Coluna | Racismo: seria este um tabu para os brasileiros?

Por Renê Bastos

O Veterano
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8 min readMay 26, 2021

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Alguns assuntos são tratados como tabu, e então, não podem ser ditos. A conceituação de tabu, de acordo com o antropólogo Alfred Radcliffe-Brown (2013) são as proibições que devem ser evitadas, pois alteraria a situação ritual dos indivíduos envolvidos na ação. Mas o que a alteração da situação ritual tem a ver com assuntos tratados como tabu? A minha proposta é de que até o final deste texto essa pergunta inicial seja respondida, mas ao decorrer da leitura, outras questões serão encontradas, porém não necessariamente irei respondê-las, o intuito delas será de gerar reflexões.

O que é um ritual e quais as proibições?

Muitas vezes é compreendido como ritual apenas os eventos relacionados às práticas religiosas, cerimoniais ou formais. Mariza Peirano (2003), aponta que diversas práticas e momentos da vida podem ser compreendidos como rituais, e para isto, bastaria olhar para a nossa sociedade para compreender, pois durante a vida todas as pessoas estão sujeitas a diversas experiências que alteram a situação ritual e a leitura social que elas possuem perante a comunidade. Deste modo, rituais podem ser as festas de aniversário que mudam a idade da pessoa, logo, ela passa a ser lida como mais velha pelos seus semelhantes. Também pode-se entender como ritual o ato da formatura, em que a pessoa passa da situação ritual de não-formado para formado, assim como exemplos mais presentes no dia a dia também pode haver essa mudança de leitura social, por exemplo, o ato de acordar, que passaria do status de dormindo para acordado.

Partindo desta ótica, inúmeros acontecimentos cotidianos podem ser lidos como rituais. E faz-se necessário pontuar que cada sociedade compartilha seus valores e suas eficácias simbólicas [1], portanto, em cada local entenderá o que é definido como ritual e os realizarão da maneira que faça sentido para os seus integrantes.

Se a forma de fazer os rituais precisam fazer sentido para o grupo que está praticando, as proibições também precisam estar de acordo com todos os componentes, além de estarem conscientes das consequências de realizá-las. Portanto, essas proibições, entendidas como atos ou falas que devem ser evitadas de colocadas em prática, também serão divergentes nos diferentes contextos.

Um ritual brasileiro: falar do racismo

Quando falamos nós temos medo

Nossas palavras não serão ouvidas

Nem bem-vindas,

Mas quando estamos em silêncio

Nós ainda temos medo

Então é melhor falar

Tendo em mente que

Tão esperavam que sobrevivêssemos [2]

Olhar para um evento do cotidiano como um ritual possui como intuito dramatizar e dar ênfase nas ações realizadas neste momento (DAMATTA, 1983). Em específico, olhar para o racismo como um ritual possui como intuito dar ênfase e demonstrar o que está em jogo nessa ação, quais são os elementos envolvidos e se há um tabu que modificará a situação ritual.

Durante a história do Brasil, diversas teorias foram criadas acerca das relações raciais. A ideia de participação e contribuição da tríade racial – brancos, indígenas e negros – para a formação da população brasileira foram formuladas por escritores como o alemão Von Martius (1956) e o brasileiro Gilberto Freyre (2001) teve papel fundamental para a divulgação e implementação desse pensamento no imaginário brasileiro.

Com influência dos autores citados, é inserida a noção de democracia racial no Brasil. A proposta de democracia racial no território brasileiro foi muito articulada e reproduzida, pautando como uma das justificativas o fato de não ter ocorrido uma segregação racial, como ocorreu nos Estados Unidos. Porém, teóricos e teóricas como Abdias Nascimento (2016), Lélia Gonzalez (1984), Kabengele Munanga (2019) e Sueli Carneiro (2011) descrevem e demonstram como a noção de democracia racial no Brasil não passa de um mito. Nos Estados Unidos houve a segregação racial em nome do racismo, e no Brasil, em nome do mesmo fenômeno, houve a miscigenação. Nos Estados Unidos, o distanciamento para manter as raças puras. No Brasil, a aproximação – em sua maioria violentas – para limpar, clarear e eliminar a presença de pessoas negras e indígenas da população brasileira (MUNANGA, 2019).

Para compreender o preconceito de cor na sociedade brasileira, em 1995 [3], o instituto DataFolha realizou uma pesquisa. Quando os entrevistados foram questionados se “existe preconceito contra negros no Brasil”, 89% responderam que sim, porém, quando questionados “você tem preconceito contra negros?”, apenas 10% responderam que sim. Em 2020 [4], 25 anos após a pesquisa do Datafolha, o instituto PoderData utilizou o mesmo questionário e obteve diferentes resultados. Dessa vez, 76% dos entrevistados responderam que existe preconceito contra negro no Brasil, enquanto 28% afirmaram possuir preconceito contra negro. Houve um aumento de pessoas se identificando enquanto agente de preconceito contra negro no Brasil, mas houve uma diminuição na quantidade de percepção deste mesmo preconceito.

Ainda em 2020 [5], mais para o final do ano, o instituto PoderData realiza a mesma pesquisa novamente [6]. Como resultado, obteve 81% dos entrevistados respondendo que existe preconceito racial no Brasil, e com um acréscimo, 34% dos entrevistados assumem ter preconceito contra negros. Apesar do aumento de percepção de preconceito racial e da responsabilidade por causar este preconceito, ainda há uma margem grande de porcentagem do fenômeno ocorrido e os agentes causadores.

Afinal, como poderia haver tanto racismo com poucos racistas? Entender o ato de falar do racismo com um ritual pode ajudar a compreender, e, talvez, responder esta questão.

Nas pesquisas realizadas pelo DataFolha e pelo PoderData, o racismo analisado é o antinegro, mas a partir delas já é possível observar como a sociedade brasileira compreende o racismo e como se compreendem enquanto não racistas, ou racistas. Falar sobre o racismo muitas vezes gera incômodos, de todos os lados, e é melhor manter em segredo. Como Grada Kilomba apresenta, há assuntos que devem ser “mantidos em silêncio como um segredo”, como supõe a “expressão oriunda da diáspora africana [qu]e anuncia o momento em que alguém está prestes a revelar o que se presume ser um segredo” (KILOMBA, 2019, p. 41). Entre esses segredos, estão o racismo. Portanto, se o ato de falar do racismo deveria ser um segredo, também é um tabu, então é uma proibição do ritual. Quando o racismo é relatado, alguém irá mudar a situação ritual.

Do lado do relatador, em sua maioria pessoas não-brancas apontando o racismo direcionado a seus corpos, a situação ritual passa por mudanças. Inicialmente, estava agindo como objetos, possuindo sua realidade dita e orientada por outros, e então, ao erguer a voz passa a ser sujeito relatando sua condição (hooks, 2019). Outra situação ritual que pode ser aderida a quem fala do racismo que sofreu é a pessoa virar o estigma [7] inserido em seu corpo [8]. Em outros casos, não muito raros, a leitura social atribuída a ela será de vitimista e até mesmo de louca que está inventando a situação ou vendo de maneira invertida.

Do lado do relatado, ou seja, a pessoa que praticou o ato e/ou fala racista muda a situação ritual de não racista para racista – quando é uma pessoa que anteriormente não havia demonstrado essa faceta. Em que, apesar de estarmos inseridos em uma sociedade estruturalmente racista, como aponta Silvio Almeida (2019), e como sugere Grada Kilomba, “em vez de fazer a clássica pergunta moral: ‘Eu sou racista?’ e esperar uma resposta confortável, o sujeito branco deveria se perguntar: ‘Como eu posso desmantelar os meus racismos?’, a atribuição de racista só é acionada e atribuída a alguém quando presenciado um ato explícito. E quem quer ter esse estigma associado a seu corpo? Outra situação ritual, não muito rara, acionada quando uma pessoa comete um ato de racismo é apontar que ela possui alguma patologia mental e por isso justificaria a sua ação. Outro caso também é colocar a situação ritual de uma pessoa que está passando por um momento difícil [9], não possui acesso a informação, ou ser chucro.

Para o sociólogo Florestan Fernandes (1965), “o brasileiro possui preconceito de ter preconceito” e muitas vezes se inibe de debater essa temática e demonstrar que possui alguma discriminação. Portanto, estariam os brasileiros com medo de serem considerados racistas, mas não possuem medo de praticarem o racismo? O tabu ao falar do racismo seriam as denominações aderidas a quem praticou o ato racista e não da realização do ato de racismo?

Não pretendo responder essas questões, apenas colocá-las para reflexão. E também, neste texto não pretendo apresentar uma verdade universal para o caso brasileiro e sobre os brasileiros, apenas uma interpretação a partir de generalizações que podem gerar reflexões para quem se permitir.

Notas de Rodapé:

[1] De acordo com o antropólogo Lévi-Strauss (1996), eficácia simbólica são os valores, símbolos e significantes compartilhados para um determinado grupo; e há um significado e faz sentido ser utilizado para eles.

[2] Uma ladainha pela sobrevivência de Audre Lorde.

[3] Pesquisa realizada entre 4 e 6 de abril.

[4] Pesquisa realizada entre 22 e 24 de junho de 2020.

[5] Pesquisa realizada entre 9 e 11 de novembro de 2020.

[6] Dados das pesquisas realizadas. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poderdata/81-veem-racismo-no-brasil-mas-so-34-admitem-preconceito-contra-negros/. Acesso em: 11 de abril de 2021.

[7] De acordo com o antropólogo e sociólogo Erving Goffman (1988), o estigma é um atributo contrário ao padrão da sociedade, que ao serem identificados nos corpos dos indivíduos, modificam a leitura social.

[8] Desse modo, a pessoa passa a ser conhecida pelo adjetivo atribuído ao seu corpo, ou então, como “a fulana que sofreu racismo”.

[9] Como se isso fosse justificativa para descontar em outras pessoas o momento negativo que está passando, ou até mesmo ser racista.

Referências Bibliográficas:

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo negro, 2011.

DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Editora Nacional, 1965.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil 1. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. Tradução: Mathias Lambert, v. 4, 1988.

GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS, n. 2, p. 223–244, 1984.

hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In: ______. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.

NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectivas, 2016.

MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 2013.

FRIEDRICH, Karl; MARTIUS, Von; RODRIGUES, José. “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: Revista de História de América, nº 42, p. 433–458, 1956. Disponível em: www.jstor.org/stable/20137096. Acesso: 21 de maio de 2021.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.