Coluna | Amigos, amigos, negócios à parte? — Leonardo Fernandes de Sá

O controle informal da política nas instituições democráticas

O Veterano
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6 min readAug 5, 2020

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Temer discursa em jantar que organizou para mais de 200 deputados federais sobre a importância da aprovação da PEC do Teto de Gastos. Foto: Beto Barata/PR para Congresso em Foco.

Em 2018, no auge da polarização eleitoral entre uma esquerda autoproclamada progressista e uma direita declarada reacionária ao petismo vigente no país, espantei-me com imagens veiculadas nas redes sociais retratando um aparente coleguismo entre membros eleitos do Partido dos Trabalhadores e do Partido da Social Democracia Brasileira como algo absolutamente negativo, denunciador do caráter corrompido que ambas as legendas, rivais na política, supostamente teriam adquirido ao conviverem. Na linguagem antipolítica alimentada pelos recentes escândalos de corrupção da vida nacional, seriam todos “farinha do mesmo saco”. Um abraço [1] de FHC em Lula em decorrência do falecimento da esposa do último, em 2017, tornou-se ilustração na cabeça dos mais aguerridos, para os quais a oposição de um ao outro não passava de mero “artifício”, destinado a enganar uma plateia de iludidos com a “Velha Política”. A retórica belicista de setores mais sectários da vida nacional ganhava ali ampla ressonância, considerando os tempos de descrença em que vivíamos então e que se mantêm na atualidade.

Os apaixonados esqueceram-se de um detalhe crucial para o funcionamento de qualquer democracia: a política de tolerância comum e mútua. Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores do celebrado livro “Como as democracias morrem” resumem o conceito à ideia de que rivais na política, em um ambiente institucional democrático, não se tratam à maneira de inimigos em guerra, mas como oponentes inseridos em um jogo de regras pré-estabelecidas. É entender que não se faz política — ao menos não institucionalmente — opondo-se a pessoas, mas através do embate oportuno de ideias e propostas. No Brasil, onde o poder encontra-se formalmente tripartido e fragmentado entre os mais diversos atores da esfera pública e privada, cujo sistema de governo republicano caracteriza-se na junção de esforços entre o presidente e ambas as casas legislativas federais, isso significa que este conjunto de normas informais anteriores é norteado pelo trato respeitoso e pragmático dos agentes destes segmentos. Isso fica bem claro ao observarmos, guardadas as devidas proporções, o dia-a-dia das votações em uma câmara municipal, como a do Rio, onde situação e oposição definem-se em diferentes propostas, em posições negociadas a todo momento. Não era incomum, em minha breve estada [2] no Palácio Pedro Ernesto, deparar-me com projetos de lei em que os conceitos anteriormente mencionados eram deixados de lado, estabelecidos consensos pontuais entre os parlamentares, agilizando — e muito — o processo legislativo, e assim otimizando os trabalhos da Casa. Até partidos como o PSOL e o NOVO, diametralmente opostos no espectro político convencional, eram capazes de unir-se em pautas contra o prefeito Marcelo Crivella e em favor do pleito governista, conforme juízo de oportunidade dos vereadores em questão. O ambiente democrático-institucional de tolerância e profissionalismo, sem ofensas, perseguições e ataques pessoais, permite a todos os players envolvidos maiores chances de aprovação em propostas afetas aos seus representados e às suas preferências políticas, e é o que, de fato, desejaram os constituintes de 1988, como proclamou Ulysses Guimarães em seu mais famoso discurso [3]:

É axiomático que muitos têm maior probabilidade de acertar do que um só. O governo associativo e gregário é mais apto do que o solitário. Eis outro imperativo de governabilidade: a co-participação e a co-responsabilidade.

Sessão da CPI da Transolímpica, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 10/12/2019. Fonte: ASCOM — CMRJ.

Outro importante mecanismo de controle informal da política convencionou-se chamar de reserva institucional. Para entender melhor o que o termo significa, é preciso, primeiro, analisar o poder político como um determinado conjunto de espaços discricionários, conformados uns aos outros e limitados por instituições [4]. Em nosso contexto, isso significa dizer que o Presidente Jair Bolsonaro não é só guiado pela Constituição, mas também por preferências e liberdades legítimas de membros dos outros poderes. Por exemplo, o poder de pauta [5] de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, ambos presidentes, respectivamente, das casas legislativas do Congresso Nacional, pode se tornar grande obstáculo às vontades da Presidência da República, principalmente se não houver acordo entre os três sobre o que deve, ou não, ser prioridade na agenda política do país. O mesmo ocorre com ambos os presidentes dos trabalhos no Legislativo Federal se Bolsonaro decidir vetar todos os projetos de lei votados e aprovados pela maioria de parlamentares do Congresso. O uso desses espaços de liberdade política consignados na chamada Carta Cidadã, de forma harmoniosa e cooperativa, exemplifica reservas institucionais necessárias à sobrevivência da democracia no Brasil. É justamente pelo exposto, que os requisitos para a abertura e o trâmite de um processo de impeachment da Chefia do Poder Executivo federal, de ministros de Estado ou de ministros do STF, são eminentemente políticos, ainda que dependam de base factual e jurídica (ou seja, o cometimento dos chamados crimes de responsabilidade previstos na Lei 1.079 de 1950).

Por fim, destacam-se os ritos e costumes do Poder como outro relevante mecanismo informal de aproximação das instituições democráticas. Além de conferirem certo senso de continuidade à República, tais ritos marcam o elo tênue entre instituições de Estado e o Governo. As primeiras, projetadas de forma perene, duradoura, pela Assembleia Nacional Constituinte e o segundo, por definição, temporário, desenhado de modo a estimular sua transitoriedade após determinado período. O mais conhecido deles aqui no Brasil é a cerimônia de posse na Presidência, durante a qual, por meio de forte simbolismo, os três poderes constituídos e o Ministério Público Federal encontram-se representados. O presidente eleito, então, jura defender a Constituição e a harmonia entre todos os componentes da máquina democrática nacional.

A tolerância comum e mútua, as reservas institucionais, os ritos e os costumes fazem parte de um conjunto amplo e não-taxativo de normas não escritas da política em um Estado Democrático de Direito. Convém apontar, ainda, que as soluções abordadas ao longo deste artigo apresentam-se como engrenagens informais do sistema de freios e contrapesos adotado no Brasil e em boa parte das democracias contemporâneas. Entendê-los é um exercício fundamental de cidadania, além de necessário a qualquer um que deseje estudar as relações de poder em nosso país. Encerro a minha breve intervenção com um dos mais famosos aforismos de Platão:

O preço a pagar por sua indiferença à política é ser governado por indignos.

Notas de Rodapé:

[1] Matéria disponibilizada no Portal da UOL Notícias: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/02/02/fhc-visita-lula-no-sirio-para-expressar-condolencias-por-marisa-leticia.htm

[2] Estágio de assessoria parlamentar exercido no período de junho de 2019 até abril de 2020

[3] O discurso imortal de Ulysses Guimarães foi realizado na sessão de 5 de outubro de 1988, marcando a promulgação do diploma constitucional vigente, disponibilizado no portal Escrevendo a História, da Câmara dos Deputados: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25-anos-da-constituicao-de-1988/constituinte-1987-1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20-%20DISCURSO%20%20REVISADO.pdf

[4] Definição autoral

[5] O poder de pauta dos Presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados consiste no controle do trâmite dos projetos de lei que comporão a Ordem do dia em ambas as casas legislativas. Ver artigo 17, inciso II do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e artigo 48, inciso VI e IX do Regimento Interno do Senado Federal.

Bibliografia:

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel (2018). Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar.,2018

SANTOS, Wanderley Guilherme dos; CORRÊA GUIMARÃES, Fabrícia (2018). A Difusão Parlamentar e o Sistema Partidário. Rio de Janeiro: Editora UFRJ

BONAVIDES, Paulo (2018). A Constituinte de 1987–1988 e a Restauração do Estado de Direito. Texto em Comentários à Constituição do Brasil; São Paulo: Editora Saraiva

VERMEULE, Adrian (2007). Mechanisms of Democracy, Institutional Design Writ Small. Nova Iorque: Oxford University Press

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.