A opinião pública e a Janela de Overton

O inaceitável é o novo aceitável?

Gabriel Thomas
O Veterano
6 min readSep 17, 2020

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Fonte: Agência Brasil / CC BY (https://creativecommons.org/licenses/by/2.0)

Qualquer pessoa que esteja atenta às notícias percebeu que houve, nos últimos 10 anos, uma mudança de temperatura no debate político. Seja nas pautas que entram em discussão, na forma como elas são abordadas ou então em quem venceu nas urnas, percebe-se que alguma coisa mudou. Há 10 anos, o Brasil elegia, pela primeira vez, uma mulher para ocupar a presidência da República; já em 2018, ganhava a eleição presidencial um candidato repetidamente acusado de atitudes machistas. Há 8 anos, a interrupção induzida de uma gravidez nos casos de feto anencefálico foi descriminalizada por meio da ADPF 14; já em 2020, ganhou bastante espaço na mídia a visão de que uma criança de 10 anos não poderia interromper uma gravidez decorrente de um estupro. Essa dicotomia entre mentalidades mais progressistas e mais conservadoras pode ser entendida através da chamada Janela de Overton.

Antes de entender formalmente esse conceito, é interessante relembrar um teste de preferências políticas que ganhou bastante destaque entre os internautas nos últimos anos: o ‘Political Compass’. Os resultados desse teste são avaliados em um diagrama político de duas dimensões que determina como o usuário pensa em questões econômicas e sociais. A escala econômica se refere ao grau de controle da economia por um planejador central imaginário, indo da Esquerda à Direita. Já a escala social diz respeito a quanto de interferência do governo deveria haver na vida pessoal dos indivíduos, indo do espectro Autoritário ao Libertário.

Fonte: Pinkpinkpin / CC BY-SA (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0)

Apesar das críticas ao reducionismo que esse teste apresentaria, ele é um reflexo das opiniões políticas de um indivíduo de forma perspectivada; isto é, como a sua visão pessoal estaria posicionada no espectro político em relação às demais visões defendidas mundo afora. A Janela de Overton pode ser entendida como a reunião dos pontos desse diagrama político que são socialmente aceitáveis pela opinião pública.

Elaborado pelo cientista político Joe Overton enquanto vice-presidente do Centro de Políticas Públicas de Mackinac, o conceito de Janela de Overton (ou Janela de Discurso) funciona como um modelo para entender como as ideias e as opiniões se transformam ao longo do tempo — ganhando mais ou menos popularidade — e como acabam por influenciar a política. Partindo do princípio de que a aceitação ou não de uma mesma opinião depende muito mais do contexto em que ela é defendida do que do conteúdo em si, Overton cria classificações temporárias para as ideias: inimagináveis, radicais, aceitáveis, sensatas, populares e, finalmente, a sua transformação em política pública. Overton percebe também que as ideias podem ter dois sentidos: ‘mais liberdade’ ou ‘menos liberdade’ (equivalentemente, ‘menos Estado’ ou ‘mais Estado’). Assim, políticos geralmente se sustentam na defesa de ideias dentro da Janela de Discurso, pois essas são vistas pela maioria da população como legítimas de se tornarem políticas públicas eventualmente.

Fonte: Hydrargyrum / CC BY-SA (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0)

Dado que a aceitação ou não de uma ideia é fruto do contexto em que ela é defendida, entende-se que a Janela de Overton se desloca ao longo do tempo nesse eixo de mais/menos liberdade de acordo com o termômetro de opiniões da sociedade. Esse termômetro, por sua vez, é determinado pela lenta evolução de valores sociais. Ademais, a Janela de Overton pode, ainda, aumentar de tamanho. Esse é o caso nas situações de polarização, quando grupos com visões muito distintas convivem, de modo a gerar turbulência e conflito político.

Como a Janela de Discurso explica a mudança na opinião pública nos últimos dez anos que deu mais espaço para visões conservadoras? James A. Lindsay e Peter Boghossian entendem que esse fenômeno se explicaria por uma quebra da tal Janela.

Nesses últimos dez anos, o mundo assistiu a episódios que não estavam dentro do espectro do aceitável até então. No caso brasileiro, por exemplo, ganhou a eleição presidencial de 2018 Jair Messias Bolsonaro, o candidato que utilizou como estratégia de campanha para aumentar sua popularidade o não comparecimento aos debates promovidos pela imprensa. No entanto, o que se veria em um momento de normalidade política seria o fim das aspirações ao cargo de presidente por parte de qualquer candidato que agisse dessa forma, pois a opinião pública o condenaria. Nesse sentido, esse seria um reflexo da quebra da Janela de Overton: o inaceitável tornou-se política de campanha do dia para a noite.

Para James A. Lindsay e Peter Boghossian, o golpe na Janela de Overton que levou à sua quebra teria sido o advento das mídias sociais. Ao permitir que indivíduos com uma mesma opinião se encontrem, Facebook, WhatsApp, Twitter, Reddit e outras redes sociais criaram comunidades fechadas que funcionam como bolhas sociais. Essas comunidades atraem principalmente aqueles que não se viam representados pelo sistema político e nem pela mídia tradicional, em muitos casos por terem opiniões mais radicais. No entanto, o grande perigo é a falta de contestação para essas opiniões, uma vez que os integrantes dessas comunidades pensam de modo homogêneo. Assim, as mídias sociais permitiram que toda opinião se torne aceitável desde que seja compartilhada no local certo, levando à quebra da Janela de Discurso.

Essa “hiper democratização” da transmissão de informação proporcionada pelas mídias alternativas, que ganharam força ao longo da última década, tornou, para muitos, irrelevantes as instituições que foram incapazes de criar um contraponto para as narrativas defendidas por essas comunidades fechadas. Um exemplo disso é o desgaste que a grande imprensa do Brasil sofreu nos últimos anos, notadamente a Rede Globo. Esses veículos tradicionais foram acusados pela mídia alternativa de disseminarem informações viesadas ou até mesmo falsas, enquanto na realidade eram esses veículos independentes que não viam suas visões de mundo representadas.

Ademais, essa formação de comunidades fechadas nas mídias sociais teria permitido que indivíduos que até então se identificavam como “contra tudo que está aí” encontrassem nas redes sociais uma forma de se mobilizar politicamente. Assim, foi possível a eleição de candidatos que investiram em imagens de outsiders para chamar a atenção daqueles que também se sentiam por fora do sistema político e da mídia tradicional. Uma vez eleitos, a dissolução da fronteira entre o aceitável e o inaceitável permite que esses políticos não limitem suas atitudes por aquilo que os setores mainstream classificariam como admissível, tornando nítido o contraste com os governos anteriores.

A grande questão que resta é como restabelecer a Janela de Overton. Isto é, como recompor os limites do aceitável e do inaceitável pela opinião pública nesse novo ambiente de predomínio das mídias sociais sobre as tradicionais para a disseminação de informação. De acordo com Lindsay e Boghossian, ainda haveria espaço para otimismo, uma vez que isso já foi feito no passado: a criação da imprensa, do rádio, da televisão e dentre outros também colocaram em cheque esses limites, mas eventualmente a Janela de Discurso se restabeleceu.

Referências:

A BRIEF Explanation of the Overton Window. Mackinac Center for Public Policy, 2019. Disponível em https://www.mackinac.org/OvertonWindow. Acesso em 12/09/2020.

LINDSAY, James; BOGHOSSIAN, Peter. ‘Is The Unthinkable The New Acceptable?’ Free Inquiry, 2017. Disponível em https://secularhumanism.org/2017/03/cont-is-the-unthinkable-the-new-acceptable/. Acesso em 12/09/2020.

TRAUMANN, Thomas. ‘Como a Janela de Overton ajuda a entender Bolsonaro, conta Traumann’. Poder 360, 2019. Disponível em https://www.poder360.com.br/opiniao/governo/como-a-janela-de-overton-ajuda-a-entender-bolsonaro-conta-traumann/. Acesso em 12/09/2020.

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