Editorial | Amor, Respeito e Diversidade

Há mais de 50 anos atrás, no dia 28 de junho de 1969, o mundo assistia pela primeira vez o que viríamos a chamar de orgulho LGBT+, reflexo da Revolta de Stonewall.

O Veterano
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10 min readJun 27, 2020

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O amor entre jovens homens é reputado vergonhosamente pelos bárbaros e por aqueles que vivem sob um governo despótico, como a filosofia é também vergonhosa para eles; pois os interesses dos tiranos requerem que seus súditos sejam pobres de espírito e que não haja amizade e amor apaixonado — os quais esta relação é particularmente apta em produzir. — Platão. [1]

Em 73 países relações consensuais entre o mesmo sexo são criminalizadas, em especial as masculinas, sob os nomes de sodomia, subversão, ofensa antinatural, …

Em 12 a pena de morte é uma possibilidade para estes casos e, em pelo menos 6, é exercitada.

Jovens LGBT+ contemplam o suicídio quase 3 vezes mais.

Bicha, veado, boiola, invertido, frutinha, sodomita, maricas, afeminado, fresco, sapatão, … — são variados os nomes usados, mesmo em países “tratáveis”, para menosprezar qualquer desvio do padrão heteronormativo. Oscar Wilde, Alan Turing, Philippe (o Duque de Orleans), Alexandre o Grande, Harvey Milk, Michelangelo, Adriano (imperador romano), Frederico II da Prússia, são muitas as grandes figuras que tinham preferências não consideradas normais pelos preconceituosos presentes. Agora, será que ousariam usar estas palavras como ofensas se soubessem da grandeza desses indivíduos e da virtude de seus feitos?

Um Histórico Abrangente

Há três componentes tacitamente admitidos como pilares da civilização ocidental: a filosofia grega, o direito romano e a moral judaico-cristã. Eles estiveram separados no tempo e foram unificados em uma existência única somente quando da conversão do imperador Constantino. Ora, o pensamento moral antes da instituição do terceiro elemento era muito diferente em relação àquele depois, apesar de algumas similaridades. Dito isso, nos interessa as divergências no assunto da sexualidade. Os gregos e os romanos conduziam o sistema de pederastia, por exemplo — era uma relação considerada como mentoria. Ademais, os simpósios gregos eram prolíficos de relações homossexuais masculinas — a epígrafe que inicia este texto, por exemplo, foi extraída justamente do livro “Symposium” (O Banquete) de Platão. Ao tratarmos das mulheres, temos um cenário mais incerto, pois há uma discussão histórica sobre as relações femininas — devido ao número de registros ser muito inferior.

Homens em um simpósio, detalhe de um afresco da parede norte da Tumba do Mergulhador de Pæstum, Itália. Fonte: greenworlder.

Há uma diversidade de fatos curiosos sobre as práticas das instituições relacionadas ao assunto, por exemplo o Batalhão Sagrado de Tebas, que era formado exclusivamente de casais homossexuais masculinos. O batalhão seria completamente aniquilado em uma batalha contra Alexandre Magno, ainda antes deste se tornar rei. Dito isso, o próprio Alexandre teria 3 esposas (Roxana, Stateira II e Parysatis II), um concubino (Bagoas) e um companheiro militar (Hephaestion). Ou seja, a civilização greco-romana em geral aceitava certos tipos de relações homossexuais, apesar de serem algo relativamente elitizado. O advento do cristianismo foi, portanto, prejudicial nesse aspecto. Ademais, de muitas formas, as igrejas continuam por propagar preconceito e desinformação sobre o assunto, e o problema não para aí. Instituições de cunho religioso ainda criam “campos de correção sexual” (notoriamente nos Estados Unidos), implicando a ampliação de um ambiente tóxico, com o abuso de guardiões fanáticos e as práticas completamente sem base científica dessas instituições.

Masculinidade tóxica

A comunidade LGBT+ esteve historicamente à margem, em decorrência da moralidade que conduziu o pensamento Ocidental. Para além disso, um dos fenômenos que mais prejudicam estas pessoas é a chamada masculinidade tóxica. O conceito não se refere ao que é considerado masculino ou não, e sim ao efeito que esta caracterização produz. A partir do momento em que os aspectos exigidos para que o indivíduo seja considerado masculino reproduzem e amplificam comportamentos como a homofobia, a misoginia e a violência sexual, têm-se a masculinidade tóxica. Mais ainda, é relevante levantar também como estas características podem amplificar fenômenos como o bullying, o consumo de drogas e bebidas na adolescência, o comportamento violento contra a mulher, a depressão dos homens heterossexuais.

O estereótipo masculino tóxico é que apresenta levantes problemáticos para toda a sociedade. Esta questão é agravada ainda mais em uma estrutura familiar pronta para reforçar estes padrões nefastos, não havendo espaço para uma expansão completa do universo conceitual. “Você é um homem ou um rato?” A questão que tantos levantam para os seus filhos e para crianças em geral é, por exemplo, uma demonstração de vergonha contra diversas atitudes que nada têm realmente de errado. Isto é, o indivíduo só seria masculino se permanecesse incólume, não demonstrando sentimentos reais sobre os outros, não praticando “frescuras” (seja lá que definição absurda tenham em mente), não elogiando outros homens, dentre outras coisas. Onde está o equilíbrio?

Os fenômenos prejudiciais oriundos desta concepção de gênero se engendram desde a infância, na medida em que a criança é ensinada a reprimir os comportamentos caracterizados como femininos. É importante lembrar do poder de adaptação do cérebro e a impressionante velocidade com que as crianças aprendem e repetem os comportamentos observados ao seu redor. Logo, ensinar a um menino a repressão anteriormente citada criará uma réplica constante em outros ambientes. E é através deste ciclo vicioso que surgem os casos de bullying. Esta prática de exclusão do próximo é executada com o uso de palavras pejorativas e de caráter extremamente homofóbico, com o fim de depreciar o homem que apresentar um comportamento visto como feminino.

A noção de que a expressão de sentimentos, especialmente da tristeza (pelo choro), deve ser suprimida por caracterizar uma atitude feminina é um dos meios pelos quais a atitude misógina é incentivada. Na infância, isso figura em grupos de meninos que excluem e repudiam as meninas e, da adolescência em diante, vai desde a ideia de ser o homem — necessariamente — quem deve se aproximar da mulher primeiro até vários tipos de violência (doméstica, estupro, …).

Não obstante, a masculinidade tóxica também faz do homem heterossexual uma vítima. A frustração de sofrer bullying por fugir ao padrão aceito no meio e a repressão dos sentimentos podem levar a um comportamento violento e desordens de conduta. Outra consequência pode ser o elevado consumo de álcool e o uso de drogas diversas, que são válvulas de escape. Nestes momentos, abraçar um amigo e dizer que o ama de repente se torna muito mais comum — e "normal". Mais ainda, pode existir uma relação com o número de suicídios de meninos adolescentes — que é significativamente mais alto do das meninas. Apesar das tentativas serem mais frequentes entre as adolescentes, os meninos tendem a usar meios mais letais e, portanto, têm um índice de suicídio 3 vezes maior, entre 15 e 19 anos, do que as meninas.

Quando se tem uma estrutura que ensina meninos a ver tudo que é feminino como fraco e sentimental; e que os seus colegas, ao divergirem, devem ser rotulados com os ofensivos termos que este texto já levantou, não deve ser surpresa que a violência contra mulheres e LGBT+ seja praticada, em especial, pelos homens e por aqueles desesperados por aceitação em geral.

O que Dizem os Dados?

Curiosamente, o Brasil — país onde atualmente mais ocorrem crimes de ódio contra a comunidade LGBT+ — foi a primeira jurisdição das Américas (e uma das primeiras do mundo) a descriminalizar a homossexualidade: ainda durante os tempos do Império, em 1830, ser homossexual deixou de ser crime por aqui.

Por outro lado, as estatísticas mostram que, apesar de preceder o restante do mundo em relação à descriminalização; aceitação, tolerância e inclusão de membros dessa comunidade na sociedade como um todo não ocorreram com o mesmo pioneirismo. Ao contrário, segundo o levantamento anual feito pela ONG Grupo Gay da Bahia (GGB), ocorreu um aumento de mortes violentas de pessoas LGBT+ no Brasil durante as últimas duas décadas, somando um total de 4.809 mortes por atos de ódio entre os anos de 2000 e 2019. Em especial, durante o período 2006–2017, temos a linha clara de aumento dos casos.

Fonte: GGB, 2019. Gráfico nosso.

Dentre as regiões do país, o Nordeste se destaca com o maior número de mortes LGBT+, seguido pelo Sudeste. Em especial, São Paulo, Bahia e Pernambuco que, nessa ordem, concentraram o maior número de casos no ano de 2019.

Fonte: GGB, 2019. Gráfico nosso.

No mesmo relatório, a ONG critica a ineficácia do Estado na atuação e formulação de políticas específicas que defendam a população LGBT+ de crimes de ódio. Apenas no ano de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela criminalização da homofobia como prática análoga ao racismo. Isto é, homofobia e transfobia não fazem parte da legislação penal brasileira e qualquer prática de discriminação dessa população hoje é punida e registrada através da Lei de Racismo, segundo a jurisprudência do STF. Além disso, a ONG ressalta, no mesmo relatório que “a resposta às mortes violentas de LGBT+ no Brasil não deve ser compreendida apenas em torno de ações de segurança pública e justiça. É necessário pensar o problema em torno das vulnerabilidades sociais e promoção da cidadania.”

Suicídio de LGBT+ no Brasil, em 2019, por orientação sexual. Fonte: GGB, 2019. Gráfico nosso.

Dentre as causas de mortes violentas, o GGB inclui o suicídio como uma no levantamento. Contudo, ressaltam que há uma lacuna de disponibilidade desses dados nos veículos de informação. Segundo Téo Cândido, representante do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra em comentário feito ao Diário do Nordeste, “Os dados disponibilizados pelo GGB dialogam com um contexto de pouca notificação. É uma organização civil que pauta a problemática, justamente pelas pouquíssimas informações. O suicídio entre LGBTs é extremamente subnotificado, o que perpetua a alarmante invisibilidade desse público”.

Representatividade: Sobre o Imaginário Deficiente

Os arquétipos apresentados em diversas formas de mídia (cinema, televisão, livros, propagandas, …) são fontes de um imaginário que toma parte na interpretação do mundo de cada um dos seus consumidores. “O que não é nomeado, não existe” [3]; este é o quadro gerado pelo poder midiático. Assim, aquilo que não figura no imaginário, causa confusão — o desconhecido desperta defesas.

A compreensão da população LGBT+ sobre si, em especial a daqueles que estão em um momento de descoberta pessoal, depende fundamentalmente do conhecimento sobre o assunto. Em uma família fundamentalista que apresenta a visão religiosa da homossexualidade como um pecado, pode ser que a única coisa que chegue a compor o imaginário de um jovem seja o ódio reservado ao assunto — ou nem isso. O que o espera quando ele percebe as próprias preferências? Pensa ele que o inferno e a expiação. Dito isso, é aí que a representatividade pública é importante, pois se a informação não pode vir de dentro de casa, deve vir de fora. Desse modo, o ataque de certos pais à conteúdos infantis que contém personagens LGBT+ é extremamente prejudicial à expansão tão necessária de imaginário instrumental. Sobre a situação abusiva dessas casas, recomendamos o filme “Boy Erased” (Joel Edgerton) e a série “Love, Victor” (Nick Robinson) — que apresentam situações diferentes, mas igualmente relevantes.

Stonewall

Apesar da sexualidade humana — mas não somente — ser objeto de reflexão há milênios, o movimento pelos direitos dos homossexuais mudou drasticamente em 1969, fora de um bar gay chamado Stonewall Inn.

Há mais de 50 anos atrás, no dia 28 de junho de 1969, o mundo assistia pela primeira vez o que viríamos a chamar de Gay Power, reflexo da Revolta de Stonewall, que deu início a um dos maiores movimentos do mundo: a parada gay. Celebrando o amor entre pessoas do mesmo sexo, marginalizado desde o início da cristandade, o movimento também fala de autenticidade, orgulho e respeito.

A vergonha condena a comunidade LGBT+ à insignificância e à frustração, na medida em que — apesar dos avanços nos direitos pela igualdade — constantemente temos uma massa ignorante entrando em guerra contra a sua própria humanidade, admitindo terapias de conversão — considerando a homossexualidade como resultante do abuso de drogas ou enfermidade mental –, elegendo representantes políticos abertamente homofóbicos, associando relacionamentos homossexuais à AIDS e repudiando a adoção por casais gays como indução à pedofilia. O movimento não fala de inclusão, sair do armário é um símbolo de coragem e resistência, tirando do agressor o poder da ofensa e oferecendo um senso de identidade, pertencimento e dignidade em um mundo que não valoriza totalmente suas vidas. É esse orgulho que deve ser celebrado.

Stonewall é uma história de enfrentamento que vai além do orgulho, é sobre o direito de existir, mesmo quando a tradição ensinou ser motivo de vergonha.

Orgulho LGBT+ é acreditar em um mundo de amor, humanidade e respeito mútuo, um mundo livre de medo, discriminação e violência.

O ponto a ser ressaltado para todos aqueles que sofrem com esse quadro é: o problema não é você, é o preconceito. E o fato de você estar lendo este texto é um sinal de esperança. Acredite em si mesmo e tenha orgulho.

Notas de Rodapé:

[1] PLATÃO. Symposium. Trad. (para inglês) Benjamin Jowett. p. 12. Tradução Nossa.

[2] O cristianismo é factualmente o principal problema histórico nesta questão, em especial no Ocidente. Visto isso, no Oriente, as culturas são muito menos homogêneas sobre o assunto.

[3] Fonte desconhecida e dispersa.

Referências

HUMAN DIGNITY TRUST. Map of Countries that Criminalise LBGT People. Acesso em 24 de Junho de 2020.

THE TREVOR PROJECT. Facts About Suicide. Acesso em 24 de Junho de 2020.

HYPENESS. Como a revolta de Stonewall, em 1969, empoderou o ativismo LGBT+ para sempre. Acesso em 26 de Junho de 2020.

TIME. The Gap Between Male and Female Youth Suicide Rates is Narrowing in the U.S.. Acesso em 27 de Junho de 2020.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.