Coluna | Nas garras da censura — Miguel Arraes

Projeto de Lei da Câmara de Brasília proíbe nudez e símbolos religiosos em exposições de arte

O Veterano
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Adão e Eva (Dürer).

Há alguns dias, deputados distritais brasilienses aprovaram, em primeira votação, um projeto de lei [1] que proíbe a nudez e símbolos religiosos em exposições artísticas. A medida é espantosa, pois escancara a fragilidade do direito civil à liberdade de expressão e o mais absoluto despreparo intelectual de parte significativa da classe política.

Imagine que, em Brasília, Michelangelo jamais poderia expor suas obras. Elas, em sua maioria, contêm símbolos religiosos, pois foram encomendadas pela Igreja, ou nudez, em adequação aos modelos clássicos. Qual seria o destino de Davi e dos afrescos da Capela Sistina nas mãos dos deputados brasilienses? Sem dúvida, a fogueira.

A religião e o corpo humano são temas perenes na história da arte. Muitas vezes, até mesmo caminham juntos. Os gregos, copiados pelos romanos, copiados pelos renascentistas, e por aí vai, esculpiam Dioniso, Apolo, Zeus e Vênus, nus. Artistas como Michelangelo Buonarroti, Albrecht Dürer e Leonardo da Vinci retomaram na modernidade cristã a busca pela perfeição na representação do corpo humano, inspirados na obra escrita do arquiteto romano Marcus Vitruvius Pollio. Tentaram, inclusive, conciliar o catolicismo com os modelos greco-latinos.

Seria anacrônico se revoltar com o fato de que nos séculos XV e XVI esses artistas tenham sofrido censuras da Igreja, como aquela que sofreu Michelangelo ao ser obrigado a cobrir os nus na Capela Sistina. Na época, pré revoluções americana e francesa, a liberdade estava longe de se consolidar como um direito. O que espanta, e muito, é que as mesmas censuras persistam no Brasil do século XXI, em uma sociedade dita democrática e republicana.

No entanto, um defensor da censura poderia arguir que símbolos religiosos eram representados com respeito na Antiguidade Clássica e no Renascimento; que, da mesma forma, os nus não eram provocativos. Assim, por não ofenderem, não deveriam ser censurados, ao contrário de algumas obras contemporâneas.

A esse hipotético censor, responderia que a sátira religiosa não deslegitima a representação do símbolo. É, na verdade, instrumento de crítica; e ninguém está imune a críticas em uma democracia liberal. Nem os ofendidos donos do poder, nem as igrejas que têm medo de opiniões contrárias. Acrescentaria que a nudez erótica, provocativa, é objeto de representação artística há muitos séculos, como se vê na Vênus de Urbino, de Ticiano, e em Uma Alegoria de Vênus e Cupido, de Bronzino. Diria, ainda, que mesmo que seu argumento pudesse se sustentar, e que devêssemos proibir algo apenas por ofender, quem seria apto a dizer o que insulta e o que apraz?

Viver sob uma democracia liberal implica, primeiro, a obrigação de tolerar o que não agrada e, segundo, o direito de não agradar. Com o advento da Era da Razão, um processo doloroso que se desenrolou por centenas de anos, e que encontrou ápice no século XVIII, com o Iluminismo, ficou claro que a liberdade deve ser cultivada para impedir que aqueles que falam sob a égide do fanatismo sufoquem ideias dissonantes. A nossa lei maior, a Constituição Federal, é ela própria um grito de liberdade, finalmente entoado após anos de censura e ditadura.

Reitero, ainda, o argumento que vem se tornando um cliché pela repetição constante dos defensores da liberdade: aqueles que se ofendem com nus, ou com a representação de símbolos religiosos em obras de arte, podem, simplesmente, não visitar exposições que prestigiem esses tipos de trabalho; podem, inclusive, criticar peças artísticas com essa temática. Eles também são titulares do direito à liberdade. Só não podem censurar.

A lei dos deputados brasilienses assusta, pois mostra o lado obscuro do exercício do poder e a ignorância daqueles que o exercem. Tira-nos do conforto, pois nos instiga a pensar sobre a importância de defendermos o que temos de mais importante. Mas ainda nos restam algumas garantias. Se bem me recordo, ainda é vigente o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” [2].

Esperamos que predomine a razão, não a loucura, e que a própria Câmara Legislativa do Distrito Federal reconheça seu erro e rejeite, em segunda votação, a aberração legislativa que aprovou. Mas, caso a barbárie prevaleça, que se sobreponha a ela a Carta Magna. Afinal, em uma República, impera a Lei — e não há lei maior que a Constituição.

Cito, por fim, frase do célebre Oscar Wilde: “O Estado deve fazer o que é útil. O indivíduo deve fazer o que é belo”. Que os legisladores sejam mais úteis na defesa da liberdade, para que a beleza de Davis, Vênus de Milo e Laocontes não se acabe.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.