Coluna | "Aí as coisas ficam realmente pretas e há que dar um jeito" — Lorena Deyson e Renê Bastos

O Veterano
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7 min readAug 29, 2020

O seguinte texto se propõe a levantar um debate sobre a tomada de consciência racial de pessoas negras brasileiras, a inserção em um ambiente universitário e suas decorrentes vivências. Deste modo, será apresentada a motivação por trás da reativação do Coletivo Ovelha Negra na Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro e as nossas propostas.

De acordo com Mead (2010), o processo de formação do self inicia-se durante a infância, quando a criança está praticando alguma brincadeira na tentativa de representar papéis exercidos na sociedade. Essa atitude possui características individuais, pois as crianças ainda não possuem uma personalidade organizada, o que ocasiona em vários papéis sendo exercidos de maneiras imprevistas e desordenadas.

Em seguida, surge o jogo, um aprimoramento da brincadeira. Ele é realizado de uma maneira mais complexa: não há o caráter individualista e há regras a serem seguidas, de tal forma que todos os envolvidos devem exercer condutas semelhantes (MEAD, 2010). Através das atitudes tomadas em um grupo, cria-se a ideia de um outro generalizado. Segundo Mead (2010), a ação de um outro generalizado é a ação de toda uma comunidade, pois esse ser generalizado aderiu às normas existentes nos grupos sociais do qual faz parte.

À medida que o indivíduo passa pela brincadeira realizando representações dos papéis que estão presentes nos jogos, em seguida, entra no jogo e começa a fazer parte de um outro generalizado, ocasionando o surgimento de uma característica única de cada indivíduo. Essa característica é denominada self, a qual é adquirida através da relação com os outros em uma comunidade organizada. Assim, “o que vai formar o self organizado é a organização das atitudes que são comuns ao grupo” (MEAD, 2010, p.135).

Para Mead (2010), a formação do self é possível através da socialização, e a linguagem é uma ferramenta de extrema importância nesse processo, pois, quando se utiliza a fala, é acionada uma ação. Essa linguagem, que para Mead é utilizada para unir e gerar ações conjuntas, é utilizada em determinados grupos para diferenciar e marginalizar determinados indivíduos. De acordo com Cunha Junior (2008), é durante a educação básica que muitas das crianças afro-brasileiras tomam conhecimento racial por via dos xingamentos e agressões verbais relacionadas às suas características fenotípicas negroides.

O conceito de ontologia, criticado pelo sociólogo britânico-jamaicano Frantz Fanon (2008), surge com a metafísica e aborda ideias sobre a natureza e a realidade do ser enquanto ser, tendo este uma natureza comum que é própria a todos e a cada um. O filósofo produz seu argumento a respeito do negro não ter resistência ontológica para o branco, pois os negros tiveram abolidos sua metafísica e seus costumes diante da contradição com uma civilização imposta.

Fanon (2008) diz que o negro não tem mais que ser negro, mas sê-lo perante o branco, em razão de serem vistos como um objeto em meio a outros objetos. Propondo uma conversa direta entre Fanon e Mead, Fanon diria que o ser negro, ou seja, o “outro generalizado” negro, foi criado apenas a partir do contato com brancos. Tal contato criou a imagem estereotipada de um grupo social e não um self organizado, como propõe Mead.

Enclausurado nesta objetividade esmagadora, implorei ao outro. Seu olhar libertador, percorrendo meu corpo subitamente livre de asperezas, me devolveu uma leveza que eu pensava perdida e, extraindo-me do mundo, me entregou ao mundo. Mas, no novo mundo, logo me choquei com a outra vertente, e o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi explicações… Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por um outro eu. (FANON, 2008, p. 103)

O autor escreve sob influência do contexto de diáspora africana, que se refere ao deslocamento de um povo pelo mundo, este povo negro que, a partir do contato com o outro branco, primeiramente teve de se repensar e se entender como negro constantemente, visto que recaíram sobre ele estereótipos pela contradição com esse outro.

A antropóloga Lélia Gonzalez, a respeito da cultura social brasileira, discorre em sua obra Racismo e sexismo na cultura brasileira sobre a naturalização dos papéis sociais que demarcam o lugar social do negro, e mais especificamente, da mulher negra no Brasil. A cultura brasileira, que aponta para a posição de negros no processo de construção cultural, apresenta diferentes modos de rejeição e integração de seu papel.

Menor negro só pode ser pivete ou trombadinha, pois filho de peixe, peixinho é. Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão. Eles não querem nada. Portanto têm mais é que ser favelados (GONZÁLEZ, 1984, p.226).

Essa condição sobre os corpos negros no Brasil são cada vez mais normatizadas, porém, ao mesmo tempo, acreditam que “somos todos iguais, a gente não fala isso?”(CARVALHO, 2007). Afinal, “racismo? No Brasil? Quem foi que disse? Isso é coisa de americano. Aqui não tem diferença porque todo mundo é brasileiro acima de tudo, graças a Deus” (GONZALES, 1984, p. 226).

De acordo com Lélia Gonzales (1984), o racismo é um elemento que está presente na neurose cultural brasileira, porém, a análise demonstra o que a lógica oculta. Quando os discursos e os atos são analisados, encontra-se o que foi ocultado e jogado para as latas de lixo da lógica. E, a partir do momento em que os negros estão na lata de lixo da sociedade, segundo a lógica da dominação, e descobrem o que há ali, “o lixo vai falar, e numa boa” [1].

Ao realizar análises das lógicas existentes na sociedade brasileira, são notórias as contradições presentes nos discursos dominadores da branquitude. A consciência é a noção que permeia “o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber” (GONZALES, 1984, p. 226). É neste local que encontram-se os ocultamentos das histórias. A lógica utiliza a lata de lixo para esconder o saber que não deve ser conhecido. Entretanto, “à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de cena” (GONZALES, 1984, p. 226).

Então, a crioulada resgata a memória, esse “não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (GONZALES, 1984, p. 226). Quando a memória é acionada, a história camuflada pela consciência é demonstrada e, então, a democracia racial que foi vendida, e por alguns comprada, mostra sua verdadeira face: a face do mito.

A sociedade, ao utilizar do mito da democracia racial, está corroborando com o fenômeno da neurose cultural brasileira. Tenta impor uma igualdade racial que não existe. A neurose está baseada na tentativa de esconder determinados elementos para que isso lhe gere algum benefício; porém, a memória possui estratégias que possibilitam se atentar ao que não está sendo afirmado, a princípio (GONZALES, 1984).

Segundo Becker (2008), em uma sociedade há regras sociais que definem os comportamentos dos indivíduos e aqueles que não agem de acordo com as normas postas são encarados como outsiders. Cada grupo social tem suas regras e considera de formas diferentes o que é visto como desvio — sendo um comportamento desviante aquele que as pessoas rotulam como tal. Porém, “algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes sem ter de fato infringido uma regra. As pessoas rotuladas de desviantes têm o rótulo e a experiência de serem rotuladas como desviantes em comum.” (BECKER, 2008, p. 23)

Deste modo, os sujeitos negros no contexto universitário são taxados como desviantes, não por violarem alguma regra, mas por um conjunto de significados que rotulam seus corpos perante o outro. O outro, ao ditar as regras do meio acadêmico, demonstra através de conjuntos de linguagens e significados quem são os estigmatizados das relações sociais. Estigmas são definidos enquanto marca ou sinal que designa o seu portador como desqualificado ou menos valorizado, ou segundo a definição de Erving Goffman “a situação do indivíduo que está inabilitado para aceitação social plena” (GOFFMAN, 1998, p.4).

O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro. Os atributos duradouros de um indivíduo em particular podem convertê-lo em alguém que é escalado para representar um determinado tipo de papel; ele pode ter de desempenhar o papel de estigmatizado em quase todas as suas situações sociais, tornando natural a referência a ele, como eu o fiz, como uma pessoa estigmatizada cuja situação de vida o coloca em oposição aos normais. (GOFFMAN, 1998)

Assim, os indivíduos que são estigmatizados perante a sociedade se unem em entidades pois, “sabendo por experiência própria o que se sente quando se tem este estigma em particular, algumas delas podem instruí-lo quanto aos artifícios da relação e fornecer-lhe um círculo de lamentação no qual ele possa refugiar-se em busca de apoio moral e do conforto de sentir-se em sua casa, em seu ambiente”. (GOFFMAN, 1988, p. 20).

Desse modo, o Coletivo Ovelha Negra surge com o propósito de promover espaços dentro da FGV-RIO para acolher, integrar e agir de forma educacional perante a todos e a todas pertencentes à comunidade preta. Com a falta substancial de corpos pretos representados neste meio acadêmico e a carência de mais produções acadêmicas feitas por pretas e pretos, promovemos eventos, palestras e cursos que discutam, bem como contribuam para o debate da questão racial.

Anteriormente, criado no ano de 2016, o Coletivo Negrx FGV tinha como intuito a aproximação da comunidade preta que compõe o corpo estudantil e o diálogo sobre os desafios dos estudantes e das estudantes negres na instituição e na sociedade. Sendo também, espaço de criação e proposição de soluções conjuntas para o enfrentamento destas questões. E, agora, estamos reativando esta entidade para dar continuidade ao legado de nossos antecessores e manter sólido o espaço de ampla troca entre não só os estudantes negres da FGV, mas todas as pessoas pretas de todas as áreas da fundação!

[1] GONZALES, 1984, p. 225.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.