Burocracia e jogo político: uma entrevista com Sérgio Praça

Emanuelle Peixoto
O Veterano
Published in
6 min readJun 17, 2020

Em meio ao conturbado cenário político em que vivemos, com altos e baixos do Poder Executivo e suas interações com os outros poderes, muitas vezes, pode parecer confuso e complexo entender tal contexto. Para esclarecer algumas questões importantes da atualidade, convidamos Sérgio Praça, cientista político especialista em partidos políticos e burocracias.

1. O livro Como as Democracias Morrem fala sobre regras informais da política, levando em consideração o contexto americano. Como isto se relaciona com o contexto brasileiro e como este sistema funciona em crises como a atual?

Nos EUA as regras informais a que os autores se referem dizem basicamente respeito ao comportamento dos dois partidos políticos, democratas e republicanos. Simplificando muito o argumento, a obra identifica que, no jogo político norte-americano, os dois partidos sempre foram muito polarizados. Contudo, essa condição teria se tornado ainda mais intensa a partir dos anos 80. Levitsky e Ziblatt, autores do livro, afirmam que, em meio a essa intensa polarização nesse período, o que segura a qualidade da democracia é a tolerância mútua que os partidos têm. Não são duas coisas contraditórias, pois você pode ter alta polarização e alta tolerância; alta polarização e baixa tolerância; ou então baixa polarização.

É um quadrante onde todas as opções são possíveis. Mas quando você tem alta polarização de alta intensidade e baixa tolerância mútua, segundo os autores, isso afeta muito a qualidade da democracia, podendo até mesmo acabar com ela.

Na crise do coronavírus, semelhante ao Brasil e a outros países, essa polarização e essa intolerância se tornam maiores ainda. O Trump é visto como um presidente absolutamente insensível e ineficaz para lidar com a crise, assim como o Bolsonaro. Além disso, a adoção da cloroquina como remédio plausível para o coronavírus divide ainda mais os Republicanos e os Democratas, assim como divide bolsonaristas e não-bolsonaristas aqui. Então, de certa maneira, o bolsonarismo provoca — e também é fruto — de uma intensa polarização social, mas que no Brasil é em torno somente de uma figura específica (Bolsonaro), e não de um partido político, como nos Estados Unidos.

Pela ação cotidiana do nosso presidente, os grupos políticos cada vez menos se toleram, cada vez menos conversam e têm interações respeitosas. No entanto, o Brasil é um país “esquisito” para esse clima de forte intolerância, porque nós estamos muito mais acostumados a fazer coalizões, acordos e negociações entre Executivo e Parlamento, enquanto nos EUA isso já se perdeu há muito tempo. São muitos partidos na Câmara dos Deputados, e sem negociação é impossível governar.

2. Como a visão negativa de ativismo jurídico[1] no STF pode impactar a estabilidade política durante uma crise como a atual e em que medida essa visão corresponde à realidade?

De fato, o STF tem realizado muito ativismo social, mas isso não é algo novo ou recente. Não acredito que isso tenha acontecido apenas devido à crise do Covid-19.

Em que medida isso afeta a estabilidade é difícil dizer. As últimas semanas foram repletas de protestos e falas do presidente e dos ministros, como ficou claro no vídeo da reunião de 22 de abril, e os apoiadores bolsonaristas continuam fazendo forte crítica ao STF. Há uma parte pequena da população que deseja supostamente o fechamento do STF, e acredito que fazer isso seria um passo muito decisivo para uma ditadura. Como se diz na economia: “cheap talk”, “retórica barata”, e o Bolsonaro tem exagerado nisso. Entretanto, pensar que haverá de fato uma ação judicial para interferir no STF não acho factível, apesar de estarmos mais próximos disso hoje do que há um ano, mas ainda estamos longe ao meu ver.

Palácio do Planalto, Brasília. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

3. O corpo técnico do Tesouro Nacional e do Ministério da Economia podem afetar as decisões presidenciais? Como?

Todas as perguntas são ótimas, mas essa é especialmente difícil, porque quando a gente pensa em definição de política econômica e política fiscal, a primeira coisa que vem à mente é o Presidente e o seu partido. Podemos pensar na Dilma, no Lula, no Bolsonaro. Pensando na Dilma com relação ao neodesenvolvimentismo, às construções de novas infraestruturas e o papel preponderante do Estado no setor produtivo, vem à mente uma política econômica de esquerda e, supostamente, usando o dinheiro da tributação para redistribuição de renda para diminuir a desigualdade. Já com Paulo Guedes e Henrique Meirelles, por exemplo, temos uma ideia de equilíbrio fiscal, reforma da previdência, menos gastos sociais e assim por diante.

Se o argumento de que o presidente é o definidor da agenda econômica for verdade, o corpo burocrático teria mais o papel de auxiliar o presidente e o ministro a realizar políticas públicas do que propriamente formular suas próprias políticas públicas. No entanto, por vezes, os técnicos e os burocratas concursados têm um papel importante a desempenhar, que é o de avisar à sociedade quando as políticas econômicas são potencialmente desastrosas. Foi isso que ocorreu, em certa medida, no caso das pedaladas fiscais ao reportarem para a imprensa, de forma anônima, pelo menos inicialmente, as péssimas consequências das escolhas econômicas de Dilma.

4. Como os cargos de confiança (DAS-4,5,6)[2] podem ajudar ou atrapalhar a estabilidade do governo Bolsonaro?

Bom, a resposta clara que vem à mente é da negociação desses cargos com partidos políticos. Para simplificar, com partidos que compõem o centrão. Existe uma ideia muito forte na imprensa e entre os políticos ultimamente de que, quanto mais cargos o Bolsonaro distribuir para esses partidos e quanto mais ele agradar aos partidos políticos, principalmente líderes partidários, com essas nomeações, menos chance ele terá de sofrer impeachment. Isso deu certo com o ex-presidente Michel Temer, que, por duas vezes, quase teve um processo de impeachment aberto contra si, mas nas duas vezes conseguiu bloquear.

É possível ligar a existência do processo de impeachment à estabilidade, mas é uma relação um pouco complexa e incerta; o que seria mais instável para o país? Ter impeachment e Bolsonaro sair, ou não ter o impeachment e continuar como está?

A situação atual já é repleta de instabilidade, e fazer um processo de impeachment poderia ser pior, ainda mais com um militar assumindo a presidência. Não possuo nada contra os militares, mas seria algo inédito no país após muitos anos, e dependerá muito da condução pessoal do próprio Mourão.

Na verdade, a impressão que eu tenho é a de que nenhum dos caminhos são bons ou menos instáveis, seja usando muitos cargos para ficar no governo ou não distribuindo cargos e, praticamente, selar seu destino de impeachment. Mas o que chama atenção hoje, assim como me chamou atenção na época do Temer, é como essa distribuição dos cargos é central e crucial para assegurar o governo, especialmente em um contexto de penúria fiscal. Para esclarecer, como geralmente os governos brasileiros formam coalizões e sobrevivem? Há três formas: emendas orçamentárias, cargos de confiança e ministérios.

As emendas orçamentárias perderam um tanto de espaço, não só pela legislação do orçamento impositivo, mas também porque o Brasil está quebrado e vai quebrar mais ainda nos próximos meses, então os cargos de confiança acabam tendo um papel bastante importante.

5. Qual é o livro que o senhor acha que mais explica a situação política do Brasil no quadro atual? E por quê?

Eu acho que só existe um bom livro falando do Brasil atualmente. Esse é o Tormenta, da jornalista Thaís Oyama, que foi lançado no fim do ano passado. Ainda não trata da crise do coronavírus, mas tudo de importante do governo Bolsonaro está lá de uma maneira ou de outra, principalmente a relação dele com os militares. Enfim, é um livro que acho que todo mundo deveria ler.

Apesar de não tratar do governo Bolsonaro, há um outro livro que é sobre um governo que também passou por fortes crises, o Governo Collor. O livro se chama Collor Presidente, do historiador Marco Antônio Villa. O governo Collor foi um governo repleto de crises mais de natureza econômica do que este, mas as lições são bem interessantes. É um livro excepcional, é escrito de uma maneira vibrante, assim como o da Thais Oyama. São dois livros muito bem escritos e muito fluidos. Eu recomendo fortemente esses dois.

[1] Atuação expansiva e proativa do Poder Judiciário, ou seja, uma parcela do Poder Político é transferido das instâncias tradicionais da política para o Poder Judiciário.

[2] DAS (Direção e Assessoramento Superiores), são cargos de confiança do Governo Federal.

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