Opinião | Depois do dia 7…

O que os atos antidemocráticos nós dizem sobre o estado atual da conjuntura política?

Luca Cechinel
O Veterano
11 min readSep 29, 2021

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Manifestação em frente ao Congresso Nacional (Fonte: Flickr Senado Federal)

Os dias que cercaram o 7 de Setembro foram de muita tensão para a maioria dos brasileiros. Para alguns, foi uma oportunidade de demonstrar lealdade a um presidente com um recorde de impopularidade, supostamente sitiado pelos demais poderes. Para outros, o dia no qual a sombra de uma ruptura institucional pairou sobre o país e especulações sobre um destino autoritário foram mais fortes do que em qualquer momento desde a redemocratização do Brasil.

Porém, o 7 de Setembro passou, e em poucos dias vimos suas consequências na conjuntura política. Independente de posicionamento político, independente de opinião quanto ao Presidente da República e sua gestão, arrisco dizer que o resultado foi surpreendente para quase todos os brasileiros: uma recuada de Bolsonaro quanto as suas ameaças autoritárias, e a promessa de cooperação com os demais poderes que a pouco tempo o mesmo atacava e prometia derrubar.

Então, o que aconteceu? Por que essa reversão de curso se deu de maneira tão brusca? O que esperar para o futuro?

Vitória ou morte!

No dia 28 de Agosto de 2021, Jair Bolsonaro, Presidente da República Federativa do Brasil, afirmou durante um encontro com lideranças religiosas que seu futuro teria dois possíveis desfechos: a vitória ou a morte. Chegou a mencionar a possibilidade de ser preso, mas descartou esse fim. A que vitória Bolsonaro se referia? Sobre quem ela seria? Isso ficou um tanto ambíguo, mas pode-se inferir que essa fala seria apenas mais uma das suas ameaças veladas, utilizadas para mobilizar a militância bolsonarista nas vésperas das manifestações do dia 7 de Setembro.

No final de Agosto, a situação não parecia particularmente boa para o Presidente. A economia ainda patinava no que tange à recuperação, esta inclusive ameaçada pelos possíveis efeitos da proliferação da variante Delta da COVID-19 no Brasil. A campanha anti-vacina propagada pelo governo falhou miseravelmente: pesquisas feitas desde o início do ano demonstram que a maioria acachapante dos brasileiros planejam se vacinar contra a COVID, com o país sendo o de maior adesão à vacinação entre os pesquisados. O governo também sofria com derrotas no legislativo — apesar do apoio do Centrão — , a mais importante delas sendo a da PEC do voto impresso. Mesmo com o Presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) ignorando o resultado da votação contrária ao parecer da comissão e levando a pauta ao plenário, junto com um desfile de tanques organizado pelo governo para intimidar os deputados, a proposta foi derrotada após não obter os 308 votos necessários.

Todos esses fatores e vários outros resultaram no que todos sabemos: de acordo com as pesquisas do Poder 360, no início de Setembro o governo bateu seu recorde de desaprovação, com 63% desaprovando e apenas 27% aprovando o trabalho do executivo. Isolado e impopular, Bolsonaro optou por uma tática que não é novidade na política brasileira: provar para a classe política, a imprensa e as demais instituições que sua popularidade se sustenta pelas ruas, apesar dos índices negativos das pesquisas.

Quando digo que isso não é novidade, me refiro, por exemplo, à renúncia de Jânio Quadros em 1961. Apesar da expressiva vitória nas urnas alguns meses antes, o governo Quadros enfrentava uma grave crise econômica e carecia de apoio legislativo para seus projetos. Arquitetou-se então um plano no qual Jânio renunciaria repentinamente à presidência. Sabendo do apoio popular que ainda tinha do eleitorado e o medo de um possível governo chefiado pelo vice-presidente João Goulart, então uma das principais lideranças da esquerda brasileira, Jânio acreditava que sua renúncia seria recusada pelo Congresso, ou que sua manutenção seria pelo menos chancelada pelas forças armadas. No caso, ambos os resultados garantiriam a ele apoio institucional para governar.

Outro caso famoso foi o de Fernando Collor. Em 1992, o governo Collor, o primeiro diretamente eleito desde a redemocratização, encontrava-se encurralado. O pacote de medidas econômicas destinadas ao combate à inflação, o chamado “Plano Collor”, havia falhado após a retomada da espiral inflacionária, e simultaneamente começavam a surgir várias denúncias de corrupção dentro do governo, a maioria ligadas a atuação de P.C Farias, tesoureiro da campanha presidencial que elegeu Collor em 1989. O presidente, então, pediu que seus apoiadores saíssem às ruas trajando roupas com as cores da nação, e que colocassem bandeiras do Brasil em suas janelas, tudo como uma demonstração de apoio.

Qual foi o resultado dessas tentativas? No caso de Jânio, sua renúncia foi aceita pelo Congresso, o exército não intervindo em seu favor e, depois de uma breve crise sucessória, João Goulart foi empossado presidente da república. No caso de Collor, a maioria das pessoas saíram vestidas de preto em protesto, manifestações contra o governo eclodiram em várias cidades e a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), responsável pela investigação dos casos de corrupção, aprovou um relatório que daria margem ao seu eventual impeachment.

Ou seja, a tentativa de “governar pelas ruas” falhou em ambos os casos, com consequências sérias para os presidentes que as endossaram. Com Bolsonaro não seria diferente: como o próprio falou, as manifestações do dia 7 representariam sua vitória ou sua morte, seja ela literal ou política.

A única diferença de extrema importância é que tanto os apoiadores de Jânio quanto os de Collor não defendiam um projeto político golpista. Em suas manifestações de apoio ao seu presidente, não desejavam a queda das demais instituições públicas, tampouco clamavam pelo fim da democracia no Brasil. No caso dos apoiadores do presidente Bolsonaro, a situação, como bem sabemos, é diferente.

Amanhã vai ser gigante!

Ao que tudo indicava, as manifestações do dia 7 seriam grandes, e contariam com elementos potencialmente perigosos. O governo federal mobilizou a máquina política para levar a maior quantidade de pessoas às ruas, planejando manifestações em várias cidades, mas concentrando esforços nas manifestações de Brasília e São Paulo, ambas das quais contariam com a participação direta de Bolsonaro.

Carreatas de todo o Brasil saíram em direção às capitais, onde se concentrariam os atos. Vários políticos importantes da base governista convocaram os “cidadãos de bem” para aderirem, e Bolsonaro pediu aos líderes religiosos, especialmente os bispos evangélicos aliados ao governo, que levassem seus fiéis às ruas em defesa do seu projeto de governo. O principal medo surgiu da possível participação de membros da Polícia Militar nos protestos, os quais estavam sendo ativamente convocados pela rede bolsonarista a aderirem. Governadores e comandantes da força reagiram rapidamente, e muitos prometeram sanções fortes contra os policiais que estivessem presentes, mas era impossível prever se de fato iriam participar dos atos antidemocráticos em grande número.

Uma posição interessante foi aquela adotada pelo exército: apesar de terem participado da “tanqueata” no dia do voto impresso apenas algumas semanas antes, as forças armadas decidiram não executar o tradicional desfile militar do dia 7, citando a pandemia como motivo pela ausência. Apesar disso, as manifestações contaram com inúmeras declarações de apoio às forças armadas por parte dos apoiadores do presidente, alguns que inclusive pediam abertamente por uma intervenção militar para destituir o Congresso, o Supremo Tribunal Federal (STF), os governadores e qualquer outro “inimigo” declarado do bolsonarismo. As manifestações também se posicionaram fortemente contrárias ao ex-presidente Lula, e o Partido dos Trabalhadores (PT) como um todo; as manifestações realizadas em São Paulo também denunciavam especificamente a gestão do governador João Dória (PSDB-SP), antigo aliado de Bolsonaro que se tornou mais um dos muitos desafetos do presidente. Muitos apoiadores chegaram a levar cartazes escritos em inglês, como se quisessem demonstrar para a imprensa internacional seus sentimentos autoritários.

Nos dias anteriores à manifestação, Bolsonaro pessoalmente atiçou seus apoiadores com uma série de declarações preocupantes que encarnavam as raízes golpistas do ato. Falou, por exemplo, que as manifestações visavam à defesa da “liberdade”, e que eram um “ultimato” aos ministros do Supremo Tribunal Federal que se opunham às medidas autoritárias do presidente. Na madrugada do dia 6 para o 7, quando as tensões já estavam altas, um grupo dos apoiadores do presidente, que já se localizavam em Brasília em antecipação aos atos, invadiu a esplanada dos ministérios. Apesar de uma resistência inicial por parte da Polícia Militar do Distrito Federal, esta eventualmente permitiu a entrada dos manifestantes. Posteriormente, foi confirmado que a entrada teria sido liberada pelo Governo do DF, visando principalmente a evitar quaisquer encontros violentos entre manifestantes e policiais. Ainda assim, um acontecimento preocupante em qualquer cenário.

Alguns grupos da oposição marcaram atos contrários ao governo em locais diferentes, buscando levar a população às ruas contra Bolsonaro. Essa mobilização, porém, teve apenas a participação de certos grupos de esquerda: o centro e a direita democrática não participaram, e alguns partidos e líderes da esquerda, receosos de possíveis encontros violentos entre apoiadores dos dois lados nas ruas, se posicionaram contra a adesão.

Ninguém sabia muito bem o que esperar dos atos do 7 de Setembro. Seriam eles um mandato para Bolsonaro atentar mais diretamente contra as instituições, talvez até concretizando uma ruptura? Ou será que fracassaram e demonstraram a fraqueza atual do presidente?

“Não pode ir pro tudo ou nada”

Pode resumir o saldo do dia 7 da seguinte maneira: foi colocada gente suficiente na rua para fazer uma boa foto, mas demonstrou-se o esvaziamento e os limites da articulação bolsonarista.

É inegável que muitos apoiadores do presidente foram às ruas naquela terça-feira de feriado. Algumas cidades, inclusive, chegaram a ter protestos com mais de 100 mil participantes — números impressionantes e certamente maiores do que os das manifestações da oposição até agora organizadas. A questão é que esses números não correspondem às expectativas do próprio presidente e de seus apoiadores. Em Brasília, um ministro do Supremo recebeu a estimativa de que apenas 5% do público esperado compareceu à manifestação na esplanada; em São Paulo a estimativa é de que aproximadamente 6% dos manifestantes esperados tenham participado do ato na Avenida Paulista.

O ato foi, em termos de retórica, tão golpista quanto esperado: os apoiadores do Presidente clamaram pela derrocada dos demais poderes e convocaram o presidente a tomar o poder. O próprio Bolsonaro, enquanto discursando na manifestação de Brasília, ameaçou diretamente o Supremo Tribunal Federal. Mesmo assim, nenhuma tentativa física de ruptura ocorreu durante nenhum dos atos espalhados pelo país.

Um fator determinante foi que o Bolsonarismo, cada vez mais radicalizado, se tornou uma visão política com cada vez menos adeptos entre a população: aqueles que atualmente desaprovam do presidente Bolsonaro e do seu governo dificilmente passarão a apoiá-lo após a deflagração dos atuais atos. Muito pelo contrário: é provável que essa atuação o faça perder ainda mais apoio popular. Adicionado a isso, um grande indicativo da fraqueza do presidente foi, certamente, a menor adesão por parte de grupos policiais e religiosos do que era esperado.

Portanto, vemos que a tática de Bolsonaro, de focar em manter o apoio de um grupo pequeno de apoiadores extremamente leais, tem suas limitações. Afinal, por mais leal que um indivíduo possa ser a um político, ele só pode votar nele uma vez. A palavra “impeachment” começou a ser dita nos bastidores novamente, talvez a primeira consequência de todo esse ato. Porém, esse seria apenas o começo de uma série de novos desdobramentos na política nacional que ocorreriam como consequência dos atos.

No dia seguinte, deflagrou-se uma paralisação por parte dos caminhoneiros bolsonaristas, o que causou preocupações óbvias. A greve dos caminhoneiros de 2018, provocada pelo constante aumento de gasolina, levou a uma paralisação de várias importantes rodovias e um desabastecimento generalizado nas grandes cidades. O medo de uma reprise da greve e seus efeitos foi multiplicada pelo caráter expressamente bolsonarista dessa mobilização; grupos de caminhoneiros, sem apoio sindical ou associativo, organizaram essa paralisação expressamente em apoio ao presidente, deflagrado uma espécie de continuação dos atos do dia 7. Com todo o potencial caótico que esse evento poderia causar, muitos suspeitavam que Bolsonaro iria explorá-lo a todo custo para propagar ainda mais o caos, possivelmente servindo como combustível para uma renovação da crise política.

Bolsonaro, porém, fez o impensável: desmobilizou o ato, pedindo que os caminhoneiros liberassem as estradas tendo como justificativa os possíveis efeitos negativos que a paralisação traria à já combalida economia. Apesar de encontrar certa resistência por parte dos grupos mais radicais, os bloqueios foram gradualmente desmontados, e as estradas, liberadas. É possível que nunca saibamos se o presidente realmente era contrário a tal mobilização ou se apenas clamou pelo seu fim devido a pressões externas, algo que, todavia, não diminui o fato desta ter sido uma decisão atípica para Bolsonaro.

Esse suposto détente não parou por aí, e o maior sinal de que algo havia mudado veio no dia 9, quando os canais oficiais da presidência da república divulgaram uma “Declaração à Nação” supostamente escrita pelo próprio presidente, na qual afirma, entre outros pontos, que nunca tivera “nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes” e ressalta o “respeito pelas instituições da República”. Portanto, vê-se uma clara mudança em relação às falas golpistas e inflamadas que ele vinha há semanas proferindo publicamente, tanto nas manifestações quanto nos eventos da agenda oficial do Governo.

Ainda mais curiosa que a carta em si foi a sua elaboração: pouco após a sua publicação, já se sabia que teria sido escrita sob orientação do ex-presidente Michel Temer. Logo em seguida, soube-se que Temer não havia apenas oferecido seu conselho; ele teria sido o próprio autor da carta. É importante frisar que isso não é uma teoria da conspiração ou um rumor, já que o próprio Temer confirmou à TV Globo que era o autor. O ex-presidente também teria promovido uma conversa por telefone entre Bolsonaro e o Ministro Alexandre de Moraes, o indicado de Temer ao Supremo que se tornou um dos principais inimigos do bolsonarismo.

Muitos dos apoiadores do presidente, especialmente aqueles que haviam embarcado completamente na retórica golpista, ficaram decepcionados com esse aparente recuo. Bolsonaro buscou se explicar frente aos seus apoiadores, negou que havia uma retirada em andamento, mas disse algo que desenhou nitidamente a mudança de curso: “Não pode ir pro tudo ou nada”.

“Nos vemos em 2022”

Frente a essa mudança brusca, qual o futuro do governo? Essa é uma análise muito difícil de fazer, pois não sabemos exatamente o que Bolsonaro e seus ministros têm como planos para o futuro próximo. Adicionado a isso, é possível que essa aparente moderação seja apenas mais uma cortina de fumaça para momentaneamente acalmar os ânimos da classe política; não seria a primeira vez que o governo promete moderação só para posteriormente retomar sua atitude golpista.

A única certeza que temos é de que, como demonstrado anteriormente, Bolsonaro vai muito mal nas pesquisas. Isso, adicionado às demonstrações relativamente reduzidas do dia 7, mostra a fragilidade do governo quanto a opinião pública.

Se o dia 7 teve uma importância, foi para demonstrar que, apesar de cercado por um grupo extremamente leal (até fanatico, em clara demasia), a maioria acachapante do eleitorado é contrária ao golpismo representado pelo Presidente. Se Bolsonaro buscava um mandato para atentar contra as instituições, claramente não o conseguiu. O Presidente, que já era fraco, saiu ainda mais fraco de sua intentona; não apenas teve que cessar seus ataques, como teve que recuar, pedir “desculpas” e se encostar em figuras às quais dedicou muito tempo para atacar no passado. Independente de como se enxerga a situação, decerto essa não foi uma boa semana no Palácio da Alvorada.

Se Bolsonaro vai tentar seguir uma cartilha de “moderação’’ até as eleições, ou se está apenas esperando um momento propício para concretizar o “tudo ou nada”, apenas o tempo dirá. O que é certo é que o golpismo do Bolsonarismo atingiu o seu ápice, apenas para despencar rapidamente até o chão, desarticulando grande parte do aparato de apoio que havia sido construído durante os últimos meses.

Apesar de tanto o impeachment quanto as eleições ainda estarem longe, a cada dia que passa Bolsonaro se assemelha mais a Jânio e/ou Collor em termos de instabilidade de governança. A única diferença é que, quando sair da Presidência (seja pelo meio que for), as atitudes de Jair Bolsonaro possivelmente irão lhe render um tratamento muito diferente daquele recebido por outros presidentes que deixaram o cargo sob circunstâncias atípicas. Afinal, uma vez fora da presidência, não existe maioria parlamentar capaz de apagar um léxico tão extenso de crimes.

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Luca Cechinel
O Veterano

Estudante da graduação de ciências sociais da Fundação Getúlio Vargas. Interessado em tópicos relacionados a política, sociedade, história e cinema.