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Austeridade alemã

Como eles conseguem?

João Victor de Andrade
Published in
5 min readJun 17, 2020

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Em tempos de grandes crises como a atual, reacende-se o debate sobre equilíbrio das contas públicas nos mais diversos fronts. E, como acontece com qualquer tema que se evidencie, a polarização, as soluções “fáceis” e os oportunistas de plantão acabam se fazendo ouvir e prejudicando o debate. O debate sobre prudência fiscal, por exemplo, deveria ter sido feito muito antes. No caso da reforma da previdência, economistas já alertavam da insustentabilidade do nosso modelo desde os anos de FHC. Fez-se muito pouco a respeito. Em tempos de prosperidade econômica jamais vistos no país, após a longa tempestade econômica dos anos 80, que governo se disporia a defender corte de gastos? É muito mais fácil deixar para (outro governo) resolver depois. Na era do lulopetismo, principalmente, uma reforma efetiva do sistema previdenciário não teria a mínima chance. Novamente, fez-se o mínimo, pois mais do que o mínimo poderia custar a eleição. Em tempo de vacas magras, o problema não resolvido volta, sobrecarregado com o peso da negligência dos anos anteriores e dependendo de um contexto de polarização para ser solucionado. Não há a menor chance de uma saída razoável. Será feito o mínimo necessário, de novo. Em contraste a isso, voltemos nossa atenção a um país exemplar em contas públicas: a Alemanha. Durante os últimos anos, descontando-se os efeitos da crise de 2008, a Alemanha vem reduzindo consistentemente sua proporção entre dívida pública e PIB. Como e por que isso acontece? E mais: por que em outros países isso consistentemente não acontece — pelo contrário, a proporção tende apenas a aumentar?

Primeiramente, um pouco de contexto histórico: em 1992, foi acordado o Tratado de Maastricht, estabelecendo bases para a implementação de uma moeda única na União Europeia — o Euro. De modo a preservar a estabilidade e a confiança na moeda, foram acordadas medidas que deveriam ser seguidas pelos países da zona do Euro — e pelos ingressantes. Essas medidas tratam, principalmente, da inflação, do orçamento público e das taxas de juros, além de possuir elementos relativos à política cambial de países que pretendam adotar o euro. Observando especificamente a questão orçamentária, o Tratado estabelece que é requerido aos países que mantenham uma proporção de até 60% entre dívida pública e PIB. Caso esse limite seja ultrapassado, o país em questão deve realizar reformas que resultem em superavits primários até voltar ao nível exigido.

Antes da crise de 2008, apenas três países apresentavam uma proporção significativamente destoante dos 60%: Itália, Grécia e Bélgica. Outros países que se mantinham acima o faziam por poucos pontos percentuais, não alcançando os 70%. A crise, no entanto, impeliu os países a aumentarem drasticamente os seus gastos para amenizar e combater a situação. Apesar de ter sido relativamente breve e sem maiores consequências fora da economia, os estragos foram significativos. Depois da crise, vários desses países se mantiveram com nível da dívida mais alto que antes, chegando, inclusive, a aumentá-lo. No entanto, alguns conseguiram traçar o rumo aos níveis pré-crise. Em especial, a Alemanha. Uma “explicação” imediatista seria atribuir esse sucesso a uma suposta hegemonia alemã sobre as políticas da zona do Euro. Mas isso não faz sentido: países econômica e politicamente fortes como Itália, França, Espanha e Bélgica seguem altamente endividados, enquanto países menores como a Irlanda ou Malta diminuíram sensivelmente seus índices de endividamento.

Um fator essencial da política alemã, que parece faltar à de seus vizinhos, especialmente à da Itália, é estabilidade. Desde 2005, a Itália foi governada por sete primeiros-ministros, de vertentes políticas distintas. Além disso, mesmo quando não há troca de governo, a política italiana é marcada por turbulências, sendo a mais recente a tentativa de Matteo Salvini de desestabilizar o governo de Giuseppe Conte [1] a partir de brados nacionalistas que, como se vê em diversos outros países ocidentais, são a chave de ignição da polarização, que emperra as negociações no legislativo e transforma a política em um espetáculo eleitoreiro imediatista, ignorando as consequências. Em contrapartida, Angela Merkel se mantém como chanceler alemã há mais de catorze anos, sem grandes contestações. Embora sua popularidade tenha vacilado em alguns momentos, o sucesso das políticas econômicas e sociais e a boa relação com o parlamento blindam seu governo de eventuais investidas nacionalistas, como, por exemplo, as do partido AfD (Alternativa para a Alemanha, em tradução livre).

A relação entre estabilidade política e prudência fiscal é objeto de estudo recorrente. Em um artigo de pesquisadores da Universidade de Glasgow[2], evidencia-se como a incerteza política resulta em aumento do consumo por parte do governo, em detrimento do investimento. Por consequência, esse governo precisará aumentar o total de gastos, de modo a manter investimentos suficientes para o crescimento econômico. Cedo ou tarde, um sistema que se financie com irresponsabilidade fiscal acabará voltando à instabilidade política, em um ciclo vicioso.

Austeridade tem sido uma das maiores bandeiras de Merkel desde o início. No entanto, é necessária uma ponderação: um “choque de gestão” muito forte na redução de gastos corre o risco de desagradar os eleitores no curto prazo. Logo, há um limite eleitoral, não necessariamente econômico, para a redução nos gastos. E nisso, novamente, Merkel acerta: desde que assumiu o cargo, os gastos do governo alemão per capita cresceram, exceto nos anos de 2006, 2010, 2011 e 2015, de modo que o total 2005–2018 é um aumento de 15,7%, menor que o do PIB per capita, que cresceu 20,93%[3]. Mantendo a tributação em níveis relativamente estáveis desde então e contando com tetos de gastos restritivos, a Alemanha vem, desde 2012, apresentando superávits primários e reduzindo sua dívida pública.

Mas essa política seria sustentável no longo prazo? Paul Krugman, ganhador do Nobel de Economia de 2006, tece fortes críticas ao que chama de “obsessão” [4]de Merkel pelo controle fiscal, apontando como consequências, não só na Alemanha mas em toda a União Europeia, estagnação econômica e desajuste de preços relativos, além de responsabilizar essa mesma política pela situação dos países do Sul da Europa[5], assolados por desemprego no início da década. A atual pandemia, por fim, fez o governo alemão ceder, injetando centenas de bilhões de euros para resgatar a economia da recessão. Sob tantas críticas dentro da própria União Europeia, efervescência política global e com resultados mais fracos nos últimos anos, resta ver se a líder do Mundo Livre vai conseguir negociar com EUA, Rússia, China e a própria União Europeia. Não parece seguro afirmar que a austeridade de Merkel sobreviverá no pós-pandemia. O mundo vai ter mudado.

Referências

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/31/internacional/1567236059_267200.html

[2] CHOL, W, DARBY, J, MUSCATELLI, V. “Political uncertainty, public

expenditure and growth” CESifo Working Paper Series, 2000.

[3] https://data.worldbank.org/

[4] https://exame.com/blog/paul-krugman/a-obsessao-nociva-da-alemanha-com-a-austeridade/

[5] https://exame.com/blog/paul-krugman/os-destrutivos-dogmaticos-da-alemanha/

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/coronavirus-faz-alemanha-abandonar-austeridade-depois-de-6-superavits-seguidos.shtml?fbclid=IwAR3dpjOHGHwqfO6gBvT6SVnjisKLNzY_Pvn7JerBoSS4RV32O41Dbr-jDfw

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João Victor de Andrade
O Veterano

Former Brazilian Army cadet. Economics student. Conservative.