Conjuntura Econômica | Os Novos Rumos da Forma Monetária no Brasil

A questão da liquidez instantânea

Pedro Cytryn
O Veterano
5 min readSep 2, 2020

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QR code para transferência instantânea Fonte Unsplash

Produzir, trocar, consumir. Produzir, trocar, consumir. Até não muito tempo, essa era a forma com que os habitantes do planeta garantiam a manutenção da espécie. Se alimentar, se proteger do frio, ou mesmo do calor, e ter insumos e materiais necessários para sobreviver face às intempéries impostas pela natureza ou mesmo por outros homens. Impulsionados pela motivação visceral de autopreservação, os humanos, dentre muitos comportamentos, aos poucos se juntaram em grupos, que foram ficando maiores, desenvolvendo valores morais, instituições sociais e noções de poder cada vez mais complexas. Uma das mais importantes consequências desse processo foi o advento da moeda — podendo ser de ouro, prata ou outros metais. Os homens não mais precisavam se limitar a trocar o que produziam, processo que se aprofundava conforme aumentava a divisão do trabalho nas sociedades.

A moeda, tendo como funções ser meio de troca e unidade e reserva de valor, contribuiu para o florescimento do comércio entre diferentes povos, o que significou um verdadeiro intercâmbio cultural e de valores na Terra. Acompanhar a evolução dos sistemas monetários ao longo da história, bem como da cunhagem de moedas, muito denuncia características de cada período, com particular ênfase nas interações econômicas (Leia mais sobre o Papel da Moeda n’O Veterano).

Os anos se passaram, sistemas político-econômicos foram lapidados e a moeda, esta como uma quase-instituição, foi também muito alterada. Nos últimos séculos, adventos importantes foram elaborados, como o papel-moeda e a moeda escritural. Esses podem ser compreendidos como a materialização do papel do Estado de garantidor último das interações econômicas dentro de uma nação. Uma nota de R$50,00 reais seria apenas um papel colorido, mas fiat lux, o lastro estatal confere a ela seu valor intrínseco. O valor monetário é de difícil definição, pois depende da confiança dos agentes econômicos na ‘validade’ da figura do Estado. Ou seja, é uma criação que só se mantém viva graças ao enforcement dado ao contrato social existente em determinada nação.

A tremenda dependência do sistema econômico em relação às moedas, bem como a necessidade de maior organização, fez com que o primeiro banco comercial surgisse em 1656 na Suécia e o primeiro banco central em 1694 na Inglaterra. Juntos, bancos comerciais e banco central compõe o denominado Sistema Monetário de um país. São as instituições que, por lei, tem direito de emissão de moeda — criação dos ativos de maior liquidez da economia.

É verdade que, atualmente, a maciça digitalização na troca de conteúdo e informações tem gerado significativos impactos nos sistemas financeiro e monetário. Além da criação das moedas digitais, como o Bitcoin, Etherium e outras, há a rapidez no acesso dos próprios dados financeiros, bem como na realização de operações. Os mercados de ações, títulos e fundos estão a um clique. Esses nunca estiveram tanto ao sabor das especulações, e as respostas dessas parecem quase que imediatas. Nos sistemas financeiros modernos, a distinção por nível de liquidez dos diferentes encaixes monetários é cada vez mais difícil, visto que as fronteiras que delimitam tais categorias são progressivamente mais fluídas. [1]

No início dos anos 2000, o Banco Central do Brasil (BCB), de modo pioneiro, aprovou a utilização de duas ferramentas de transação relativamente ágeis. TED e DOC, abreviações, respectivamente, de Transferência Eletrônica Disponível e Documento de Ordem de Crédito. Tais ferramentas foram muito bem recebidas na época. Por sua vez, reduziam o tempo e aumentavam a segurança das transações visto que o dinheiro em questão era composto por simples assinaturas digitais sendo transacionadas de forma virtual. Nesse sentido, dispensava-se o dinheiro no bolso. Como acontece com frequência, contudo, esse serviço vinha com um custo.

A recente aprovação do BCB quanto ao PIX trouxe uma nova forma de transferência sem custo e de demora de apenas 10 segundos. O quase diário aumento da velocidade de transmissão de dados na internet — redes 5G, por exemplo — e da capacidade computacional de nossos gadgets tornaram TED e DOC novas vítimas da destruição criativa schumpeteriana¹. Além deles, empresas como Visa, Elo e Mastercard também irão sofrer com a competição gerada pela nova tecnologia, uma vez que o PIX levará os cartões de débito e crédito a serem gradativamente abandonados.

Apesar de sermos pioneiros quanto ao TED e DOC, o PIX já tem pleno funcionamento em outros 54 países ao redor do mundo. A funcionalidade do seu arranjo consiste no uso de QR codes, inserção de chaves eletrônicas e inserção manual de dados do usuário. Pode parecer algo muito novo e pouco conhecido, mas, em verdade, esse sistema esteve presente em todos as lives artísticas durante a pandemia que recolhiam doações via QR code. Um exemplo banal seria: você vai a um restaurante, paga usando PIX, o dono do restaurante automaticamente recebe o dinheiro e no mesmo segundo paga a escola de seus filhos.

Estas características fazem com que o sistema de pagamento seja instantâneo, contribuindo para que a economia gire mais rápido. Tal funcionalidade, inclusive, tem duas consequências que não podem passar despercebidas: (1) o aumento da interoperabilidade entre os diferentes players do mercado monetário e financeiro e (2) incentivo ao ambiente de criação de fintechs no contexto do movimento open banking.

O estímulo dado ao movimento open banking traz consigo outra discussão relacionado ao PIX: a governança sobre o armazenamento de dados pessoais bancários. O fato de o BCB ter gerência sobre o sistema está relacionado à questão de segurança nacional, uma vez que são dados sensíveis da população brasileira que têm sua exposição e acesso aumentados. Além disso, a rastreabilidade das transações faz com que o PIX seja, também, uma ferramenta jurídica; isto é, um instrumento anti: corrupção, lavagem de dinheiro, trabalho informal e sonegação de impostos.

Dessa forma, fica evidente que o PIX — com suas propriedades de liquidez instantânea, derrubada de barreiras para transações financeiras e governança sobre dados pessoais — abre caminho para que no futuro o Brasil venha a ter a chamada Central Bank Digital Currency — como o Yuan digital chinês. [2]

Produzir, trocar e consumir já estão no passado — até mesmo para nossos antepassados, que já vem usando amplamente a moeda como meio de troca ao longo dos últimos, no mínimo, 2 milênios. Porém, aqueles que vieram antes de nós se assustariam com a velocidade com que o produzir é remunerado e como o consumir se tornou algo fácil. Podemos considerar o PIX uma verdadeira revolução nos meios de pagamento: fazer negócios nunca pareceu tão fácil. Aliás, com o PIX fazer negócios é literalmente instantâneo e sem custos.

Nota explicativa:

  1. Schumpeter, cientista político e economista austríaco, cunhou o termo ‘destruição criativa’ para explicar o processo capitalista no qual novas tecnologias competem por mercado com velhas tecnologias. As novas, resultantes do processo criativo humano, acabam por destruir as velhas.

Referências:

[1] PENHA CYSNE, Rubens; SIMONSEN, Mario Henrique. Macroeconomia. Editora Atlas S.A,2009; pp. 1–6

[2] CUNHA, Gustavo; Como a implementação do PIX, sistema de pagamentos instantâneos do Brasil, vai mudar nossa vida. 2020. (34m36s). Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=FRmEK59-0p8&feature=youtu.be,Acesso em:25 agosto. 2020

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