Série Re(vira)volta da Vacina | Entre livres e tirânicos

Por Aron Giovanni Oliveira, Heloísa de Souza Rocha, Leonardo Maia do Carmo, Luiza Botelho, Maria Julia de Moraes Atty, Paulo Henrique da Silva, Raquel Porto e Renê Bastos Ventura

O Veterano
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6 min readDec 8, 2021

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Foto disponível no Pixabay

A cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, mais precisamente em 1904, foi palco de um curioso episódio que, até hoje (talvez, principalmente hoje), desperta o interesse de historiadores a tuiteiros: a Revolta da Vacina. Uma revolta de caráter popular movida pela insatisfação com a truculência autoritária do Estado e a desinformação em relação à política de imunização nacional, implantada por Oswaldo Cruz, tomou conta das ruas da então capital federal brasileira.

Esta série “Re(vira)Volta da Vacina”, composta por cinco textos, trará os aspectos de rupturas e continuidades da história do Brasil, sobretudo em uma conversa constante entre 1904 e 2020/2021. Seria os antivacinas os novos revoltosos da terceira República no século XXI? Qual era o perfil dos revoltosos contra a vacina em 1904 e quem são os antivacinas contemporâneos? Como foi possível tal conflito acontecer? Qual ou quais discursos estavam postos nesse contexto? E o que 1904 nos diz sobre 2020 e 2021?

Para encontrar respostas às perguntas apresentadas, os estudantes de autoria deste texto partem de uma profunda pesquisa historiográfica. Os autores, graduandos de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas/RJ, analisaram 44 páginas de 5 fontes documentais do acervo da Igreja Positivista do Brasil depositadas no acervo do Centro Pesquisa e Documentação da História Contemporânea da Fundação Getulio Vargas (CPDOC FGV ).

Foto disponível na Wikimedia Commons

A então capital da República dos Estados Unidos do Brasil, no início do século XX, era a cidade do país mais ativa e com aproximadamente de 800 mil habitantes. A explosão demográfica é simplesmente – e superficialmente – explicada: soma-se à abolição de escravização, no final do século XIX, que não foi seguida por quaisquer políticas de inclusão das famílias escravizadas num plano de integração socioeconômica ao novo sistema de exploração do trabalho, à crise da economia cafeeira fluminense em razão do crescimento exponencial do Oeste paulista; isso confluiu no crescimento de outros setores da dinâmica econômica carioca, principalmente na região central da cidade, o que aumenta, quase de maneira natural, a densidade demográfica do Rio de Janeiro. Além disso, os portos – e as cidades portuárias, como o Rio de Janeiro – detinham uma importância social enorme, na medida em que, neles, se realizavam intensas trocas econômicas e culturais. O fluxo de imigrantes na cidade era intenso e centenas de embarcações atracavam e desatracavam; isso favorecia um intenso fluxo de doenças e algumas delas, como tuberculose, peste bubônica, febre amarela, cólera, varíola, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, causavam milhares de mortes por ano. Tal fato, associado à falta de infraestrutura sanitária, a geografia da cidade à época – cheia de mangues e pântanos – e à falta de planejamento urbano, criaram as condições necessárias para o cenário de epidemias na cidade do Rio de Janeiro.

As reformas urbanas, conduzidas de maneira extremamente autoritária pelo Estado, que se apoiavam inclusive na repressão policial, não afetaram só a classe mais pobre, obviamente, mas uma espécie de classe média de comerciantes, que tinham de adequar a sua logística econômica à nova realidade da cidade, o que gerava bastante insatisfação. Estava, além disso, associado à reforma o projeto sanitarista de Oswaldo Cruz, à época líder da DGSP, Diretoria Geral de Saúde Pública, para erradicação das doenças epidêmicas na cidade, que vai focar em três doenças: a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Para a primeira, criaram-se brigadas de mata-mosquitos para combater os focos de proliferação do vetor da doença: o mosquito. Essas brigadas eram compostas por agentes públicos e policiais que, como talvez seja de se esperar, agiam de maneira truculenta com a população, invadindo casas, revirando e revistando possíveis focos de reprodução do mosquito e até mesmo, em alguns casos, interditando e decretando a demolição dos edifícios. No caso da peste bubônica tomou-se uma providência muito curiosa: a população era incentivada a caçar os ratos e a trocá-los por uma recompensa em dinheiro. Por fim, no caso da Varíola, inicia-se uma campanha de vacinação obrigatória orquestrada pelo governo e realizada pelas mãos de agentes públicos com braços da polícia; por isso, houve grande desconfiança por parte da população-alvo da campanha nos reais interesses desta. Outrossim, a desinformação acerca da própria vacina corroborou a insatisfação das camadas populares com a situação político-social acerca do imunizante.

Os protestos que marcaram a Revolta da Vacina iniciaram-se em 10 de novembro de 1904 e se estenderam por alguns dias, chegando ao caos e à radicalização no dia 13 do mesmo mês quando, insatisfeita, a população chega a atacar e saquear prédios públicos, sendo reprimida a tiros pela polícia. A situação escalonou de tal forma que foi articulado até mesmo um golpe contra o então presidente brasileiro, Rodrigues Alves, que fugiu da cidade e decretou Estado de Sítio, quando o Exército se mobilizou para conter, na bala, os manifestantes. A Revolta durou quase um mês e, em fins de novembro, quando ‘esfriou’ por conta da repressão, o saldo foi de, aproximadamente, 31 mortos, 110 feridos, 1000 presos e 500 degredados para o Acre.

Diante de tanta conturbação social, diversos setores da sociedade estiveram presentes na Revolta da Vacina. Historiadores brasileiros contextualizam que houve uma participação plural da sociedade nos protestos em questão, bem como defendem que esse episódio histórico teve motivações políticas, econômicas, ideológicas e moralistas, além da oposição à obrigatoriedade da vacinação.

Entre um dos principais agentes sociais que se manifestaram contra a obrigatoriedade da vacinação estava a Igreja Positivista do Brasil, composta por positivistas ortodoxos, que defendiam a privacidade e a liberdade de cada cidadão. Formada em 1881, no Rio de Janeiro, e também conhecida como Centro Positivista Brasileiro, Religião da Humanidade ou Apostolado Positivista, tratava-se de uma instituição influenciada pelas prerrogativas de Augusto Comte, o idealizador dos valores positivistas, que são baseados em torno da valorização da ciência, dos valores cívicos e da moral. Nesta linha de raciocínio, a Igreja Positivista do Brasil, alegando defender o livre arbítrio do cidadão brasileiro em escolher ou não se vacinar contra a Varíola, prontamente se manifestou, através de campanhas na imprensa e de folhetos, contrária à obrigatoriedade da vacina.

Certamente, a Revolta da Vacina marcou a história do Rio de Janeiro e do Brasil ao demonstrar a desinformação do povo quanto à necessidade da campanha de vacinação obrigatória contra a varíola e a insatisfação popular com a arbitrariedade do Estado em conduzir suas reformas urbanas e sanitárias. Assim, considerando o contexto atual de pandemia de COVID-19, é quase que automático pensar em relações com os movimentos antivacinas contemporâneos. Porém, é relevante entender que, além de similaridades, existem, também, diferenças entre os revoltosos de 1904 e os insurgentes da atualidade.

Atualmente, meios alternativos de obrigatoriedade da vacina são adotados por estados e municípios brasileiros, enquanto a postura do Governo Federal é pautada numa suposta defesa da liberdade individual do cidadão escolher ou não se vacinar. Hoje, também, mesmo existindo protestos antivacinas em território nacional, manifestações em apoio à vacinação contra COVID-19 também são registradas e a imunização avança em ritmo acelerado quando comparada com a situação de outros países. A situação brasileira atual tem suas especialidades, e rupturas e continuidades entre passado e presente são identificáveis e serão detalhadas ao longo desta série de textos.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.