Coluna | Beethoven Fest: harmonia em tempos dissonantes

Por Leonardo Fernandes de Sá

O Veterano
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10 min readJul 21, 2021

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Capa: acervo publicitário — Beethoven Fest 2021

Nos sábados dos dias 03/07, 10/07 e 17/07 a Cidade do Rio de Janeiro foi brindada com mais uma edição anual do Beethoven Fest. Trata-se de uma ode ao compositor mais conhecido do mundo que neste ano completa 251 anos. A proposta do espetáculo e seu layout, segundo os idealizadores Nivaldo Tavares e Mário Barcelos, é a de aproximar o público com o universo da música clássica, mostrando que várias das composições que o ouvinte capta em filmes, séries, telenovelas, dentre outros formatos típicos na era da tele e radiodifusão de comunicação em massa, pertencem a Beethoven (aquele fenômeno corriqueiro de conhecermos a melodia sem termos a menor ideia de quem é o autor). O evento uniu três elementos que aqui serão abordados e avaliados de forma a garantir ao leitor uma visão completa acerca de sua dimensão como aparelho cultural: a Cidade das Artes, a Orquestra Rio Sinfônica e o Repertório beethoveniano escolhido, bem como sua execução.

Mas antes, afinal, quem foi Beethoven?

Retrato feito por Joseph Karl Stieler, em 1820

Nascido em Bonn, cidade situada no atual estado alemão da Renânia do Norte-Vestefália (antigo Eleitorado de Colônia, membro político e administrativo do Sacro Império Romano-germânico), em dezembro de 1770, Ludwig van Beethoven teve infância bem diferente de outros consagrados compositores como Mozart. Apesar de já apresentar desde cedo sinais de talento para a música, não era tido como um menino-prodígio. Iniciou estudo do cravo bem cedo, tornando-se, já em 1784, organista-assistente da Capela Eleitoral (de Colônia). Em 1787, graças à amizade cultivada com o Conde Waldstein — que reconheceu de pronto seu talento — foi enviado a Viena para estudar com Haydn, com seus estudos financiados pela coroa austríaca. Mudou-se definitivamente para a capital em 1792, quando, segundo o célebre historiador brasileiro da música Otto Maria Carpeaux, “sua vida de fato começou”, conquistando fama por suas auspiciosas improvisações no piano. Sendo um compositor suis generis, um verdadeiro quebrantador de paradigmas, suas primeiras obras causaram certo mal-estar entre a intelligentsia germânica conservadora, mas obtiveram grande sucesso junto ao público. Aliás, aqui cabe um parêntesis: diferentemente de seus predecessores, Beethoven escrevia para o povo. Na chama de sua juventude, o gênio tinha um temperamento difícil. Sua sorte é que seus mecenas, importantes príncipes e condes da coroa austríaca, além de generosos eram complacentes com o seu perfil rebelde tipicamente atribuído a essa idade. Todos os prazeres que lhe foram negados pelo pai alcoólatra e rígido em Bonn agora eram permitidos em Viena. Vivia até então uma vida feliz e despreocupada em meio a aristocracia local de seu tempo, dizem que sonhando com uma dessas condessas cujo nome ignoramos (seria a amada imortal de Beethoven mencionada em suas correspondências, talvez a musa inspiradora da famosa Sonata ao Luar?).

Em sua segunda fase musical, já no início do século XIX, foi acometido com a misteriosa doença nos ouvidos que foi, aos poucos, até o final de sua vida, tomando a sua audição. Isso não o impediu de agarrar seu predestinado posto de compositor triunfal. Já em 1814, Beethoven foi considerado pelos diversos membros do Congresso de Viena como o maior compositor do século, comparado apenas com Goethe. Junto com o sucesso, veio a recompensa financeira. Com tamanha independência, o homenageado foi considerado o primeiro compositor a impor condições aos seus editores. Um verdadeiro Napoleão da música, como ele mesmo gostava de se intitular — um Napoleão sem Waterloo, conforme brilhantemente observado por Carpeaux.

Já na terceira fase, a mais melancólica de sua vida, Beethoven ficou completamente surdo, isolando-se da vida pública. Assumiu então aquela figura de “esquisitão malvestido e cabeludo” que conhecemos das recordações de sua época, o carrancudo que briga com os próprios vizinhos sem lhes ouvir a resposta. Continuou compondo obras abstratas que ninguém à época entendia, mas escutava e respeitava por pertencerem ao grandioso compositor germânico. Seu último concerto foi em 1824. Ludwig já não se encontrava mais em condições de reger. Morreu em 1827, quase na miséria, mas eternizando o seu nome na história da humanidade.

De elefante branco à joia da Barra: a Cidade das Artes

Diego Baravelli — Obra do próprio / Vista aérea da Cidade das Artes na Barra da Tijuca, localizada na cidade do Rio de Janeiro — CC BY-SA 4.0

A polêmica obra “concluída inacabada” em 2008, pelo então prefeito César Maia, foi definitivamente inaugurada em 2013. O local homenagearia Roberto Marinho. Entretanto, sua família não quis ver seu nome associado à obra, pois a Cidade das Artes estava prevista para ser inaugurada em 2004, com orçamento de 80 milhões de reais. O montante total investido (também suposta e parcialmente desviado) totalizou-se em R$ 518.000.000. O monumento conta também com uma passagem para o Terminal Alvorada de BRT e Ônibus, que, não é preciso discorrer muito sobre, é inutilizada. O acesso se dá primordialmente, como tudo na Barra, por automóveis. Com cerca de 740 vagas de estacionamento, um café, um restaurante, jardins, espelhos d’água, uma praça e tudo o que se esperaria de um grande complexo artístico-cultural, a Cidade das Artes fica em um terreno de 95 mil m²: dá e sobra espaço para todo e qualquer tipo de evento ao ar livre ou dentro de suas inúmeras salas multiuso.

Já fica mais fácil de imaginar a difícil tarefa para a Fundação — de mesmo nome do edifício — que administra o local, com parceria entre a Prefeitura e a Riotur, em dispor de todo o aparato infraestrutural para que a Cidade das Artes não seja subutilizada.

Se o tamanho não impressionou, a arquitetura vanguardista de Christian de Portzamparc talvez o faça: o audacioso projeto se utiliza amplamente de elementos tipicamente modernistas — 1) a incorporação de um imenso pilotis com elementos naturais, 2) o concreto aparente que constantemente franze as sobrancelhas da elite barrense, 3) as aberturas e amplidões que permitem a iluminação natural e a circulação do ar tornando o ambiente extremamente fresco e agradável, e 4) as formas retangulares utilizadas para estruturar o Teatro de Câmara e parte da fachada. Também são usados elementos essencialmente contemporâneos, tais como: 1) a assimetria combinada ao uso inteligente de curvas simulando ondas sobrepostas na fachada e nas rampas, 2) a abertura pronunciadamente côncava no meio do primeiro andar do edifício, criando uma percepção de estar à céu aberto, e 3) as colunas inclinadas que sustentam o prédio.

O escândalo por trás da construção, os custos de manutenção e o frequente barulho das festas realizadas no pilotis do edifício geram comentários zangados dos moradores do bairro e da cidade do Rio. Contudo, o imenso potencial, a beleza e o aproveitamento dado à Cidade das Artes no campo cultural, em especial nestes tempos pandêmicos, transformam-na em uma verdadeira joia, símbolo da Barra da Tijuca e importante monumento carioca.

Orquestra Rio Sinfônica: um futuro promissor

Ensaio — acervo do perfil rio_sinfonica no Instagram

Desde que o Theatro Municipal e sua Orquestra foram surrupiados da Cidade do Rio (quando ocorreu a dissolução da Guanabara, em 1975) pela esfera estadual, os cariocas ficaram órfãos de um corpo de artistas especializados em música clássica que oficialmente carregam o estandarte do município não só pela cidade, mas por todo o país e mundo afora. A iniciativa dos dois amigos, o pianista Nivaldo Tavares e o regente Mário Barcelos, tomada no início do ano passado, foi o primeiro passo para a reversão deste tenebroso quadro: datou-se ali a criação da Orquestra Rio Sinfônica (https://www.facebook.com/riosinfonica). Com uma composição ainda não fixada numericamente, a orquestra conseguiu reunir, no dia 17/07/2021, mais de 50 músicos, incluindo 3 solistas no palco da Grande Sala da Cidade das Artes, e tem como propósito existencial a difusão da música clássica para a população em geral. É importante mencionar que o local-sede do Beethoven Fest também funciona como a casa da recém-criada orquestra, evidenciando ainda mais a importância e a utilidade que o administrador público municipal vem conferindo à joia da Barra. O grupo também atua em parceria com a Orquestra Sinfônica Jovem do Rio (https://www.orquestrajovemrj.com.br), em especial no Festival que homenageia Beethoven, objeto desta pequena resenha.

O Beethoven Fest de 2021: realização, repertório e execução

Cabe aqui uma nota sobre a realização do evento antes de avaliar no mérito as apresentações: critérios rigorosos de segurança biológica foram seguidos à risca pela equipe de realização do Beethoven Fest durante todos os dias de apresentação. Dos 1235 lugares da Grande Sala, apenas 466 puderam ser ocupados pelos espectadores adquirentes de ingressos vendidos sempre aos pares, com a separação de duas cadeiras à frente, atrás e aos lados. Além disso, diversos postos de higienização com álcool gel 70% foram criados, minimizando aglomerações evitáveis e auxiliando nas boas práticas constantes das Regras de Ouro impostas pela Prefeitura do Rio. Uma questão que desapontou muitos espectadores incautos da Grande Sala é a visibilidade das galerias e camarotes: por se localizarem no alto da sala, os arquitetos precisaram, por força de regulações legais, inserir corrimãos e hastes metálicas para impedir quedas, o que sacrifica parte da visão para o palco. Recomenda-se cautela com relação a esse problema sempre que o leitor for a algum evento em salas modernas de teatro aqui no Brasil. Vamos ao repertório e execução:

No dia 03/07/2021, na abertura do festival, Nivaldo e Mário lançaram-se no desafio de atuar com a Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro, com o seguinte programa:

Concerto para Piano Nº 1, em Dó Maior, Op.15

I. Allegro con brio

II. Largo

III. Rondo: Allegro scherzando

Sinfonia Nº 1, em Dó Maior, Op.21

I. Adagio molto — Allegro con brio

II. Andante cantábile — con moto

III. Menuetto — Allegro molto e vivace

IV. Finale — Adagio, alegro molto e vivace

Apesar de consagrado, o Concerto para Piano nº 1 de Beethoven, obra finalizada em 1798, deixa muito a desejar, em especial por ser uma obra da mocidade do compositor que não representa o estágio de sua maturidade como artista, passando uma falsa impressão sobre o homenageado. A execução foi bem agradável dentro das limitações já expostas anteriormente, com a exceção de uma “leve desafinada” do instrumental de sopro durante o segundo movimento. A Sinfonia nº1 também não é uma obra notável, mas a execução da Orquestra Jovem com a regência de Mário Barcelos iluminou a composição dedicada ao Barão van Swieten. Resta dizer que a escolha de ambas as peças, de mesmo tom, não foi tão bem-sucedida no objetivo de introduzir o espectador às grandes obras de Ludwig van Beethoven posto que, como já repisado, nenhuma das duas representa a grandiosidade do artista germânico, apesar de, embrionariamente, carregarem seu estilo.

No dia 10/07/2021, Nivaldo Tavares, Tobias Volkmann e a Orquestra Rio Sinfônica apresentaram o seguinte programa:

Concerto para Piano №5, em Mi bemol maior, Op. 73, “Imperador”

I. Allegro

II. Adagio un poco mosso

III. Rondo

Sinfonia №6, em Fá Maior, Op. 68, “Pastoral”

I. Allegro ma non troppo: Despertar de sentimentos alegres diante da chegada ao campo

II. Andante molto mosso: Cena à beira de um regato

III. Allegro — Dança campestre

IV. Allegro — A tempestade

V. Allegretto — Hino de ação de graças dos pastores, após a tempestade

A escolha do repertório no segundo dia das festividades foi excepcional. Tanto Imperador como a Pastoral são obras não só consagradas como pertencentes ao grupo das mais conhecidas e reverenciadas. Nivaldo Tavares dominou o piano como se o Concerto Imperador tivesse sido composto para ele mesmo. Volkmann, nome já bastante conhecido no cenário musical brasileiro, fez jus a sua fama, com a belíssima regência de uma sinfonia que sempre me emociona, especialmente em seu último movimento.

No dia 17/07/2021, no encerramento do Festival, Ana de Oliveira (violino), Hugo Pilger (violoncelo), Flávio Augusto (piano), Mário Barcelos e a Orquestra Rio Sinfônica apresentaram o seguinte programa:

Concerto Tríplice, em Dó Maior, Op. 56

I. Allegro

II. Largo (attacca)

III. Rondo alla polacca

Sinfonia №5, em Dó Menor, Op. 67

I. Allegro con brio

II. Andante con moto

III. Scherzo — Allegro

IV. Allegro — Presto

O pianista e fundador da Rio Sinfônica Nivaldo Tavares abriu a apresentação com algumas palavras, em especial sobre a marca de Beethoven ao final de suas composições mais importantes: a sensação de triunfo que o compositor fazia questão de transmitir aos seus ouvintes. Não à toa, como já dito, Carpeaux o considerava um “Napoleão sem Waterloo”: finais estrondosos, sempre na melhor acepção do termo, ao menos em suas músicas. Sobre o repertório, foi muito bem pensada a combinação da obra mais famosa de Beethoven, a Sinfonia nº 5 (também conhecida como Sinfonia do Destino) com o Concerto Tríplice, não tão conhecido mas merecedor da mesma fama. Sobre a execução, impecável a participação dos 3 solistas e da Orquestra Sinfônica do Rio, à exceção de um breve momento no segundo movimento do Concerto em que as transições entre as notas tornaram-se mais bruscas, suprimindo parcialmente a sonoridade das cordas do violino e violoncelo.

Terminamos por aqui com algumas breves constatações. A primeira delas é a consolidação do Beethoven Fest como um festival anual celebrado na Cidade das Artes, e de Nivaldo Tavares e Mário Barcelos como artistas de relevante expressão e influência no circuito clássico do Rio de Janeiro. A segunda, um desabafo: é simplesmente deplorável que, em três dias (sábados) de um evento com a participação de importantes instituições da Cidade do Rio, nenhuma autoridade pública de primeiro escalão da esfera municipal tenha participado sequer como ouvinte. É muito importante que figuras de autoridade frequentem espaços culturais, promovendo o uso e a valorização dos aparatos artísticos do município. O povo que não vislumbra seus exemplos agindo exemplarmente está fadado ao fracasso social e humano. A terceira constatação acompanha uma sugestão: talvez o uso de uma claque marcando os momentos de aplausos durante espetáculos como concertos e recitais seja extremamente salutar. Não apenas uma vez a plateia confundiu-se em relação aos intervalos dos movimentos tanto das sinfonias quanto dos concertos, deixando de aplaudir quando queria e de fato deveria. A quarta e última: o Beethoven Fest de 2021 foi um sucesso retumbante apesar das dificuldades impostas pela pandemia e simboliza o início da retomada que a sociedade carioca não só aguarda, como fez por merecer.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.