Coluna | Arte, crime ou dever? Qual papel do cinema na Alemanha nazista?

Por Aron Giovanni de Oliveira

O Veterano
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9 min readMar 17, 2021

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Antes de tudo, há de se contextualizar! O aspecto a ser tratado na construção discursiva deste ensaio faz referência ao capítulo “Deveres de um cidadão respeitador das leis”, do livro de Hannah Arendt “Eichmann em Jerusalém”. Neste, a autora discorre acerca do que o ex-oficial nazista Eichmann, responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração e extermínio, usou de defesa às acusações de ser responsável pelo assassinato em massa do povo judaico na Alemanha Nazista. Ele argumentava — evocando sua orientação pessoal de vida e a própria filosofia moral de Kant — sobretudo que apenas cumprira o seu dever em questão como cidadão. Mas o que isso significa? Seria Eichmann apenas um cidadão comum que obedecera às leis vigentes — no caso, as de Adolf Hitler?

“Eram assim que as coisas eram, essa era a nova lei da terra, baseada nas ordens do Führer, tanto quanto podia ver; seus atos eram os de um cidadão respeitador das leis.” (ARENDT, 1999, p.152).

Nesse contexto, o ex-oficial insistentemente justificou perante as autoridades em seu julgamento, que não só obedecia às ordens, mas às leis. Como seguidor da moral kantiana no que tange à origem da vontade, sendo ela sempre tal qual pudesse ser transformada em leis gerais, Eichmann afirmava não ter escolha. No caso de um cidadão alemão “agir de tal modo que o Führer, se souber, a aprove.”

Com base nessas afirmações de Eichmann, Arendt conclui que o bem e o mal, mesmo que bem definidos outrora, estavam perdidos em um cenário em que as leis de Hitler eram onipresentes e soberanas a toda e qualquer concepção — seja ela pessoal, pública ou privada. A concepção do líder nazista que redefiniram o bem e o mal, a validade da palavra e da ordem do Führerr independia do espaço físico ou simbólico e do lugar; tornavam-se leis oficiais imediatamente. Arendt conclui:

No Terceiro Reich, o mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem — a tentação. Muitos Alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição) e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação. (ARENDT, p. 167, 1999.)

Com essa conceituação sobre o que as leis, as ordens e o dever significavam para os nazistas a partir de Eichmann, podemos prosseguir para a segunda etapa da reflexão: essa diz respeito ao cinema, ferramenta política para consolidar e assegurar fixação ideológica e controle das massas. Mas de que modo o cinema foi utilizado pelo regime nazista como propaganda política?

A primeira metade do século XX foi marcada pela ascensão e consolidação de regimes que utilizaram dos meios de comunicação para controlar a opinião pública através do dispositivo da propaganda política e é este ponto que vamos explorar. Compreendida como um fenômeno da sociedade e da cultura de massas, a propaganda política se firmou de fato nas décadas de 1920 e 1940, com o avanço tecnológico destes meios. Se valendo de conceitos e ideias, a própria propaganda os transformou pelo recurso da imagem, dos símbolos, mitos e utopias transmitidos pelas mídias. (PEREIRA, 2003)

Como principal e crucial ferramenta da propaganda está a sedução — elemento emocional de grande eficácia para adesões políticas que em qualquer regime se torna uma ótima estratégia. Utilizando-se dela, o Estado, com o monopólio ou a censura dos meios de comunicação, exerce seu poderio em um rigoroso controle sobre o conteúdo das mensagens veiculadas, em busca de impedir a proliferação e a existência de atividades espontâneas ou contrárias à ideologia vigente.

Dentre todos os meios de comunicação utilizados, como poder e controle psicológico das massas, o cinema aparece em grande privilégio. No tocante à Alemanha nazista, o interesse do governo pela utilização cinematográfica, com fins promovedores e propagandísticos, surge na Primeira Guerra Mundial (1914–1918) visando ao controle das informações e propagandas divulgadas pela Tríplice Aliança. Nesta, a Universum Aktien Gesellschoft, mais conhecida como Ufa, foi um projeto do Estado Alemão financiado pelo alto comando militar.

Na república de Weimar (1918–1933), o governo continuou mantendo a Ufa e, por volta de 1927, o controle societário passou para Alfred Hugenberg. Com a ascensão de Hitler ao poder, Hugenberg foi ministro da economia e deixou o Ministério da Propaganda do Terceiro Reich para Joseph Goebbels. O cinema foi, consideravelmente, o setor que recebeu maior atenção e financiamento do regime. Desde o momento inicial de sua carreira política, Hitler usou o cinema para veiculação de ideologias e para conquistar o apoio popular de massa. Como exemplo, podemos citar um dos principais longas-metragens de destaque dessa época: o Parteitag des NSDAP in Nürnberg (O congresso do NSDAP em Nuremberg, 1927).

Em 1933, com a criação do Ministério do Terceiro Reich para explicitar a propaganda (Reichsministerium für Volksauflärung und Propaganda), ocorreu o processo de “nazificção” de todas as atividades artísticas e culturais da Alemanha.

Em um período de 12 anos de regime nazista, estima-se a produção de mais de 1.350 longas metragens que buscaram enaltecer o nazismo, estimular a grande maioria da população a participar da experiência nazista. Assim, a Alemanha se tornou o segundo lugar nas produções cinematográficas mundiais — perdendo apenas para os EUA. Grande parte dessas produções estavam como “entretenimento”, sendo filmes aparentemente escapistas com propaganda indireta, mesmo quando diluíam em seus enredos algumas conotações políticas ideológicas.

Nos anos 1930, o regime buscou construir uma imagem idealizada de si, e foram produzidos os primeiros filmes partidários e patrióticos apresentando comunistas e judeus como grandes inimigos da Alemanha. O bem e o mal eram muito definidos e explicitamente marcados.

Ainda em 1933, foi a vez de glorificar a figura do líder Hitler com a produção de “Der Sieg des Glaubens” (A vitória da fé, 1933) sob direção de Leni para documentar o primeiro congresso do partido nazista em Nuremberg após a ascensão de Hitler. Esse filme foi considerado apenas um ensaio cinematográfico para a mais importante produção “Triumph des Willens” (Triunfo da Vontade, 1935), sob a mesma direção.

Outro tema recorrentemente tratado era o nacionalismo alemão e a supremacia da raça ariana. Muitos filmes tinham histórias de cidadãos nos campos desempenhando práticas culturais típicas e demonstrando força física e virtudes da raça pura ariana.

Com o início da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), o cinema nazista produziu quatro tipos de filmes de propaganda de guerra: 1) os cinejornais semanais, intitulados Die Deutsche Wochenschau; 2) os documentários de campanhas militares: Feldzug in Polen (“Campanha da Polônia”, 1939), Feuertaufe (“Batismo de Fogo”, 1940) e Sieg im Westen (“Vitória no Ocidente”, 1941); 3) os filmes ficcionais (musicais, romances, dramas, aventuras) de guerra: Wunshkonzert (“Concerto a Pedidos”, 1940) Stukas (1941), Die große Liebe (“O Grande Amor”, 1942); e 4) os filmes históricos: Bismarck (1940), Die Entlabung (“A Demissão”, 1942) e Der große König (“O Grande Rei”, 1942). (PEREIRA, W.P. p.27 2003)

Popular atriz para o público alemão, Leni Riefenstahl dirigiu seu primeiro longa-metragem, Das blaue Licht (A Luz Azul), em 1932. O filme foi bem recebido e, o mais importante, atraiu a atenção de um político em ascensão que se orgulhava, ele mesmo, de ter ambições artísticas: Adolf Hitler. No mesmo ano, Leni ouviu Hitler falar em uma manifestação pública e foi arrebatada por sua oratória e sua capacidade de hipnotizar o público.

Hitler viu Leni Riefenstahl como uma diretora que poderia usar a estética para produzir a imagem de uma Alemanha forte, imbuída de princípios wagnerianos de poder e beleza. Em 1933, ele pediu a Riefenstahl que dirigisse um curta-metragem, Der Sieg des Glaubens (A Vitória da Fé), filmado no Encontro do Partido Nazista em Nuremberg. O filme foi um modelo para o trabalho mais famoso de Leni Riefenstahl, Triumph des Willens (Triunfo da Vontade), filmado no Encontro de Nuremberg no ano seguinte, em 1934.

Leni inicialmente rejeitou a comissão de Hitler para o filme, pois queria dirigir uma obra baseada em uma das óperas favoritas do Führer: Tiefland (Terra Baixa), de Eugen d’Albert. Ela recebeu financiamento privado para Tiefland, mas as filmagens na Espanha foram atrasadas e o projeto cancelado. Com isso, resolveu ceder ao apelo de Hitler quando recebeu recursos ilimitados e licença artística completa para o registro do encontro nazista.

Triunfo da Vontade, com suas imagens evocativas e técnica de filme inovadora, é classificada como uma obra épica de filmagem documental e amplamente considerada como um dos filmes de propaganda mais magistrais já produzidos. O documentário ganhou vários prêmios por sua técnica, mas sempre foi relacionado o tema do filme, o nacional-socialismo, com o nome de Leni Riefenstahl.

Igualmente impressionantes foram os esforços de direção da diretora em Olympia, que capturou com grande eficácia as imagens dos Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim. Foi o trabalho em Olympia que fez de Leni Riefenstahl uma pioneira em numerosas técnicas cinematográficas, como a realização de filmagens com câmeras montadas em trilhos (conhecida hoje como travelling), e o uso de imagens em câmera lenta. A mistura vigorosa de estética, esportes e propaganda de Olympia ganhou novamente elogios e prêmios para Leni, incluindo as honras de melhor filme estrangeiro no Festival de Cinema de Veneza e um prêmio especial do Comitê Olímpico Internacional (COI) por retratar a alegria do esporte.

A chegada da Segunda Guerra Mundial e a rápida escalada de violência sob o regime nazista tiveram um efeito desfavorável tanto em Leni Riefenstahl quanto em sua carreira. No início da campanha alemã contra a Polônia, um incidente abalou a confiança dela no movimento nazista, que a diretora havia glorificado em imagens cinematográficas. Enquanto acompanhava os exércitos perto de Konskie, a cineasta testemunhou a execução de civis poloneses em retaliação a um ataque da resistência contra as tropas alemãs. Leni, aparentemente, abandonou suas filmagens naquele dia, a fim de fazer um apelo pessoal a Hitler contra essa violência arbitrária. O incidente pode ter plantado uma semente de dúvida na mente da diretora, mas não a impediu de filmar o desfile triunfal de Hitler em Varsóvia apenas algumas semanas depois.

Após as obras sobre Nuremberg e Olympia, Riefenstahl começou a trabalhar no filme que havia tentado sem sucesso dirigir antes: Tiefland. Por ordem direta de Hitler, o governo alemão pagou sete milhões de Reichsmarks como financiamento. De 23 de setembro a 13 de novembro de 1940, ela filmou em Krün perto de Mittenwald. Os extras que interpretavam mulheres e agricultores espanhóis foram arregimentados de ciganos detidos em um campo em Salzburg-Maxglan, que foram forçados a trabalhar com ela. As filmagens nos estúdios Babelsberg, perto de Berlim, começaram 18 meses depois, em abril de 1942. Desta vez, ciganos do campo de detenção de Marzahn foram obrigados a trabalhar como extras.

Leni Riefenstahl é considerada uma das figuras mais controversas da história. Ela não acreditava que havia produzido filmes de propaganda política para o regime nazista, considerando suas produções puramente artísticas e sem nenhum cunho que fugisse do performatividade da arte visual.

Dos quatros julgamentos pelos quais passou, Leni absolvida por três, não podendo contudo contestar sua vinculação ao Partido Nazista. O modo como desejo tratar Leni neste último ponto de reflexão é orientado pelo que Arendt escreve acerca do dever e da não responsividade dos atores perante seus crimes relacionados ao regime nazista. Eichmann acreditara ser um cidadão respeitador das leis e das ordens da Alemanha e de Hitler; Leni acreditara ser uma cineasta — uma artista — no exercício de sua profissão e arte, sem nenhuma intenção de contribuir com o regime e afirmava haver uma grande ingenuidade quanto à finalidade de suas produções. Para Leni, o cinema não serviu como um ator social e político, tampouco como um instrumento de controle psicológico das massas — ela teve apenas o Führer e o regime como focos principais e primordiais.

No que tange as justificativas dos dois referidos personagens, não perceber o mal e a potência de suas ações em um Regime que violava sistematicamente direitos humanos, demonstra como a idolatria ideológica pode ser perigosa e perversa.

Ambos contribuíram para o desenvolvimento, de modo geral, da grande maquinaria que o Terceiro Reich colocou em prática, que visava a soberania do povo ariano, o extermínio em massa dos judeus e de outros povos étnicos e que foi responsável pelo fim cruel e violento de milhares de pessoas. O intuito máximo deste ensaio é demonstrar que o cinema é um instrumento político e pode ser incorporado para inúmeros fins. Mais ainda, é alertar sobre a idolatria ideológica e a necessidade de reflexividade e autocrítica. Mesmo que o mais poderoso líder, no mais alto posto hierárquico, se encontra livre de questionamentos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém — um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: companhia das letras, 2000.

PEREIRA, W. P. “ Cinema e propaganda política no fascismo, nazismo, salazarismo e franquismo.” 2003.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.