Coluna | Um mundo de refugiados: O Nobel de Literatura de Abdulrazak Gurnah

Por Pedro Jatene Ellery

O Veterano
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4 min readOct 20, 2021

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. “Refugees” – Cyprián Majerník – Slovak National Gallery

Desce a poeira após o fim da temporada do Prêmio Nobel. Por uma semana, entre 4 e 11 de outubro, as Reais Academias da Suécia e entidades associadas divulgaram os recipientes da mais prestigiosa honraria da atualidade. Os laureados, para além da glória eterna e de um montante nada dispensável de coroas suecas, ganham também fama mundial instantânea, por vezes de maneira desprevenida: o fuso-horário sueco transforma solenes anúncios matinais em ligações telefônicas na madrugada, frequentemente tidas por trotes.

Nesse contexto, o anúncio provoca rebuliço não apenas na vida do premiado, mas também na cena pública ao redor do mundo. A organização do prêmio, portanto, dispõe de um poder de agenda temática sem paralelos, sobretudo por intermédio do Nobel de Literatura, capaz de tornar autores pouco conhecidos fora dos círculos intelectuais em queridinhos do mercado editorial. Com isso, a Academia Sueca consegue pautar o conteúdo consumido por milhões de leitores nos meses e até mesmo anos que se seguem à premiação. Em vista desse fenômeno, as justificativas que acompanham cada premiação deixam transparecer parte das intenções subjacentes à escolha do recipiente.

Para o laureado de 2021, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah, o prêmio se deveu «a seu aprofundamento rigoroso e solidário dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes». A escolha por um romancista negro e africano, primeiro de seu país a receber a honraria, certamente é produto de seu tempo e do esforço de muitos para que o rol de recipientes se torne mais diverso e representativo da pluralidade que a premiação pode englobar. Basta lembrar que Gurnah é apenas o quarto autor negro a ser contemplado, e, dentre eles, o segundo de seu continente. Na verdade, desde a indicação da estadunidense Toni Morrison, em 1993, nenhuma pessoa negra havia recebido a premiação.

A escolha de um acadêmico especializado em literatura pós-colonial – Gurnah aposentou-se recentemente de sua posição na Universidade de Kent, no Reino Unido – encontra paralelos com as recentes acusações de eurocentrismo direcionadas à Academia Sueca. Desde 2018, quando escândalos de assédio sexual culminaram na suspensão do anúncio da laureada do próprio Nobel de Literatura, ganham peso os questionamentos sobre a composição majoritariamente masculina, branca e europeia tanto dos escolhidos para a honraria, quanto de seus «escolhedores». Dessa forma, parece que a organização do prêmio ensaia uma mudança de rumos para sua imagem, ao menos na decisão sobre o tema privilegiado, talvez em uma tentativa, quer honesta, quer cínica, de se legitimar.

Aspectos conjunturais extrínsecos, por mais relevantes e urgentes, não podem, no entanto, apagar o mérito próprio do laureado. Gurnah, que se refugiou no Reino Unido após a Revolução do Zanzibar, na década de 1960, incorpora suas experiências à literatura que escreve. Confere o subjetivismo necessário para abordar, com riqueza de expressão, a visão daqueles que são forçados a deixar seu local de origem, sem, contudo, abandoná-los por completo. A exemplo dessa conexão, o romancista disse, apesar da cidadania britânica, sobre seu país natal: «Eu sou de lá. Em minha mente, vivo lá».

A África Oriental e suas peculiaridades – exóticas a olhos suecos – fazem-se temas perenes na obra de Gurnah, mesmo quando não explicitamente representadas. Seu magnum opus, Paradise, de 1984, traz justamente a região como cenário – e quase-personagem – na trama ocorrida durante a I Guerra Mundial. A obra, vale mencionar, foi finalista para o Booker Prize, premiação de literatura em língua inglesa, que também prestigiou «By the Sea», publicada em 2001. As crises humanitárias, como a guerra e seus refugiados, são igualmente presentes em uma produção que deliberadamente busca incorporar as línguas natais do autor – swahili e árabe – ao texto escrito em inglês.

Nessa perspectiva, de dualidade e tragédia, florescem os grandes dramas da obra de Gurnah, que, embora colossais em escala, são tratados de maneira psicológica e intimista. O deslocamento, cultural e emocional, provocado pelo exílio é a principal manifestação da emigração compulsória conforme ilustrada pelo autor. Por conseguinte, a experiência dos refugiados deve ser compreendida, à luz de sua literatura, como faceta indissociável do trauma do colonialismo.

A dicotomia entre pertencimento e estrangeiramento marcam constantemente a vida e a obra de Abdulrazak Gurnah. Não por acaso, o anúncio de sua premiação foi recebido com reações mistas em seu país natal. Enquanto muitos acreditam que sua vivência diaspórica não invalide a identificação com suas origens, a inserção limitada de suas obras na Tanzânia e debates acerca de sua dupla cidadania, agravados pelo movimento de autonomia no arquipélago de Zanzibar, põem em dúvida a real natureza tanzaniana da conquista.

De todo modo, a obra de Gurnah ocupa posição incontornável na moderna literatura africana – e, a partir de agora, mundial. Espera-se que o anúncio do mais recente laureado do Nobel aumente a popularidade de sua produção não apenas nos mercados ocidentais, mas também em seu país de origem, de modo que um número ampliado de leitores possa ter acesso à sua percepção sobre a experiência humana universal do deslocamento. Por fim, seus escritos trazem uma poderosa investigação sobre este que, sobretudo à luz dos impactos da pandemia, será, infelizmente e cada vez mais, um mundo de refugiados.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.