Até jornalistas mentem

Lilian Kingston Freitas
O Veterano
Published in
5 min readMar 31, 2021
Foto do jornal britânico “Today”

Nos anos recentes, a atenção redobrada às fontes das quais obtemos informação vem se tornando comum. Em uma era de fake news por toda parte, a maioria de nós não acredita cegamente em tudo que lê. Embora estejamos, assim, menos propensos a pressupor a veracidade de dados falsos, ainda somos frequentemente enganados. Em sites subversivos e comentários mal intencionados de conhecidos nas redes sociais, é incessante a publicação de fatos distorcidos, em favor de algum ponto de vista. Todos os dias nos deparamos com uma enorme quantidade de mentiras, mas amanhã, em particular, seremos defrontados com mais farsas que costumeiramente. Afinal, o primeiro dia de abril é o Dia da Mentira.

Também conhecido como Dia dos Tolos, Dia da Gafe e Dia dos Bobos, esse dia trata-se de uma tradição em alguns países europeus e ocidentais. Habitualmente, a data é comemorada por foliões, que espalham boatos, pregam “pegadinhas” e contam mentiras. Certamente, muitos brincalhões vão usar suas plataformas nas redes sociais com essas finalidades. Entretanto, par a par com as brincadeiras inofensivas, estarão as falsidades mal- intencionadas. Assim, mais que em qualquer outro dia do ano, o discernimento acerca de quais comunicados compartilhar na rede tem muita importância.

Além de responsabilidade dos internautas, também devem ser responsáveis todos os profissionais dos meios de comunicação. Com efeito, grandes corporações da esfera jornalística aderiram à tradição da pregação de peças no Dia dos Bobos. Em Dias da Gafe de anos passados, muitos dos mais conhecidos canais de televisão, estações de rádio e jornais publicaram comunicados escandalosos que, seguindo o costume do dia, eram falsos. Devido ao amplo alcance da mídia de comunicação, as “pegadinhas” pregadas nesse meio não têm repercussões condizentes com o uso do diminutivo – em verdade, são “pegadonas”.

. A título de curiosidade, vale mencionar algumas das enganações publicadas por renomados veículos de comunicação no Dia dos Tolos, às quais grandes massas de cidadãos caíram vítimas. Dessa maneira, serão apresentadas, a seguir, algumas das peças pregadas pela mídia ao longo dos anos – algumas, bem humoradas e de bom gosto, outras, definitivamente não.

No primeiro dia de abril de 1848, o periódico mineiro “A Mentira” publicou um comunicado: o falecimento de Dom Pedro II, o então iImperador. Em coerência com o nome da publicação, a notícia era uma mentira. Mesmo com a aparente obviedade da falsidade da informação, muitos brasileiros acreditaram na notícia. Para ratificar a situação, a gazeta desmentiu o relato em uma publicação posterior. Dessa maneira, a população mineira soube o que esperar do conteúdo dos informes das seguintes edições d’“A Mentira”: mentiras.

Para além do periódico mineiro e algumas outras gazetas sensacionalistas, pontos fora da curva da imprensa do século XIX, a publicação de enganações no Dia dos Tolos não era comum. Segundo o curador do “Museum of Hoaxes” (em português, museu das “pegadinhas”), “Foi somente no século XX que o Dia dos Bobos tornou-se um evento da mídia”. Desde então, a presença dessa tradição nos meios de comunicação passou a ser regular.

Em 1905, uma das primeiras publicações europeias a veicular uma notícia enganosa no primeiro dia de abril foi a Berliner Tageblatt, um jornal alemão. De acordo com o relato publicado, ladrões haviam cavado túneis abaixo do prédio da Tesouraria dos Estados Unidos e roubado toda a reserva de prata e ouro ali retida. Rapidamente, outros jornais da Europa replicaram o informe e, assim, o suposto roubo circulou entre as conversas de cidadãos de todo o continente. De certa forma, esse caso pode ser considerado uma evidência histórica da disseminação em cascata das “fake news”.

Atualmente, uma das fontes de informação de maior confiança do mundo é a British Broadcasting Corporation (BBC). Entretanto, ela própria já participou de trotes do Dia da Mentira. Em 1957, a companhia publicou uma notícia bizarra: “uma excelente colheita de spaghetti” na Suíça. Acompanhando o comunicado, foi divulgado um vídeo de agricultores suíços colhendo fios de massa diretamente de árvores de espaguete. Supostamente, a emissora chegou a receber perguntas de telespectadores sobre onde encontrar uma muda da planta. Com isso, evidencia-se a capacidade surpreendente que as pessoas têm de acreditar nos maiores absurdos.

Além da colheita de spaghetti, muitas outras enganações foram intencionalmente publicadas em periódicos de amplo alcance nas últimas décadas. Entretanto, a circulação de informações falsas não ocorre sempre com a intenção de brincar e entreter – também sucede a publicação de falsidades em decorrência de erros sinceros da parte dos jornalistas.

Para ilustrar um equívoco desses, temos o caso do periódico italiano Ansa. Em 1993, foi responsável pela divulgação de uma mentira, mas sem intenção. Vale mencionar que a equipe de jornalistas da publicação foi enganada por um boato do Dia dos Tolos, originado da comuna de Grenoble, sobre a identificação de um objeto voador não identificado, na forma de um trem, nos céus franceses. Logo, a agência emitiu o comunicado e, antes de ser descoberto que a informação se tratava de uma “pegadinha”, a transmissão da novidade já rondava o mundo.

No âmbito internacional, as enganações do Dia da Mentira adentraram, também, a esfera das relações internacionais. Em 1998, o jornal “Babel”, pertencente ao filho do então presidente Saddam Hussein, divulgou o informe de que o presidente americano, Bill Clinton, havia suspendido as sanções contra o Iraque. Notadamente, a veiculação de uma notícia falsa acerca de medidas econômicas de repercussão internacional tem repercussões significativamente mais impactantes do que o informe do sucesso da colheita de spaghetti.

A valer, cabe aos jornalistas ponderar seriamente o conteúdo de suas publicações. Sem dúvida nenhuma, a emissão de brincadeiras de bom gosto – como a notícia do coelho voador, publicada na Grã-Bretanha pelo “Today” – diverte e aguça o interesse do público. No entanto, a linha tênue entre enganações bem humoradas e “fake news” deve ser observada com cuidado na esfera jornalística.

Afinal, mesmo em uma época com ampla disponibilidade de notícias na internet, uma parcela significativa da população ainda considera os meios de comunicação tradicionais – jornal, televisão e rádio – como principal fonte de informação de confiança. Se o público não puder confiar nos jornalistas, como as massas acessarão informação confiável e de qualidade? Assim, evidencia-se a importância do Jornalismo – mesmo com a ocasional publicação de absurdos, por efeito de entretenimento – dar sempre prioridade à verdade.

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