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Coluna | Entes federados, problemas fiscais estruturais e a pandemia: como sairemos dessa crise? — Bruno Funchal

O Veterano
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8 min readJun 10, 2020

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Grande parte dos entes da federação vêm encarando severas restrições fiscais, isso é um fato válido para todas as esferas de governo: federal, estadual e municipal. A União registrou déficits primários consecutivos desde 2014 e a trajetória da dívida pública é crescente desde então. Estados e municípios também registram problemas fiscais graves, comprometendo boa parte de sua receita corrente com a manutenção da máquina pública — principalmente despesas de pessoal — e, consequentemente, a capacidade de realizar investimentos para a população é reduzida.

Gráfico 1: Evolução do Resultado Primário do Setor Público, Secretaria Especial de Fazenda.

Para se ter uma ideia, um estudo do Ministério da Economia apontou que mais da metade dos estados e 46% dos municípios brasileiros se enquadram em uma situação de emergência fiscal (i.e. pelo menos 95% de sua receita estaria comprometida com despesas correntes). Além disso, o Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais da Secretaria do Tesouro Nacional vem mostrando de forma repetida que o desajuste atual é notório, principalmente no que diz respeito à despesa de pessoal. De acordo com o boletim, vinte e quatro dos vinte e sete estados estão com a despesa de pessoal acima do limite prudencial (54% da Receita Corrente Líquida). Dentre os estados com a pior situação fiscal, se destacam o Rio de Janeiro — que já está no Regime de Recuperação Fiscal desde 2017 -, o Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Todos esses, além de terem o problema de fluxo, com suas despesas não cabendo dentro das receitas, ainda têm o de estoque por serem estados muito endividados.

Figura 1: Descrição dos estados de acordo com o indicador emergência Fiscal, Secretaria Especial de Fazenda.
Figura 2: Relação Poupança Corrente e Endividamento entre estados, Secretaria Especial de Fazenda.

Devido a esse desajuste fiscal, o governo federal propôs um Novo Pacto Federativo refletido em três Propostas de Emenda Constitucional (PEC) que estão em análise no Senado (PEC 186/2019 ou “PEC Emergencial”, PEC 187/2019 ou “PEC dos Fundos Públicos” e PEC 188/2019 ou “PEC do Pacto Federativo”). Essas três PEC’s visam trazer uma nova ordem federativa baseada em três grandes pilares: governança fiscal federativa; instrumentos de controle de despesas e de flexibilização orçamentária; e distribuição de receitas.

Foi em meio a este cenário fiscal que a pandemia do Covid-19 (Sars-CoV-2) tomou conta do Brasil. Mesmo com as contas extremamente pressionadas, medidas de altos gastos fiscais se fizeram necessárias. Com isso, as estratégias construídas pelo Ministério da Economia eram: 1) dar suporte à população mais vulnerável; 2) evitar a perda de empregos; e 3) manter a liquidez das empresas. Para atingir tais objetivos, diversas ações foram implementadas, como o auxílio emergencial, o benefício emergencial para emprego e renda (suspensão de trabalho ou redução de remuneração e jornada), o programa emergencial de suporte a empregos (crédito para folha de pagamento), o programa nacional de apoio a micro e pequena empresa (crédito para fluxo de caixa), entre outros.

Prover recursos para estados e municípios é uma ação que permite a manutenção das atividades públicas de apoio à população, principalmente aos mais vulneráveis que demandam mais serviços públicos. Desde o decreto de calamidade aprovado no Congresso Nacional, no dia 20 de março de 2020, um conjunto de medidas foi pensado pelo Ministério da Economia para auxiliar os entes subnacionais, de acordo com a seguinte máxima: não faltarão recursos para a saúde.

Assim, logo no dia 23 de março foi anunciado o primeiro pacote de ajuda aos entes subnacionais. A lógica da ajuda federal era recompor perdas de receita utilizando transferências e suspensão do pagamento das dívidas dos entes com a União. Além disso, prover outras transferências de recursos para auxiliar com as despesas de saúde e assistência social.

Dentre as medidas, parte delas poderia ser implementada de forma mais rápida, uma vez que dependeria de Medida Provisória ou de Portaria do Ministério da Economia, enquanto as outras demandariam mais tempo devido à necessidade de aprovação no Parlamento. Dentre as ações rápidas, houve a transferência de R$ 16 bilhões para estados e municípios como forma de recompor transferências federais (Fundo de Participação dos Estados e Fundo de Participação dos Municípios) que teriam livre destinação, R$ 8 bilhões para a saúde e mais R$ 2 bilhões para a assistência social. Entretanto, para a suspensão de dívida seria necessária a tramitação de um Projeto de Lei Complementar (PLP).

O debate em torno do PLP para suspensão de dívida foi grande. Para acelerar a tramitação, a Câmara dos Deputados decidiu introduzir o tema no PLP 149 (Plano Mansueto) que trazia propostas de ajuste fiscal estrutural para estados em graves dificuldades. A situação emergencial transformou o projeto original, que trazia instrumentos para ajuste fiscal com um “capítulo” de suspensão de dívida, em um projeto de transferência de recursos da União para estados e municípios no qual o modelo utilizado para mensurar o valor da transferência seria um seguro-receita (seguro total) baseado na frustração do ICMS e do ISS. No entanto, o principal problema com o texto aprovado na Câmara dos Deputados era justamente tal modelo de seguro-receita. É amplamente conhecido na teoria econômica que seguros geram problemas perversos de incentivos, e qualquer estimativa de queda na arrecadação por conta de uma redução na atividade econômica seria bastante ampliada por ações de diferimento tributário (postergação do recebimento do imposto) e benefícios fiscais. Isso porque tais custos seriam totalmente repassados para a União, agravando ainda mais a situação fiscal e aumentando a conta a ser paga no pós-crise. O modelo era um cheque em branco para governadores e prefeitos, o que poderia incentivar a má gestão tributária e deixaria a conta para a população pagar.

Devido à divergência técnica sobre como auxiliar os estados e municípios, o debate foi bastante amplificado na imprensa e no Senado Federal (não mais PLP 149/2019, e sim PLP 39/2020), que deveria reavaliar o projeto. Ficou bastante claro o risco de seguir com o modelo proposto à Câmara, e, com o debate entre Ministério da Economia e Senado Federal, o texto final trouxe, além do lado de transferência de recursos, um dispositivo para controle de despesas fundamental para melhor alocar recursos na crise e preparar os entes para o pós-crise. A lei aprovada (Lei Complementar 173/2020) trouxe uma transferência de valor fixo em R$ 60 bilhões, juntamente com a suspensão de dívidas com a União, representando uma economia de despesa de R$ 35 bilhões. Além disso, trouxe a permissão para renegociação de dívida com bancos públicos e multilaterais, com potencial de redução de despesa financeira em até R$ 25 bilhões. Pelo lado do controle de gastos, a vedação dos aumentos salariais dos servidores públicos até o final de 2021, extremamente importante, traz uma economia potencial de R$ 130 bilhões, sendo R$ 98,9 bilhões para estados e municípios.

Assim, depois de um debate de quase dois meses, foi concluído o pacote de ajuda aos estados e municípios, necessário para que o melhor modelo fosse implementado, de modo a reduzir os riscos fiscais para a União. A Tabela 1 apresenta um resumo de todas as ações feitas pela União de forma a auxiliar estados e municípios no enfrentamento da pandemia.

O total das ações soma mais de R$ 170 bilhões de reais. Dentre essas medidas, há a transferência de recursos, os diferimentos de impostos (previdenciários), a suspensão e renegociação de dívidas, dentre outras coisas. Além disso, um benefício em potencial de R$ 98 bilhões em contenção de despesas de pessoal. Aqui, assumiu-se como contrafactual que o crescimento médio dos últimos três anos seguisse até 2021, e, comparando com o cenário sem qualquer aumento de despesa de pessoal, chega-se à economia de R$ 98 bilhões.

Tabela 1: Medidas de Suportes aos Entes Subnacionais, Secretaria Especial de Fazenda.

É importante ressaltar que realizar ações de auxílio no combate à pandemia e, ao mesmo tempo, balancear nossos problemas fiscais é um grande desafio. De todas as medidas realizadas para estados e municípios, mais de R$ 85 bilhões de reais são despesas primárias, que precisam ser financiadas com mais endividamento por parte da União. Por isso é fundamental promover medidas pelo lado da despesa, como a vedação a aumentos de salários de servidores públicos. Combater o problema fiscal na pandemia olhando também para o lado da despesa é fundamental para que haja racionalidade na alocação de gastos, possibilitando assim um pós-crise com despesas estáveis e um menor endividamento por parte da União, uma vez que parte da piora fiscal seria acomodada pelo controle de despesas.

É preciso lembrar que toda crise tem início, meio e fim, e sempre temos que pensar em sair da crise da melhor forma possível: por meio do controle da despesa de todos entes e por endividamento da União em trajetórias sustentáveis.

Após todas estas ações, com foco nos objetivos ditos acima (proteção aos mais vulneráveis, preservação de empregos e empresas), nosso esforço fiscal para o combate à pandemia chega a mais de R$ 400 bilhões. Somando isso ao déficit previsto antes da pandemia e à frustração de arrecadação por conta da queda do PIB (projeções em torno de 5%), já projetamos um déficit primário de quase R$ 700 bilhões, praticamente 10% do PIB. Esse número faz com nosso esforço fiscal seja ainda mais desafiador para os próximos anos. Estamos saindo de uma relação dívida/PIB de 75,8% para patamares de 92%, algo bastante elevado para um país emergente.

É fundamental termos em mente o nosso direcionamento de que ações fiscais de combate à pandemia precisam ser gastos temporários e restritos ao ano de 2020; não podem, de forma alguma, se “perenizarem”. Tornar tais gastos temporários permanentes, como está em discussão sobre o auxílio emergencial, é um erro que já foi cometido no passado, na crise de 2008, e quebrou o país.

É preciso manter o teto dos gastos, nossa grande âncora de previsibilidade fiscal de médio e longo prazo. Além disso, é precisamos retomar o debate ainda mais profundo sobre o ajuste fiscal da federação, para que nossa trajetória de endividamento volte a ter a mesma dinâmica do pré-crise. Só assim conseguiremos manter taxas de juros baixas, atraindo investimento privado e, junto a reformas que visem o aumento de produtividade da economia, poderemos trazer o crescimento sustentável de longo prazo.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.