alcance social. Sobre o lançamento da nova cédula, sua reação foi crítica e irônica: “Estava mesmo muito fácil achar troco para a nota de R$ 100. Às vezes, a coisa mais difícil em Brasília é não fazer nada”. Indiscutivelmente, clientes e comerciantes terão dificuldade de conseguir trocar uma nota de valor tão elevado, considerando as adversidades já existentes na questão do troco – muitos estabelecimentos comerciais sequer aceitam as notas de cem reais, embora alguns setores sejam legalmente obrigados a tal.

Não só o uso da nova cédula será difícil, como perigoso. No cenário de crimes e violência característico do Brasil, principalmente das grandes cidades, muitos desenvolvem estratégias para evitar grandes perdas financeiras caso sejam assaltados – desde ir ao Carnaval com pochetes, para dificultar o furto de itens de seus bolsos, a carregar uma falsa carteira, com algumas notas de pequeno valor, para evitar o roubo de suas carteiras reais. Tendo isso em vista, a maioria dos brasileiros não costuma andar nas ruas carregando notas de cem reais, muito menos andará confortavelmente portando as novas cédulas de duzentos reais.

Mais uma preocupação concernente à criminalidade brasileira é a possibilidade de falsificação. Como afirmado pela própria diretoria do BCB, “quanto maior o valor [da cédula], maior a preocupação”. Desde 2010, com a circulação da segunda família do real, modelos de notas novos com elementos de segurança mais modernos, a identificação de notas fraudulentas tornou-se mais fácil. No entanto, a confecção de cédulas falsas ainda é uma contingência, e as perdas vinculadas à circulação de uma falsa nota de duzentos reais são consideravelmente maiores que aquelas associadas com notas de valores menores.

Ainda, a existência de uma cédula de valor mais elevado facilita a lavagem de dinheiro, frequentemente realizada com “dinheiro vivo”. Nos últimos anos, a ocorrência de crimes dessa categoria foi evidenciada na Operação Lava Jato, durante a qual recorrentes reportagens sobre políticos e empresários com dinheiro em espécie escondido em suas propriedades foram publicadas. Tendo isso em vista, o presidente Jair Bolsonaro chegou a sugerir, em junho do ano passado, a troca de todas as cédulas de cinquenta e de cem reais em circulação no país, como uma forma de combate à. corrupção. Embora a sugestão presidencial não tenha sido levada a sério, a existência de notas de maior valor, de fato, aumenta a facilidade do esconderijo e transporte de valores mais elevados, apresentando, assim, a perspectiva de favorecer a lavagem de dinheiro.

Essa foi uma das razões para a retirada da nota de 500 euros de circulação dentre os países da União Europeia. Segundo o Banco Central Europeu, a cédula era usada principalmente pelo crime organizado para lavar dinheiro. De fato, a tendência observada no âmbito mundial é a restrição do uso do “dinheiro vivo” e o incentivo de transações digitais. Frente ao uso de cédulas, os pagamentos realizados de forma digital deixam mais rastros, favorecendo o combate à lavagem de dinheiro e à destinação ilícita da renda.

Além de ser uma tática para combater a corrupção, há ainda mais um benefício associado ao incentivo à realização de transações digitais: a economia na impressão de papel-moeda e em sua logística de distribuição. Tais vantagens são, também, apresentadas pelo Banco Central do Brasil como propulsoras da criação da nota de duzentos reais, potencial facilitador da lavagem de dinheiro. Por que, então, o Brasil não segue a tendência mundial de criar mecanismos para propiciar a ocorrência de transações digitais no país, ao invés de lançar uma nova cédula de valor mais elevado?

O lobo-guará ou o vira-lata?

Além de muitas discussões econômicas, o anúncio da nova cédula despertou um debate nas redes sociais sobre qual deveria ser a figura representada na nota. Segundo a diretora do Banco Central do Brasil, a escolha do lobo-guará é resultado de uma pesquisa realizada em 2001, na qual a população teve a oportunidade de expressar sua opinião acerca de quais animais brasileiros gostaria de ver estampados nas cédulas em circulação. A tartaruga-marinha e o mico-leão-dourado, os respectivos primeiro e segundo colocados na votação, atualmente ilustram as notas de dois e de vinte reais, respectivamente. Já o terceiro colocado, o lobo-guará, irá estampar a nova cédula de duzentos reais.

Foto disponível em Depositphotos

No entanto, será uma votação realizada há dezenove anos a melhor indicação da vontade popular no momento presente? Considerando as opiniões expressadas nas redes sociais, a população atual não identifica o lobo-guará como o personagem mais apropriado para a nova nota. Dentre os muitos candidatos apontados no Twitter, estão Anitta, Pabllo Vittar e Neymar. Nenhuma dessas nomeações, entretanto, recebeu tanto apoio quanto à indicação do vira-lata caramelo. Afinal, ele “representa. o Brasil mais que samba e futebol”.

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