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Coluna | Economista Também Faz: Economia da Educação — Parte I

por Raul Guarini & Rebeca Vitelbo

O Veterano
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Published in
8 min readNov 19, 2020

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Após a coluna de estreia falando sobre Desenho de Mecanismos, vamos a um outro tema que ganhou muito destaque entre os economistas, em especial, nos últimos trinta anos: Educação. Ao não-economista, pode parecer estranho que alguns economistas dediquem-se a ter o campo da Educação como área de estudo. Mas como Gary Becker nos ensina desde a década de 60, Economia é tanto mais um método, uma maneira de pensar, do que um só tema.

Há pelo menos duas grandes abordagens distintas com relação à Educação entre os economistas. A primeira vive no mundo do que alguns denominam “Microeconomia Aplicada”, onde também inserem-se a Economia da Saúde, Economia do Meio Ambiente e a Economia do Trabalho, por exemplo (sim, muitas possibilidades de colunas no Veterano). A segunda vive no mundo da boa e velha Macroeconomia, algumas vezes sob o disfarce de termos como “Economia do Desenvolvimento” ou “Desenvolvimento Econômico”. Como o tema é extenso e pode ser abordado destas duas maneiras, resolvemos dividir o assunto em duas colunas. Primeiro, discutiremos a Microeconomia da Educação. Na próxima coluna, falaremos da Macroeconomia da Educação. Fazendo alusão ao filme de 1992 de Peter Hyams, “stay tuned”!

A Microeconomia da Educação

Nomenclaturas à parte, a primeira abordagem concentra-se em aspectos mais localizados: que tipo de intervenções governamentais melhoram desempenho escolar? Como alunos respondem a mecanismos de incentivos diferentes? Como as escolhas de carreira são impactadas por fatores socioeconômicos e demográficos? Estas questões são típicas da Microeconomia da Educação. Aqui cabe um comentário importante que será relevante não só agora, mas sempre que falarmos de algum tema sob o guarda-chuva da Microeconomia Aplicada. Por que estaria um economista apto a ajudar a responder estas perguntas já que, afinal, não há treinamento em pedagogia numa graduação em Economia? A resposta cínica é que economistas são palpiteiros por natureza e vão opinar sobre todos os temas possíveis (basta procurar pela hashtag #EconTwitter e você ficará surpreso). No entanto, a resposta mais adequada advém do nosso treinamento estatístico para lidar com causalidade e incentivos.

Existe uma diferença fundamental entre o economista que faz previsões no mercado financeiro e o economista que analisa dados sobre educação de maneira acadêmica. A diferença central entre os dois é que o primeiro, por exemplo, preocupa-se com antecipar algum movimento do mercado, prever se algum preço vai cair ou aumentar. A razão pela qual o preço aumentou ou caiu pouco importa. O canal pelo qual o fenômeno ocorre é de segunda importância. O microeconomista aplicado, em especial aquele que trabalha com Educação, não busca prever notas de alunos no ENEM, mas, sim, entender o motivo de alunos aparentemente similares terem notas tão diferentes, por exemplo. Este segundo economista preocupa-se em estabelecer um nexo causal entre determinadas variáveis, ainda que isto não seja necessariamente útil para previsões. O primeiro, ao ver fumaça, logo pensa: “deve haver fogo em algum lugar”. O segundo, ao contrário, preocupa-se mais em entender qual o motivo do fogo, qual o motivo de ter ocorrido fogo em um lugar e não no outro, etc.

Para ter dimensão do motivo pelo qual isso é tão necessário em microeconomia aplicada e, em especial, no estudo da Educação, vamos a um exemplo. Suponha que você esteja interessado em estimar o quanto mais uma pessoa pode esperar ganhar em termos de salário se fizer uma graduação numa instituição renomada em detrimento de uma instituição de menor expressão. O analista mais ingênuo poderia ter a seguinte ideia: “Ora, basta comparar as médias salariais dos dois grupos ao fim do curso, isto é, comparar quanto ganha em média alguém que frequentou uma graduação renomada com quanto ganha o colega que frequentou a outra instituição”.

O economista bem treinado seria opositor ferrenho desta ideia. Sua insatisfação seria baseada na observação de que os grupos sociais que frequentam as duas instituições já são possivelmente muito diferentes na entrada. Os alunos escolheram frequentar uma ou outra instituição baseados exatamente nestas diferenças. Por exemplo, se a instituição renomada de fato custar mais caro, então apenas os alunos mais ricos irão frequentá-la. Isso provavelmente implica que os alunos desta instituição têm mais acesso a bens culturais e conexões empresariais, o que pode levar a melhores oportunidades de emprego. E isso em nada tem a ver com a qualidade em si da instituição. A estratégia delineada pelo estatístico, portanto, superestimaria o valor do diploma da instituição renomada, considerando apenas o salário após a formatura.

Conseguir separar o que é um efeito causal de uma simples correlação é o desafio diário do microeconomista aplicado e, em especial, do economista que estuda Educação. Nesse caso específico, há muitos fatores que não são aleatórios e, muitas vezes, são difíceis de serem observados. Escolhas educacionais são tomadas por pessoas que levam em consideração fatores pessoais e socioeconômicos que as tornam únicas. O mesmo vale para o próprio desempenho escolar dos alunos.

Como outro exemplo, suponha que determinada prefeitura queira avaliar a qualidade dos seus professores. Para tal, decide criar uma prova e avaliar os professores de acordo com o desempenho dos alunos nesta prova. O economista bem treinado logo levantaria a seguinte objeção: como medir a qualidade do ensino se não temos certeza de que todos os professores receberam alunos similares? Poderia muito bem ser o caso em que determinado professor estivesse realizando um trabalho excepcional numa turma que há muito vinha tendo dificuldades e, por isso, não teve bom desempenho na prova. Gostaríamos de medir, no jargão dos economistas, o “valor adicionado” pelo professor, e não o desempenho final. Ocorre, infelizmente, que nunca podemos observar nos dados o que teria acontecido com um grupo de alunos caso outro professor tivesse sido alocado para a turma. O treinamento estatístico dos economistas é focado em resolver esse tipo de impasse, que, em geral, pode ser entendido como um problema de seleção: quando as pessoas fazem escolhas, os dados não podem ser considerados aleatórios.

Os Econometristas da Educação

Em 2000, James Heckman e Daniel McFadden dividiram o Prêmio Nobel em Economia por suas contribuições metodológicas para responder questões exatamente como as colocadas nos exemplos acima. De maneira independente, eles atacaram duas questões metodológicas centrais para Economia da Educação. Heckman, em co-autoria com outros pesquisadores, desenvolveu técnicas para lidar com amostras que não são aleatórias. Pode parecer uma observação óbvia, mas só podemos analisar os dados que coletamos. Frequentemente, gostaríamos de analisar, na verdade, os dados que não coletamos. As técnicas desenvolvidas por Heckman permitem justamente fazer uma correção em estimativas que utilizam amostras que não são aleatórias.

Daniel McFadden apontou outra distinção importante que aparece no mercado de trabalho e no contexto da Economia da Educação: as pessoas fazem escolhas a partir de um conjunto finito e, frequentemente, bastante reduzido de alternativas. Quando escolhemos por quanto tempo estaremos assistindo a um filme no fim de semana, estamos fazendo um escolha que é basicamente contínua, ou seja, podemos escolher valores como 43 minutos e 17 segundos. Em outras escolhas enfrentadas na vida, como a escolha sobre onde matricular seu filho, não há continuidade: não podemos escolher enviar a criança a cada dia da semana para uma escola diferente, temos que escolher uma só opção a partir de um menu finito. Este tipo de restrição altera os aspectos matemáticos das técnicas que os microeconomistas aplicados utilizam em outras áreas mas que não são adequadas para a Economia da Educação. Os trabalhos de Heckman e McFadden possibilitaram uma revolução metodológica para estudar este tipo de questões.

Além das contribuições em metodologia estatística, Heckman trouxe para o debate a importância das habilidades não-cognitivas na formação dos indivíduos. Ele empreendeu um estudo sobre o programa General Education Development (GED), uma forma popular de evasores do high school americano (equivalente ao Ensino Médio) conseguirem um diploma. Um adolescente que já tivesse os conhecimentos necessários para se graduar não precisaria dedicar seu tempo de fato finalizando os anos escolares. Em contrapartida, o governo certificaria que ele é, legalmente, um graduado do high school. Heckman desejava, então, examinar mais de perto a ideia de que jovens com GEDs estavam tão bem preparados para futuras atividades acadêmicas quanto os graduados do high school.

Ao olhar para os caminhos na educação superior, observou-se que os grupos tinham trajetórias bem distintas. Ao considerar diversos tipos de resultados futuros importantes — renda anual, taxa de desemprego, taxa de divórcio e uso de drogas ilegais — os alunos do GED eram exatamente como aqueles que haviam evadido, com a diferença de possuírem um diploma e serem, na média, consideravelmente mais inteligentes do que os evasores. Ele concluiu que era importante considerar também os traços psicológicos que permitiram que os alunos graduados conseguissem finalizar a etapa escolar. Esses traços — inclinação a persistir em tarefas ingratas e entediantes; habilidade de postergar gratificações; capacidade de seguir planos — mostraram-se ser também importantes no ensino superior, no mercado de trabalho e na vida de uma maneira mais geral.

São múltiplas as razões que explicam o interesse crescente de microeconomistas pela Economia da Educação. Nos mais diferentes países e culturas, diversas políticas educacionais são aplicadas com o objetivo de melhorar o desempenho acadêmico dos estudantes, reduzir desigualdades e promover crescimento econômico, o que cria um cenário ideal de variações para que pesquisadores possam analisar o impacto destas medidas. Ademais, a educação é um tema que está relacionado a várias outras áreas de estudo — economia do trabalho, macroeconomia (como veremos à frente), organização industrial, economia do desenvolvimento e economia urbana -, possibilitando um cenário interessante de trocas de ideias e métodos entre campos. Há uma disponibilidade cada vez maior de dados de políticas educacionais sobre os quais pesquisadores podem se debruçar.

Nessa perspectiva, as possibilidades de estudos tornam-se cada vez maiores. Do lado da oferta de educação, pode-se pensar em termos dos objetivos e restrições das instituições. Aplicando modelos de política econômica, organização industrial, regulação e finanças, é possível observar como elas competem entre si e quais são suas relações com os governos e cidadãos. Além disso, como educação é também uma forma de investimento, ela pode ser guiada por uma vasta teoria que não seria aplicável se estivéssemos tratando meramente de um bem de consumo. Nesse sentido, estuda-se como os indivíduos investem em sua própria educação ou de outras pessoas. Uma análise importante é verificar se suas taxas de retorno são superiores ou inferiores a de investimentos alternativos (capital físico, por exemplo). Ao tratar escolhas educacionais como escolhas também de investimento, problemas de assimetria de informação podem surgir (se este termo te parece estranho, é uma boa ideia ler a última coluna sobre Desenho de Mecanismos aqui no Veterano!). Por exemplo, como as escolas podem sinalizar sua qualidade se as notas de seus alunos no ENEM e em outros exames depende também da bagagem cultural destes alunos e não somente do que ocorre na sala de aula?

Se você chegou até ao final deste texto, talvez você esteja se perguntando: e quais os efeitos agregados de todas essas questões? Como estas questões são refletidas em indicadores como o PIB per capta ou a Produtividade Total dos Fatores? Esse é o tema da próxima coluna: a Macroeconomia das Ideias. Em breve, aqui no Veterano.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.