A Paixão Revolucionária e a Carta Magna Chilena

Alan Gayger
4 min readMay 25, 2022

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Texto por Alan Gayger

Imagem disponível em: https://unsplash.com/photos/JUB37YQuPls

Durante a Guerra Fria, a América Latina sofreu fortemente com a eclosão de governos militares por todo o seu território. O Chile, como muitos outros países, foi vítima desse fenômeno: o período deixou ao país diversas instituições baseadas no conservadorismo e voltadas ao livre-mercado, gerando um crescimento de renda desigual e condenando muitos chilenos à miséria. Tal cenário de adversidade culminou nos protestos de 2019 e, finalmente, na decisão social de criar uma nova constituição. Assim, para entendermos melhor o andamento do tema, precisamos antes compreender o que levou à situação atual do Chile.

No contexto corrente, o país se encontra em um terrível paradoxo: ser a nação mais desenvolvida da América Latina e, ainda assim, uma das mais desiguais. Por um lado, a renda per capita (13481 euros em 2018) e o IDH (0,843 em 2017) do país são os maiores da região, expressando o seu desempenho superior em termos econômicos. Por outro, possui um índice de Gini (indicador de concentração de renda) de 0,45 — segundo maior da América Latina — atrás apenas do Brasil (0,54). Tais estatísticas representam a dura realidade dos chilenos, que sobrevivem com um salário mínimo de US$414,00 em um país no qual o custo de vida médio é de US$684,00. Logo, formou-se um sentimento de “injustiça” e uma forte tensão, advindos da coexistência simultânea de prosperidade econômica e miséria.

Essa contradição se acirrou nos últimos anos, marcando negativamente os governos de Bachelet e Piñera e gerando diversos protestos, como os de 2006 e 2011. Através do aumento de tais tensões, o fervor da revolta cresceu e estourou em outubro de 2019, quando foi anunciado o aumento do preço da passagem de metrô em 30 pesos — com valor máximo de 830 pesos (aproximadamente 5 reais). Após essa notícia, os protestos, que começaram com estudantes pulando catracas de metrô, logo transformaram-se em incêndios de veículos e ataques a estabelecimentos públicos. Em meio ao caos, a revolta da população foi tamanha que nem sequer a suspensão no aumento da tarifa e a instituição de um estado de exceção constitucional foram suficientes para apagar os anseios do povo.

Isso fez com que o governo, buscando acalmar os ânimos dos revoltosos, iniciasse o processo de criação de uma nova constituição nacional. A fase inicial de tal medida se deu em outubro de 2020, quando a maioria da população votou pela substituição da versão antiga por uma nova. Isso levou milhares de manifestantes a se reunirem nos locais em que ocorreram os protestos de 2019 para poderem desfrutar de sua vitória. Naquele momento, todos eles ansiavam pela votação dos parlamentares que integrariam a constituinte em abril de 2021, e pelo momento de promulgação da constituição, no segundo semestre de 2022.

Pouco mais de um ano após esse evento, em maio de 2022, a comissão responsável pelos ajustes do documento recebeu um rascunho dele, dotado de um viés de bem-estar social e contrapondo o direcionamento anterior de livre-mercado. Na nova carta, foram aprovados 499 artigos, os quais criam diversos direitos sociais, como o direito à habitação, direitos indígenas etc. Além disso, o texto reorganiza a separação regional de poderes e reforça os direitos relacionados à educação, à saúde e à pensão. Dessa maneira, o Chile pretende substituir a sua constituição ditatorial criada no governo de Pinochet por uma redigida democrática e legitimamente.

Apesar disso, uma vez passado o fervor da revolta, diversos obstáculos para a promulgação do novo documento surgiram. Entre elas, podemos citar a dificuldade de lidar com os diversos interesses sociais, levando à exclusão de pautas mais sensíveis, como a nacionalização da mineração e a perda de autonomia do banco central. Além disso, protestos conservadores foram realizados recentemente, clamando pela manutenção do legado de Pinochet. Isso fez com que a medida perdesse popularidade e fosse rejeitada em uma pesquisa de opinião realizada recentemente. Logo, em frente a tal cenário de instabilidade, o futuro do Chile permanece incerto e levanta o seguinte questionamento: conseguirão os chilenos aprovar uma nova constituição e tornar o seu país mais justo e democrático para todas as pessoas?

Referências:

Protestos no Chile: o que está acontecendo?

https://www.politize.com.br/protestos-no-chile/

4 pontos para entender os protestos no Chile

https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50130830

Plebiscito: Chile decide substituir Constituição feita na ditadura de Pinochet

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/apuracao-no-chile-larga-com-amplo-apoio-a-nova-constituicao/

Chile finalises new draft constitution to replace Pinochet-era document

https://www.theguardian.com/world/2022/may/16/chile-constitution-new-draft-pinochet

Primeiro rascunho da nova Constituição do Chile é entregue

https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/primeiro-rascunho-da-nova-constituicao-do-chile-e-entregue/

Convenção entrega primeira versão de nova Constituição do Chile

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/05/16/convencao-entrega-primeira-versao-de-nova-constituicao-do-chile.ghtml

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Alan Gayger

Aluno de Economia na FGV-EPGE, ainda perdido no Rio de Janeiro e buscando entender melhor esse mundo louco em que vivemos.