President Donald Trump and First Lady Melania Trump participates in the Easter Egg Roll on the South Lawn of the White House, Monday, April 17, 2017, in Washington, D.C. This is the first Easter Egg Roll of the Trump Administration. Official White House Photo by Joyce N. Boghosian.

Coluna | Nós, adolescentes — João Paulo Carvalho

Uma mescla de testemunho e palpite sobre os horizontes da Democracia

O Veterano
O Veterano
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32 min readFeb 3, 2021

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The world changes, and people, too; nevertheless, nothing really new ever happens; people and centuries resemble each other closely. — Rainha Cristina da Suécia, Apologies, 218 #540.

Todo adolescente mal sucedido na vida amorosa, carente de atenção como é característico da idade, precisa abraçar uma ideologia. Comigo, não foi diferente. Aos catorze anos, meu passatempo favorito depois da aula era abrir o site do Instituto Mises Brasil, até então uma instituição obscura, encontrada por acaso nos cantos da internet e já denunciada, junto a figuras como Rodrigo Constantino e órgãos como o Instituto Millenium, como parte da nascente “ofensiva liberal” que enxergavam os veículos de esquerda. Naquela época, me dividindo entre as palavras de Ludwig von Mises, Ayn Rand e Reinaldo Azevedo, conheci a superfície de um movimento que ainda estava à margem do debate político. Não por muito tempo.

O passar do tempo me levou dos sites e blogs aos grupos do Facebook, onde tudo era rápido, dinâmico e controvertido. O grupo “Liberalismo”, que da última vez que vi contava com quase trinta mil integrantes, tinha dois mil quando entrei. Os polemistas postavam coisas do tipo: “É legítimo metralhar (sic) invasores do MST? Dissertem” — ao que seguia uma enxurrada de comentários, invocando desde notícias de portais obscuros até supersimplificações da tese lockeana do direito natural. Algumas personalidades se destacavam — às vezes pela sensatez, às vezes pela falta dela. Paulo Kogos, hoje dono do canal “Ocidente em Fúria” no Youtube, com 135 mil seguidores, fez fama por argumentar (bastante agressivamente, diga-se de passagem) que nomes como Milton Friedman e Friedrich Hayek eram, na verdade, socialistas. Outras figurinhas frequentes eram Felippe Hermes, co-fundador do Spotniks e administrador da comunidade; Pedro Menezes, hoje editor do Mercado Popular; e Kim Kataguiri, na época menino imberbe que mal concluíra o Ensino Médio.

Seria certamente um exagero autocentrado dizer que à guinada à direita do Brasil já estava prevista ali, naqueles grupos de política do Facebook. Mas minha experiência já tornava explícita a força que viriam a ter as comunidades virtuais no futuro próximo. Naquele espaço, era possível fazer amigos, construir uma identidade, ser reconhecido… lembro-me até hoje da exultação no dia em que Paulo Kogos citou-me nominalmente [1] (de forma elogiosa) em um de seus vídeos. Minha devoção era tanta que, em setembro daquele ano, viajei para Belo Horizonte para a primeira conferência dos Estudantes pela Liberdade (EPL) [2], uma das múltiplas organizações recém-fundadas em defesa do tal “libertarianismo”. Entre os organizadores e palestrantes, Joel Pinheiro da Fonseca, hoje colunista da Folha, e os atuais deputados Fábio Ostermann (Novo-RS) e Paulo Eduardo Martins (PSL-PR). Entre universitários desiludidos, jovens contrarianistas da rede particular belorizontina e empresários neoliberais, sentia ter encontrado meu lugar.

Na adolescência, porém, os fascínios duram pouco. A recém formada “grande tenda” liberal já dava sinais de rachadura ainda em 2013, quando conflitos cada vez mais agressivos emergiam na disputa pelo controle das instituições recém-fundadas. A EPL dividiu-se no fim do ano, creio, resultado de um racha regional, entre sudeste e nordeste, e ideológico, entre liberais “à esquerda” e “à direita” — esse último grupo liderado por Rodrigo Marinho, candidato mais bem votado do NOVO-CE nas últimas eleições federais. O próprio Instituto Mises, nos anos seguintes, encararia a secessão de seus quadros mais “puristas”, que posteriormente fundariam o Instituto Rothbard [3], marcando posição na defesa do anarcocapitalismo. A fragmentação institucional, porém, sucedeu a fragmentação das comunidades virtuais, que à época acompanhei e participei. Foi o próprio Kim Kataguiri, se eu não me engano, que criou o grupo “Liberalismo Huehue”, dedicado, no jargão da internet, às discussões libertárias e ao shitposting.

Foi nesses subgrupos, cada vez menores e mais fechados em seus respectivos nichos, que pude perceber uma mudança de direção nos movimentos ditos liberais. A empolgação com o libertarianism surgira nos Estados Unidos em grande parte a partir da campanha presidencial do deputado republicano Ron Paul, que em 2012 chegou a ser vitorioso nas concorridas primárias de Iowa. Homens jovens de classe média, intelectualmente amadurecidos em boards como o 4Chan e o Reddit, compunham parte significativa do movimento — fenômeno que, sem sombra de dúvida, se repetiu no Brasil. Não faço censura a isso, mas é fato inegável que o universo liberal era desproporcionalmente branco, masculino e de confortável condição social, mesmo quando comparado à média do ensino universitário brasileiro. Trata-se, afinal, de quem recebe em primeira mão as tendências da internet americana.

Não é de surpreender, portanto, que tenha sido o grupo mais afetado com o Gamergate [4], talvez o mais subestimado fenômeno cultural dos anos 2010. Antes de Trump, da alt-right e dos incels, antes do Episódio VIII de Star Wars, o Gamergate foi o momento definidor, responsável pela radicalização de milhares de jovens que, nos anos seguintes, compunham a base virtual dos mais entusiasmados movimentos de apoio a figuras como Trump e Bolsonaro. Na época que a controvérsia estourou, eu já tinha abandonado o ambiente virtual libertário; mesmo assim, quase um ano antes já era possível identificar a semente de muitas das mensagens que ganhariam espaço depois da polêmica: a rejeição radical às “políticas identitárias”, a crescente descrença diante do mercado em razão dessas políticas, a romantização de figuras históricas conservadoras e, no mínimo, controversas. Em vez de Ron Paul, o nome da vez era Augusto Pinochet.

Em meio ao radicalismo libertário que tendia à direita, uma figura intelectual despontava. Hans Hermann Hoppe, professor alemão que chegou a ser orientando de Jürgen Habermas na afamada Universidade de Frankfurt, ficara conhecido no meio por sua defesa radical do princípio da propriedade privada como um meio de estabelecer uma sociedade efetivamente reacionária, isto é, com a “remoção física” da diversidade política, religiosa e sexual [5]. Seu livro, traduzido para o português com o título “Democracia: o Deus que falhou”, figurava na minha longa lista de leituras programadas que, por desinteresse e procrastinação, nunca cheguei a cumprir. Mesmo assim, trazia um título convincente, que já naquela época me cativou alguma atenção.

Hoje, longe de me interessar pelas palavras de Hoppe sobre o assunto, atribuo à máxima outro significado. Caracterizar a democracia como um “Deus que falhou”, afinal, traz embutidas duas premissas bastante meritórias de discussão: i) a democracia é (vista como, tratada como) um Deus; ii) a democracia falhou (seja em seus objetivos, seu projeto, ou mesmo sua manutenção). Ora, a primeira não é, há que se dizer, nenhuma grande novidade na teoria política. Os marxistas, afinal, já há muito denunciam a democracia liberal como um recurso da ideologia burguesa, um dogma imposto para evitar questionamentos à ordem social. Como vi outro dia no Tiktok (leitores marxistas, façam o favor de perdoar meu rudimentar conhecimento do tema), toda crítica à hegemonia dos Estados Unidos, ao capitalismo, ao sistema político vigente, é repudiada pelas forças dominantes como uma crítica à “democracia”. Há nisso, não posso negar, algo de verdadeiro.

Mais interessante ainda, porém, me parece ser a tentativa quase obsessiva que protagonizam os regimes mais antitéticos à nossa ideia de democracia de, não obstante, inserir-se no seu paradigma de discurso. Com exceção do centro-africano que se declarou imperador [6], até as mais tirânicas republiquetas se esforçam para copiar as normas democráticas importadas do mundo ocidental. Nem mesmo a monarquia socialista da Coreia do Norte, afinal, abre mão do título de República Democrática e Popular. No campo da direita, igualmente, Órban fundou a “democracia iliberal” e os críticos do projeto europeu apontam o dedo para a suposta falta de representatividade das oligarquias de Bruxelas. De um lado ao outro de uma Janela de Overton já muito dilatada, subsiste talvez uma única unanimidade: “todo poder emana do povo”.

É evidente que a prática desses valores é muito mais ambígua. Mas percorra todo território brasileiro e pergunte nas ruas: serão pouquíssimas, se alguma, as almas que se julgam indignas de tomar parte no processo político. Muitos, é verdade, o desdenham; mas o fazem precisamente ao apontar suas características antidemocráticas. O político sujo é aquele que faz parte de algum tipo de “elite” (seja econômica, para a esquerda, ou cultural, para a direita), que não trabalha e não quer fazer a vontade do povo. A “vontade do povo” é a maior unanimidade da história.

Menciono a história para dizer que não foi sempre assim. A centralidade do discurso democrático, na verdade, é coisa dos dias de hoje: uma ideia que ganhou força com o iluminismo e foi, a passos curtos, se tornando consenso ao redor do mundo. Durante a imensa maioria da nossa experiência civilizacional, no entanto, a democracia foi, no máximo, uma ideia concorrente que disputava com muitas outras, passando por altos e baixos, defesas e ataques. Heródoto, provavelmente o primeiro autor ocidental a escrever explicitamente sobre política, já coloca essa ponderação na boca de seus personagens. No debate persa [7], em que aristocratas do império vizinho dos gregos discutem o melhor modelo de governo a se adotar, o personagem Megabizo faz uma dura crítica ao regime que vigorava em Atenas:

Nada mais insensato e insolente do que uma multidão inconsequente. Procurando evitar-se a insolência de um tirano, cai-se sob a tirania do povo sem freios. Haverá coisa mais insuportável? Quando o soberano toma uma medida, sabe bem por que a toma; o povo, ao contrário, não usa a inteligência nem a razão. E que de outro modo poderia ser, se jamais recebeu instrução e não sabe o que é belo nem o que é mais conveniente? Lança-se num negócio às cegas, sem julgá-lo, qual uma torrente que tudo arrasta. Possam os inimigos dos Persas adotar a democracia!

Longe de unanimidade histórica, o discurso da “vontade do povo” sequer era unanimidade em Atenas, seu berço e primeiro propagandista. Sócrates e Platão, os mais renomados filósofos da cidade, eram profundamente céticos em relação ao regime. Séculos depois, em Roma, o lema Senatus Populusque [8] simbolizava a oposição entre aristocracia e povo que vigorava na política da nascente superpotência.

Dois milênios mais tarde, porém, uma nova superpotência nascia com a proposta de reavivar os valores da antiga cidade ática. A “democracia representativa” norte-americana, desenhada sob inspiração direta dos exemplos clássicos, rapidamente tornou-se modelo de regime das vanguardas intelectuais e racionalistas. No Século 20, com o mundo dividido entre a democracia liberal e a democracia popular, atingiu a posição de consenso. Nos anos 90, com infausta defesa de Francis Fukuyama, chegou a ser tida por “fim da história”.

Afeito a comparações históricas, gosto de ver os Estados Unidos como uma espécie de nova Atenas [9]. Tal como sua contraparte da Grécia Clássica, o regime de Washington capitaneou a elevação do discurso elaborado por seus founding fathers após a expulsão das forças estrangeiras; construiu, para tal, um monumental Império comercial, alçado no alinhamento ideológico e na promoção de organismos “internacionais” [10]. Ao mesmo tempo em que também vacila — e às vezes renega — o título de Império [11], não deixa de periodicamente exercer intervenções internacionais em defesa de seu regime. E, talvez, tal como foi no caso da pólis grega, o resto do mundo democrático dependa da sua liderança para manter-se assim.

Depois do golpe oligárquico em Atenas durante a Guerra do Peloponeso, o regime rapidamente retrocedeu em praticamente todo o mundo helênico. O que aconteceria no mundo com o fim da democracia americana?

Criei uma conta no Twitter na noite do dia 3 de novembro, a fim de acompanhar a apuração das eleições nos Estados Unidos. Pouco a pouco, em meio à apreensão com os red shifts e red mirages, fui me familiarizando com a rede, com suas “bolhas” e com a rapidez com que as notícias vêm e vão. Naquela longa madrugada e no dia que se seguiu, à medida que ficava clara a perspectiva de vitória de Joe Biden, Trump proferiu o agora já famoso pedido: “STOP THE COUNT!”. O que se seguiu, de forma quase didática para um recém-iniciado como eu, foi uma série de críticas adereçadas ao tweet do presidente. Nomes influentes no movimento conservador americano, como o articulista Ben Shapiro, foram pioneiros em criticá-lo e defender as instituições democráticas. Políticos de destaque nacional, como Nikki Halley e Mitt Romney, se pronunciaram defendendo a lisura do processo eleitoral. No election twitter, mesmo os conservadores e populistas pareciam compreender o ridículo da situação em que o líder republicano se colocava.

Isso deve ter durado mais ou menos um dia. Com escandalosa força para criar e afundar nomes do Partido Republicano, Trump virou seu senhor inconteste. Munido do fiel apoio de seu público, conduziu campanha contra até mesmo a Fox News, até então emissora favorita da direita, por sua omissão em denunciar a suposta fraude que ocorria no processo eleitoral. Donald Trump Jr, filho do presidente e um dos ídolos da base populista do partido, exigiu o pronunciamento dos “2024 hopefuls”, até então majoritariamente omissos. Temerosos de uma indisposição com o todo-poderoso, muitos em seguida vieram em sua defesa; até figuras supostamente moderadas no endosso do governante, como Ben Shapiro e Nikki Halley, rapidamente mudaram de postura, creditando mais substância às denúncias. Mesmo entre os pequenos comentaristas informados que eu acompanhava, começavam a surgir focos de insurgência contra o resultado das urnas. Quando Biden foi, após longa espera, enfim anunciado presidente-eleito no sábado, já tinha se orquestrado o discurso para subtrair sua legitimidade.

Não me recordo agora se foi antes ou depois disso que resolvi assistir ao programa do comentarista Tucker Carlson, a maior audiência da tevê fechada americana, com mais de cinco milhões de espectadores diários. Apresentador do horário nobre da Fox News, Carlson fez fama por sua ardorosa defesa do presidente republicano e pela crítica à decadência moral e à supremacia das liberal coastal elites [12] que supostamente vigoram no país. Naquele programa específico, o apresentador comentou a questão das fraudes, citando por nome uma série de evidências — vídeos, mudanças abruptas na contagem eleitoral, testemunhas etc. — que supostamente as comprovariam; todas irregularidades que, no entanto, já tinham sido explicadas ou denunciadas como falsas na minha timeline. Ao mesmo tempo um grupo de manifestantes, alguns armados, cercava o prédio onde contavam-se os votos no Condado de Maricopa, no Arizona, em protesto contra o prosseguimento da apuração.

Um mês depois, não obstante algumas gafes tragicômicas da equipe de defesa organizada pelo presidente Trump e seu abandono por parte do movimento conservador — o próprio Tucker Carlson eventualmente veio a admitir que faltavam evidências concretas — algo em torno de 80% de seus eleitores seguem negando a legitimidade do processo eleitoral: quase quatro em cada dez americanos. Nas redes sociais, mesmo que republicanos moderados tenham se afastado da denúncia explícita do resultado, se abstiveram de condenar o completo desrespeito de Trump às instituições políticas do país [13]. O caso mais chocante foi o de Brad Raffensperger: republicano moderado e Secretário de Estado da Geórgia, posição em que foi responsável por supervisionar as eleições no estado, ele recebeu repetidas cobranças para tentar evitar a iminente derrota na região; impotente, foi taxado de RINO (acrônimo para Republican in Name Only) pelo presidente e desde então tem sido repudiado pelo próprio partido estadual de onde era até então um dos principais nomes. Mesmo o governador Brian Kemp, eleito em 2018 com a imagem de “mais trumpista que Trump”, é agora tido como alvo fácil nas próximas primárias locais.

Em quatro anos, Trump tomou conta do Partido Republicano e foi capaz de imprimir sobre seus seguidores um culto de personalidade talvez nunca antes instituído no país. Com mão de ferro, é capaz de decidir quem sobe e quem cai, tendo inclusive arruinado a carreira de importantes senadores e congressistas. Mais importante ainda: foi capaz de convencer, no espaço de uma semana, quase 40% do país de que a eleição tinha sido fraudada, não obstante a unanimidade das instituições [14] apontasse o contrário. Diante disso tudo, não chega a ser tão espantosa a invasão do Capitólio de Washington que ocorreu no último dia 6. Mesmo que temporariamente repudiado, o America First Movement chegou para ficar.

Em um artigo recentemente publicado, a revista The Atlantic — uma espécie de Revista Piauí ao norte do Equador — lembrava que Trump, apesar de tudo, fora extremamente incompetente em seu governo e em sua estratégia eleitoral [15]. A pergunta que fica é: e se não tivesse sido?

Uma das minhas frases favoritas, que não tem nada a ver com política, é do escritor Milan Kundera: “O tempo humano não anda em círculo, mas avança em linha reta. Por isso o homem não pode ser feliz: a felicidade é desejo de repetição” [16]. Acho que captura muito bem o aspecto mais trágico da vida humana. O tempo passa. As coisas não podem ser, para sempre, como são hoje. Mesmo as grandes estátuas dos faraós egípcios eventualmente darão lugar à areia [17]. Mesmo os grandes sistemas, as mais perfeitas construções teóricas, são sempre prisioneiros de seu tempo.

No auge da República Romana, os teóricos políticos da época se vangloriavam de viver sob um regime que combinava as virtudes dos três sistemas descritos por Aristóteles: a monarquia, na figura do cônsul; a aristocracia, na figura do senado; e a democracia, na figura do tribuno da plebe. Era uma estrutura perfeita, construída para sobreviver milênios. Mas a República se expandiu. Num espaço de pouco mais de cem anos, incorporou a Grécia e Cartago, conquistou toda a costa oriental do mediterrâneo e o interior da península Ibérica, invadiu e subjugou os gauleses, entre muitos outros feitos; também enfrentou um sem-número de golpes de estado e guerras civis. Em 29 a.C., Otaviano concluiu o legado de César e substituiu o regime “infalível” por uma monarquia em tudo senão no nome.

Não cabe a mim analisar o porquê dessa derrocada. Talvez tenha sido a desigualdade, a tecnologia, a expansão territorial, as próprias alterações institucionais realizadas ao longo de três séculos; o fato é que o contexto mudou e, com ele, o regime também. Séculos mais tarde, o Império sofreria o mesmo destino. Ainda assim, nós humanos continuamos almejando confeccionar a sonhada constituição eterna, infalível, inexpugnável pelo passar dos tempos. Foi o que buscavam, inclusive, os founding fathers que redigiram a lei maior americana. A experiência resultante, admito, tem sido até bem sucedida: dois séculos e meio, e contando. Mesmo assim, julgo prudente guardar um certo receio, um certo ceticismo diante dessa tal “eternidade” das coisas humanas [18].

Nos anos 1930 e 1940, tenho certeza que todos já cansamos de ouvir, a democracia liberal esteve sob forte ameaça do totalitarismo. A explicação do porquê geralmente remonta à crise de 1929, à instabilidade dos recém criados órgãos internacionais, ao desastre provocado pela primeira Grande Guerra, e assim por diante. Também não cabe a mim analisar cada uma dessas razões, mas, cético como sou, destacar outras duas, menos faladas. A primeira é uma razão cultural: o modernismo; a segunda, uma razão tecnológica: o rádio.

José Ortega y Gasset, em seu imprescindível A Rebelião das Massas, nos diz que “mandar não é tanto uma questão de punhos como de nádegas”. Mandar é controlar a opinião, definir as margens do discurso, sentar-se no trono e ficar inconteste por ali. Ora, ele mesmo, escrevendo nos anos 30, nos alerta que ninguém está mais conseguindo se sentar. A raiz dos problemas da época, diagnostica, é o tal do “homem-massa”, um tipo social que, reconhecido medíocre, não obstante alardeia, voz levantada e dedo em riste, o direito e mesmo a supremacia de sua mediocridade: mais que sentar-se, quer ver a cadeira vazia. É difícil entender o que está por trás desse fenômeno — e o próprio pensador espanhol, a despeito do diagnóstico preciso, peca em apontar soluções — mas minha intuição passou a apontar na direção do modernismo depois da leitura de um curto ensaio de T.S. Elliot, What is a Classic?

Na peça, produzida para a cerimônia de fundação da Virgil Society na Inglaterra, o grande poeta anglófono busca delinear as características de um dito “clássico”: uma obra de grande maturidade, produzida por um autor maduro numa língua madura e numa civilização madura. As eras que imediatamente antecedem ou sucedem o clássico, por sua vez, são marcadas pelo excesso bifronte de originalidade e monotonia: de um lado, todos querem produzir ou romper com o clássico; do outro, na ausência do novo, todos querem copiar o que de melhor já existe.

Admito aqui: não sou e nem pretendo ser crítico de arte. Meu vulgar entendimento do modernismo, no entanto, me levanta a suspeita de que Elliot falava também sobre sua própria época nesse feliz comentário. Nos anos 30, como hoje, o cenário cultural estava dividido entre uma espécie de conservadorismo primitivo, avesso às novas tendências quase que por implicância, e um progressismo radical, empolgado e obstinado na busca do “choque”. Ortega y Gasset cirurgicamente complementa: vivemos numa era que se sente “mais que os demais tempos e inferior a si mesma”. O modernismo, então, era a força da cultura. Na busca da inovação por todo custo, no destronamento da autoridade estabelecida, na derrubada de ídolos e ícones, a ainda recente democracia liberal não tinha como ficar incólume. A arte não queria mais saber de se sentar. Queria fincar o pé.

Essa, porém, era a cultura das elites. A massa não se escandalizava com o bidê de Duchamp ou com o onanismo em James Joyce. O que escandalizava a massa, mesmo, era o rádio. Pare por um segundo e pense: pela primeira vez na história, no início do século vinte, era possível ouvir a voz de uma pessoa que não compartilhava o mesmo ambiente que você; pela primeira vez, era possível dar o mesmo discurso, palavra por palavra, para milhares, até milhões de pessoas. O rádio foi a maior inovação comunicativa da histórica, e suas consequências foram drásticas para a difusão das ideias nos anos seguintes.

Mais importante que o assombro tecnológico, um aspecto prático: o rádio era barato — e não só para o ouvinte. Para montar um canal de televisão precisamos de acesso a um satélite de transmissão, de um estúdio, de uma concessão do governo, talvez de acesso a uma rede de cabos para atingir as residências; para montar um de rádio, basta um ter um transmissor e escolher uma das infinitas (?) frequências possíveis. O rádio democratizou não só o acesso, mas também a produção de informação. Um alemão dos subúrbios de Dresden nos anos 20 podia estar brincando com seu recém comprado aparelho de rádio e cair numa transmissão em que o locutor narrava os horrores supostamente perpetrados contra sua família pelos judeus; dez anos mais tarde, um americano podia ouvir as transmissões semanais do Padre Coughlin [19], que contava dos bem-fazeres de Hitler e Mussolini e denunciava a aliança entre o presidente FDR e a elite bancária. O terreno era fértil sobretudo para dois fenômenos: extremismo e teorias da conspiração.

A cada dia, portanto, fico mais convencido que a ascensão da televisão foi a salvaguarda da democracia no ocidente. Descentralizado e propenso aos extremos, o rádio era o instrumento da desunião. A tevê, por sua vez, concentrada em alguns poucos canais e controlada por elites econômicas e culturais [20] que pensavam mais ou menos da mesma forma, foi capaz de imprimir, no pós-guerra, uma visão de mundo consensual que guiaria seus espectadores pelas décadas seguintes. Rapidamente, derrotou seu antecessor, senão em quantidade pelo menos na credibilidade que lhe atribuíam os ouvintes: fez com que todos, literalmente, se sentassem. Durante cinquenta anos mais ou menos, o arranjo funcionou bem.

Desde a virada do século, no entanto, testemunhamos o rápido avanço de uma nova tecnologia. É, também, de baixíssimo custo de entrada. Permite, também, enorme amplitude de oferta e de demanda no mercado de informações. Mais que isso: em vez da aleatoriedade do rádio, é capaz de nos direcionar e recomendar o que ouvir e descobrir. Refiro-me, é claro, à internet, cuja ascensão me parece cada vez mais incompatível com a preservação da democracia liberal. Os canais de rádio dão lugar a podcasts, vídeos do Youtube, algoritmos cuidadosamente elaborados das redes sociais e correntes de WhatsApp; o potencial para o radicalismo e para a divergência do consenso estabelecido, no entanto, são ainda maiores. Mais que nunca, cada um de nós escolhe quando, como e qual tipo de informação consumir. A polarização, consequência inevitável nesse cenário, talvez esteja só começando.

Um queridíssimo amigo volta e meia me conta das episódicas interações políticas que tem com sua mãe. Dona Marialva, como vou chamá-la a partir de agora, é uma mulher gentil, bastante agradável, cozinheira de mão cheia e que adora me receber em seu apartamento em Copacabana. É divorciada e tem diploma universitário. Sustenta quase que sozinha a si mesma e ao único filho. Natural do Nordeste, foi criada em Olinda e chegou no Rio com uma mão na frente, outra atrás; tem, com justiça, muito orgulho do que conquistou. Dona Marialva também é uma apoiadora inveterada do presidente Bolsonaro.

A primeira impressão que tive da posição política de Dona Marialva jamais me indicaria isso. Em 2014, enquanto ela nos dava carona em direção ao cinema, comentou que pretendia votar em Tarcísio Motta, então candidato do PSOL ao governo do estado. Tinha ficado impressionada por sua integridade e sua denúncia aos poderosos no último debate; também ouvira o mesmo de suas amigas mais politizadas. No fim, conta meu amigo, dividiu o voto: Tarcísio para governador, Aécio Neves para presidente.

Quatro anos mais tarde, Marialva votou em Bolsonaro e reiterou o voto downballot: Flávio, Witzel, os deputados do PSL, até mesmo o Arolde de Oliveira. No segundo turno, quando acompanhamos a apuração em seu apartamento, ficou escandalizada com a ampla predileção a Fernando Haddad entre os amigos do filho. Apesar disso, dizia na época que “o Bolsonaro é um louco mesmo, só que é melhor que o PT”.

Com o tempo, ele me conta, seus posicionamentos foram ficando cada vez mais radicais. Apoiar o presidente, afinal, é cognato a apoiar o país. Rodrigo Maia e Luciano Huck são parte de uma conspiração esquerdista. “Um tal de George Saulo (isto é, Soros) quer vender o Brasil para a China”. Ao mesmo tempo em que se opôs ao fechamento do comércio, Dona Marialva é extremamente rigorosa com o uso de máscara e com a higiene dentro de casa. Não acredita na vacina chinesa, mas recentemente comprou um celular Xiaomi.

Dona Marialva, apesar de viver sempre no aperto financeiro, viaja muito e vai sempre à praia com as amigas. No ambiente de amenidades, elas bebem, falam da vida, se divertem e deixam a política de lado. O melhor amigo de dona Marialva, aliás, é gay, mas diz ela que também votou em Bolsonaro (no início de 2019, logo após a posse do presidente, ele se mudou para Paris). Quando questionada sobre o posicionamento das amigas, admite que há algumas “petistas” no grupo; mas faz a ressalva: “a galera que têm classe apoia o presidente!” Explica que Bolsonaro colocou nomes técnicos no governo, que o presidente quer o melhor para o país. Repete que ele é “gente como a gente” e que “sente” algo de bom no coração dele — dona Marialva diz ser muito sensitiva para essas coisas.

A única vez em que ficou sem palavras, pelo que meu amigo reporta, foi quando ele lhe apresentou a pesquisa de opinião que mostrava a correlação inversa entre nível de ensino e apoio ao presidente: quanto mais educada uma pessoa é no Brasil, menos ela tende a aprovar a administração em vigor. Depois que entendeu o gráfico, Dona Marialva mudou de assunto. Lembrou de Lula, analfabeto, e explicou que Sérgio Moro era juiz concursado, mas traiu o Brasil. A ligação entre Moro e a China, ela viu no Twitter. As notícias sobre a fraude eleitoral contra Trump, recebeu por corrente no Zap.

Dona Marialva não é um personagem. Existe em carne e osso, e muito provavelmente representa milhões de brasileiros. Indignada com o fracasso da política nos anos Lula e com a corrupção crescente, me parece que ela vê em Bolsonaro uma espécie de luz no fim do túnel, uma última esperança de que o Brasil possa, afinal, dar certo. Ela não sabe se prefere um governo de técnicos ou de “gente como a gente”, não sabe se apoia ou se rejeita o “jeito meio doido” do presidente. Mas ela quer acreditar em alguma coisa. Abre o Twitter, o WhatsApp, e tem, lá, em que acreditar. Ela só não quer, uma vez mais, apostar nas pessoas erradas.

As convicções da Dona Marialva, convenientemente, conversam bastante com alguns cenários que eu mentalmente tenho projetado para o futuro da democracia, tanto no Brasil como também nos Estados Unidos, país que nossa política interna vem desavergonhadamente plagiando nos últimos anos. Chamo esses três cenários de: i) normalização; ii) tecnocracia; iii) demagogia.

É difícil, nesse sentido, não recorrer ao clichê da polarização. Mais que nunca, me parece, o conflito político tem se dado entre inimigos, em vez de adversários — um sentimento cuja semente já despontava lá em 2014, com a fatídica campanha dilmista que acusava Marina Silva de tentar tirar a comida do prato do pobre; nos Estados Unidos, está na raiz do Tea Party, dos repetidos shutdowns do governo infligidos primeiro pelo senado republicano e depois pela câmara democrata, e sobretudo da longa guerra cultural que lá vigora. Por trás de tudo isso, há o desmonte da hegemonia da mídia tradicional, que por décadas pautava, aqui e lá, as pautas unificadoras do país. Com a ascensão da Fox News e a Globo em descrédito, não há mais espaço para consenso — sequer conseguimos mais concordar acerca da curvatura da terra, que dirá dos princípios políticos que devem reger o país.

O cenário de normalização, nesse sentido, propõe que alguma figura seja capaz de restaurar a cordialidade e a unidade do povo. É a ambição, por exemplo, de Joe Biden, proclamado healer da divisão americana, ou dos vários nomes que aqui no Brasil se apresentam para o posto presidencial em nome do tal “centro democrático”. Resta ver se o tempo os consagrará. Da minha parte, porém, só vejo uma maneira. No podcast do FiveThirtyEight na véspera das eleições americanas, uma comentarista notou o contraste entre as mensagens finais de Joe Biden e Donald Trump: para o democrata e seus eleitores, os Estados Unidos iam de mal a pior, sofrendo com a pandemia, o abuso policial e a falta de oportunidades; para os republicanos, tudo andava de vento em popa: o vírus tinha sido superado e a América continuava o percurso para tornar-se “grande de novo”. Em suma, o que havia era um embate de realidades. Esse tipo de embate, afinal, não pode ser corrigido apenas com um bom governo. A economia, o emprego, a saúde — nada disso ganha eleições. A percepção ganha eleições. Combater a polarização é sobretudo um trabalho de narrativa.

O healing, portanto, me parece só ser possível diante de uma medida drástica: a instituição de limites restritivos e rigorosos à difusão de informações pela Internet e, sobretudo, pelas redes sociais. É delas, afinal, que Dona Marialva recebe suas informações acerca do governo Bolsonaro; é nelas que, a despeito de todo o discurso contrário, continuamos fechados em nossas “bolhas”, ouvindo apenas o que convém — é sob essa lógica que foram desenhadas. O desmonte da Big Tech, nesse sentido, é não surpreendentemente uma causa bipartidária, unindo desde o arquiconservador Senador Josh Hawley [21] a figuras progressistas como Richard Blumenthal [22]. Mas, afinal de contas, quão democrático é esse regime que censura ou reprime as redes? Estamos dispostos a jogar a liberdade de expressão pelo ralo? É algo a se pesar na balança.

O mais provável, de todo modo, é que a tal polarização esteja ainda só no início. Nos próximos anos, esse conflito de narrativas deve acentuar-se, com os dois lados redobrando suas apostas no radicalismo e na exclusão. A disputa que se desenha no mundo todo, dado esse contexto, é aquela que antepõe a tecnocracia liberal e o populismo demagógico — um realinhamento da tradicional oposição entre esquerda e direita que vigorava no século passado. Tivemos um gosto dessa disputa em 2017 na França: Emannuel Macron, vitorioso sobre Marine Le Pen, venceu assumindo a figura de homo liberalis, a encarnação de todas as virtudes de uma elite econômica e cultural que não conhece fronteiras. Desde então, fez concessões econômicas aos gillet jaunes, defendeu a restrição drástica das comunidades muçulmanas e o fortalecimento das forças policiais; a realidade tem muitas nuances.

A França, não obstante, me parece o laboratório ideal para o estabelecimento da tecnocracia. País educado, relativamente avesso ao populismo, e cuja cultura sempre girou em torno de uma grande e cosmopolita metrópole, a França não só elegeu como comandante-em-chefe, mas conferiu supermaiorias legislativas a um rebento inequívoco desses valores urbanos. A Revolução Francesa, afinal, instituiu o panteão da razão; não me surpreenderá que Macron, o “presidente jupiteriano”, uma hora ou outra estabeleça seu próprio pavilhão de econometristas. O mesmo ideal, não por coincidência, vigora também na União Europeia; em 2015, na campanha do Brexit, os opositores da organização apontavam para a contestável legitimidade eleitoral dos burocratas que, aos poucos, regiam a política do continente. A afirmação dessa elite intelectual, bem educada, preocupada com a análise objetiva das políticas públicas, em algum grau também se dá às custas do processo democrático, em que os desejos do povo muitas vezes contradizem o conselho dos experts.

Não esqueçamos, ainda, que o concurso público é uma invenção chinesa — antes do Ocidente sequer pensar na ideia de ensino técnico, o Império do Meio já conduzia o exame mais competitivo do mundo. A tradição da tecnocracia surge no Oriente e, mesmo hoje, creio não haver regime mais tecnocrático que o da China Continental. Totalitarismo e governo técnico, na verdade, não são opostos; podem até mesmo ser aliados. Às vezes, afinal, lembro das minhas aulas de desenvolvimento econômico, em que aprendemos que muitas políticas impopulares só tornam a dar resultado depois de décadas. O regime eleitoral as inviabiliza. No cenário de vitória das elites liberais, porém, cada país pode ser um grande laboratório, um amplo espaço de experimentação no setor público, com naturais vencedores e perdedores. Os ganhos potenciais são imensos; as perdas também. No longo prazo, mais vale a desdita ou a submissão [23]? Ou estaremos todos mortos?

Há, por fim, a hipótese em que o populismo se sai vitorioso. Algum strongman com mais competência que Trump e Bolsonaro — como é o caso de Putin e Erdogan, só para citar os mais reconhecidos — poderia ter sido bem mais efetivo na implementação de uma agenda de retrocesso institucional. Mesmo a democracia americana, supostamente invulnerável, tem demonstrado sua fragilidade diante do chilique presidencial contra o resultado das eleições. O antigo Heródoto, pondo na boca de Dario a resposta ao discurso de Megabizo, alerta para esse perigoso resultado:

Por outro lado, quando o povo manda, é impossível não implantar-se a desordem no Estado. A corrupção, uma vez estabelecida, não produz ódios entre os maus; ao contrário, une-os por laços de estreita amizade. Os que desmoralizam o Estado agem de combinação e se sustentam mutuamente; continuam a fazer o mal até erguer-se um defensor do povo para reprimi-los. Este que a eles se opõe torna-se, então, admirado, e essa admiração faz dele um monarca.

O populismo anticorrupção já era um veículo para a ascensão de tiranos desde a antiguidade. O próprio Júlio César, afinal, era afiliado aos populares, o partido do povo na velha República Romana. Em 57 a.C., enquanto o futuro autocrata comandava sua campanha na Gália, a cidade de Roma entrava em polvorosa com o conflito entre dois senadores radicais: Tito Milão, do partido aristocrático; e Públio Clódio, do partido popular [24]. Com a contratação de milícias armadas, os dois agenciavam confrontos violentos que chegaram a pôr em risco a segurança de figuras tão ilustres como o próprio Cícero. A violência política inviabilizava assembleias populares e tornava cada vez mais bélicas as discussões dentro da câmara senatorial. No mesmo ano, Clódio ordenou que queimassem as casas de Cícero e de seu irmão. Passados cinco anos, foi assassinado num confronto de rua com a milícia rival. Passados onze, César recebeu o título de dictator perpetuo — ditador perpétuo de Roma.

Minha crença é que Dona Marialva não teria predileção por nenhum dos três cenários. Dona Marialva defende um governo técnico, formado por pessoas competentes; mas também defende a soberania do povo, acredita em seu próprio direito de escolher. Mais importante que isso: ela não se incomoda de ir à praia e dividir um quiosque com suas amigas petistas, ciristas, doristas, e seja mais o que for. Ela não fala de política nos jantares de família, e até reclama da parente chata que spamma correntes do Bolsonaro. Marialva, no fundo, não gosta da polarização; ela só tem medo de que queimem sua casa.

A terceira lei da física social do adolescente postula que se a primeira reação de um jovem diante da política for o idealismo, a segunda, dificilmente mais madura, será a irreverência. Em 2015, passada a empolgação com as ideias de Mises e ainda de coração partido pela derrota de Aécio Neves, fui vítima dessa infalível conjectura. Na época, a página “Corrupção Brasileira Memes” fazia sucesso no Facebook com suas homenagens ao ex-presidente da câmara Eduardo Cunha, então carinhosamente intitulado “príncipe suíço” [25]. Incorporando a máxima do “rir para não chorar”, o conteúdo publicado era uma mistura de sátira e exaltação dos principais valores que, no mundo dos noticiários, regiam a política brasileira: presidencialismo de coalizão, superfaturamento de obras públicas, currais eleitorais, pragmatismo. Depois de Cunha, outros heróis incluíam o deputado Heráclito Fortes — o “boca mole” na Lista da Odebrecht — e Fernando Collor, cujo fecundo vocabulário rendia sucessivas tentativas de imitação nos recreios da escola. No maior estilo existencialista, era a celebração do absurdo na nossa política nacional (inocentes, não sabíamos o que estava por vir).

O interesse nas ideias políticas, nesse sentido, dava espaço ao interesse no fazer político: negociatas, campanhas, redação de documentos, tudo tinha um quê de brincadeira — ou então um quê de House of Cards, já que adolescentes nunca admitem quando estão brincando. Foi com esse novo fascínio que, naquele ano, concorri ao Grêmio Estudantil. Meu colégio era o afamado São Bento, conhecido aqui no Rio não tanto pelo alto rigor acadêmico quanto pela peculiaridade de aceitar apenas alunos meninos. Éramos, pois, um bando de rapazes brancos de classe alta, na idade do egocentrismo e da competitividade: perfil mais diferente impossível da sociedade brasileira; mas que decerto resguarda alguma semelhança com sua elite política. Talvez seja por isso que, como gosto de pensar em retrospecto, recriamos tão apropriadamente um microcosmo do ainda porvindouro pleito nacional.

Na elaboração da estratégia eleitoral, eu e mais outros três ou quatro colegas traçamos um plano que poderia muito bem ter saído de algum manual secreto do PMDB. Deixando de lado a educação católica, afinal, aderimos à máxima da então presidente Dilma: “podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”. A fim de garantir o voto do ensino médio, loteamos posições subsidiárias (a tal da secretaria de esportes) a nomes que fossem “puxadores de voto”, isto é, a galerinha popular do primeiro ano. Para atrair o ensino fundamental, nossas ideias fariam inveja até ao gabinete do ódio. Antes tão indignados com a propaganda odienta de 2014, éramos então pioneiros na produção de áudios do Zap, Fake News… chegamos até a acusar a outra chapa de criar uma “comissão de minorias” na escola, para o escândalo dos conservadores de 12 anos que compunham nosso eleitorado. No dia da votação, a boca de urna corria solta — não duvidaria se me contassem que um dos valentões do oitavo ano fez a turma de curral eleitoral. Fomos eleitos com 76% do voto.

Continuamos, quando surgia oportunidade, brincando de política ao longo do mandato. No fim do ano, quando reunimos a Assembleia Geral a fim de rever o estatuto, um dos artigos considerava que era papel do Grêmio contribuir com “campanhas cívicas como a do agasalho e a do desarmamento”. Foi apresentado um destaque e, com maioria qualificada, removeu-se a menção à segunda. No mesmo dia, criamos mais quatro secretarias, distribuídas aos alunos mais novos em troca de apoio na reeleição. Só não digo que seguimos à risca a cartilha do Centrão porque, ao contrário de gestões anteriores, não houve relatos de desvio de dinheiro para compra de misto quente na cantina.

É um pouco melancólico que, mesmo que movidos por caprichos e até por um certo grau de autoironia, tenhamos reproduzido tão fielmente o Brasil dos últimos anos. Por outro lado, se suspendermos a descrença e acreditarmos no potencial oracular do Grêmio do São Bento, é interessante saber que, após quatro anos de chapa única, uma nova disputa se instaurou em 2019. Apesar de já formado, calhei de conversar com um dos candidatos à presidência, que à época me narrou algumas das turbulências vivenciadas. Sua chapa, um pouco como a minha de quatro anos antes, era coordenada por nerds incorrigíveis, aquela galera que fazia simulação da ONU e ficava na sala para falar com o professor depois da aula; o outro lado, pelo que me consta, era a rebelião dos bagunceiros. Para pôr nos termos de uma das propagandas que usaram — e que até hoje me provocam certa risada –, eram o “povão beneditino”, em campanha contra “a chapa da coordenação e da esquerda” — mesmo que a coisa mais “de esquerda” nas incumbências do Grêmio fosse advogar para que os alunos trocassem o elevador pela escada em nome do meio ambiente.

Ao contrário do pleito de 2015, no entanto, a disputa foi muito mais acirrada: vitória do establishment por seis votos — entre algumas centenas de eleitores. Não tardaram a surgir acusações de fraude, manipulação da contagem pela coordenação… lembra alguma coisa? Sobrou até nota para o Ancelmo Gois [26].

Parte fundamental da experiência de ser adolescente é levar-se demasiado a sério. Outra parte, quando percebemos que o mundo não nos atribui a importância que reivindicamos, é tentar retribuir na mesma moeda. Na prática, as duas experiências se confundem: contando votos na assembleia de representantes do Colégio, eu me sentia um mini-Eduardo Cunha; era a mesma adrenalina de postar um meme no grupo libertário e ficar aguardando resposta. Queria me sentar na cadeira, mas, como não me deixavam, fincava o pé. Esse, também, é o espírito do populismo. A alt-right, a bolha do Twitter, o próprio homem-massa de Ortega, são antes de tudo adolescentes. Dona Marialva outro dia se referiu à deputada Joice Hasselman (PSL-SP) como Peppa Pig — o mesmo apelido davam alguns beneditinos a uma importante figura do colégio.

A boa notícia é que em algum momento dessa idade a nossa pele fica menos oleosa e as espinhas param de brotar. A gente se forma no colégio, começa a trabalhar, a ter que pagar contas. Outro dia ouvi dizer que a gente até sai da casa dos pais! Deve ser aí, então, que deixamos de ser adolescentes. Não sei. Quando tive a ideia de escrever esse ensaio, queria terminar cheio de conclusões. A cada certeza que concluía, no entanto, sete eram as novas dúvidas que a acompanhavam. Lembrei-me, então, de Sócrates. Quando visitou o oráculo de Delfos, o filósofo foi apontado como o homem mais sábio da Grécia, pois era o único que conhecia sua própria ignorância. “Somente sei que nada sei”, supostamente teria dito. Talvez, a máxima de Sócrates seja o início da renúncia à adolescência.

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Notas de rodapé:

[1] Segue o link para o vídeo, em que a citação a meu nome (na época ainda com 14 anos) ocorre por volta dos 9:50. https://www.youtube.com/watch?v=FKPzCnvYTDc

[2] Convenientemente, o Instituto Millenium disponibiliza ate hoje informações sobre o fatídico evento: https://www.institutomillenium.org.br/ptmg-ii-conferncia-nacional-dos-estudantes-pela-liberdade/

[3] Murray Rothbard, que dá nome ao Instituto, é o pai da teoria do “anarcocapitalismo”, a ideia de uma sociedade anárquica totalmente regida segundo as regras da propriedade privada. No final de sua vida, Rothbard tornou-se um entusiasta do populismo de direita de figuras como Pat Buchanan e David Duke (ex-grão mestre da Ku Kux Klan que concorreu ao governo da Louisiana em 1991).

[4] Não entrarei em profundo detalhe sobre o episódio, até porque o Gamergate mereceria um artigo à parte explicando-o. Basta entender que se trata de uma polêmica entre consumidores, majoritariamente homens brancos de classe média, e a indústria de jogos que tentava fazer um push para a diversidade no setor.

[5] O autor delineia essa visão em sua obra Democracia, o Deus que Falhou: “There can be no tolerance toward democrats and communists in a libertarian social order. They will have to be physically separated and expelled from society. Likewise, in a covenant founded for the purpose of protecting family and kin, there can be no tolerance toward those habitually promoting lifestyles incompatible with this goal. They — the advocates of alternative, non-family and kin-centered lifestyles such as, for instance, individual hedonism, parasitism, nature-environment worship, homosexuality, or communism — will have to be physically removed from society, too, if one is to maintain a libertarian order.”

[6] Trata-se de Jean-Bédel Bokassa, presidente da República Centro-Africana entre 1966 e 1976 e Imperador do País a partir dessa data até sua deposição em 1979.

[7] Livro 3, 80–82.

[8] Literalmente “o Senado e o Povo”.

[9] Outra comparação válida é com Roma. Pelas razões explicitadas, no entanto, prefiro o paralelo helênico.

[10] Mesmo fugindo da comparação óbvia entre a OTAN e a Liga de Delos, é notório que entusiastas da Liga das Nações também a vinham como espelho da coalizão grega. https://www.jstor.org/stable/2187998?seq=9#metadata_info_tab_contents

[11] É apenas em Tucídides que fica clara a posição “imperial” de Atenas. Apesar de controlar e subjugar boa parte das pólis gregas do Egeu, os políticos atenienses se esforçavam por mantê-las, ao menos no discurso público, sob a aparente posição de “aliadas”.

[12] Esse termo é comumente utilizado pela mídia conservadora americana para referir-se sobretudo àqueles que ditam a “pauta cultural” americana, centrada de certo modo em Nova York e na California, dois dos estados mais “liberais” (no sentido americano, isto é, progressistas) do país.

[13] Recentemente, Trump chegou a convocar deputados de legislaturas estaduais a fim de lhes solicitar que solenemente subvertessem o resultado eleitoral e enviassem representantes republicanos para o Colégio Eleitoral.

[14] Aqui incluímos os escritórios eleitorais, a mídia, os governadores e as câmaras estaduais dos Swing States, a unanimidade dos analistas, o sistema judiciário e, mais recentemente, a própria Suprema Corte americana.

[15] Segue o link do artigo: https://www.theatlantic.com/ideas/archive/2020/11/trump-proved-authoritarians-can-get-elected-america/617023/

[16] Trecho de “A Insustentável Leveza do Ser”.

[17] O belo poema que trata disso é Ozymandias, de Percy Bysshe Shelley.

[18] Exceto, talvez, a arte. Mas aí é outra história.

[19] Ativista político americano que foi um dos pioneiros a usar o rádio como propaganda. Estima-se que, no auge da sua popularidade, 30 milhões de americanos ouviriam suas transmissões semanais. Seu canal esteve de pé até 1939, quando foi cancelado por ordem federal após o início da Guerra.

[20] Há que se destacar, ainda, o papel das redes de televisão públicas, principalmente no continente europeu. Seguindo o exemplo da BBC, diversas redes fundadas no período que sucedeu a Segunda Guerra foram valorosas aliadas no esforço de unificação nacional que precedeu o belicoso conflito.

[21] Senador republicano do Missouri, Josh Hawley é um dos defensores mais arraigados do populismo econômico de Trump e do estilo de vida conservador do American Middle, como se refere à classe trabalhadora americana. É, também, cotado como um dos presidenciáveis do partido em 2024.

[22] Senador democrata pelo estado do Connecticut, que recentemente defendeu no congresso o desmonte das grandes redes sociais, veículos permissivos da “destructive incendiary misinformation” que vigora nos Estados Unidos.

[23] Referência à tragédia Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, em que o personagem escolhe sofrer a tortura interna imposta por Zeus ao invés de submeter-se ao tirano do Olimpo.

[24] Um relato mais detalhado dos acontecimentos pode ser encontrado, de forma resumida, no seguinte vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=wA1jtqYJRis

[25] O apelido fazia referência às contas de Cunha localizadas em bancos suíços, supostamente com recursos provenientes na corrupção. Não obstante afastado do poder e preso preventivamente há mais de quatro anos, o caso do ex-deputado ainda não foi julgado.

[26] No seu estilo sempre críptico, Góis afirma: Et tu, Brute? A eleição para o grêmio estudantil do tradicional Colégio São Bento está sendo contestada. Segue o link: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/ate-eleicao-para-gremio-estudantil-de-colegio-tradicional-do-rio-esta-sendo-contestada.html

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.