Jair Bolsonaro e Donald Trump na Casa Branca, em 2019. Imagem disponível em Wikimedia Commons.

Entrevista | Christian Lynch — Agitações sociais na América

João Victor de Andrade
O Veterano
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10 min readAug 5, 2020

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Por que o Brasil é único na América Latina no sentido de ter um nacionalismo ressurgido de maneira autoritária?

O nacionalismo não é sinônimo de autoritarismo necessariamente, nem de direita, especificamente. Por exemplo, o Lula era muito mais nacionalista do que o Bolsonaro; tem que qualificar o que é nacionalismo também. Para mim, o Bolsonaro não é nacionalista, é patrioteiro, é outra coisa. Você tem o nacionalismo eurocêntrico — uma coisa meio xenofóbica, com discurso de não querer imigrante e de dizer que seu país é melhor que o dos outros — , mas o nacionalismo da periferia, como no caso do Brasil, nunca foi isso.

No Brasil, o nacionalismo sempre foi uma espécie de corretivo ao excesso de xenofilia ou de alienação cultural imposto pela origem colonial do país. A colonização do país gera um complexo de inferioridade, uma admiração desmedida pela civilização que supostamente não está aqui, coloca a gente em um lugar periférico e atrasado do globo. Daí vem o complexo de vira-lata. O nacionalismo que eu conheço, que foi o que perdurou na maior parte do tempo no Brasil, mas não todo o tempo, era para corrigir isso. Era para dizer “O Brasil não é fracasso, não é porcaria.”. O Brasil fez grandes coisas, pode ter orgulho de grande porção de coisas (e não ter orgulho de outras também), mas é uma espécie de corretor de visão, para você se colocar também num lugar digno do mundo e não ficar lamentando. “Ah, por que Brasil é tão ruim? Por que foi colonizado por Portugal? Por que católico e não protestante?” No fundo, isso é “Por que a gente não é os Estados Unidos?”. Então, no fundo, esse é um nacionalismo que é defensivo, na tentativa de defender a existência da nacionalidade.

E existe uma inspiração, e isso faz parte da resposta: nós temos uma coisa que os outros países não tiveram, que é possibilidade de levar adiante um projeto imperial. O ideário imperial brasileiro existe desde os tempos de Colônia, primeiro como parte do Império português, depois quando Dom João VI chega. Prevalece a ideia de “Império Brasileiro”, o país quer ser o mais poderoso do hemisfério sul, o celeiro que abastece o mundo. Mas nunca é uma mentalidade guerreira, nunca é xenofóbico, e nem pode ser, porque aqui não tinha ninguém, a população era pequena. Então, manter a integridade territorial do Brasil permitiu manter viva a ideia imperial. Não é à toa que o Brasil se chama Império depois e o Brasil continua sendo império até hoje. De alguma maneira é o país hegemônico da América do Sul e da América Latina, oitava economia do mundo, então isso traz uma diferença.

Agora, eu, pessoalmente, não considero o presidente Bolsonaro nacionalista — ele é patrioteiro. Isso porque o nacionalismo supõe, na verdade, que você vai dar ao Brasil um lugar de dignidade no mundo, que eventualmente pode colocá-lo num lugar respeitável no cenário internacional, se não ombro a ombro, “cotovelo a cotovelo” com outras potências como EUA, Grã-Bretanha, Rússia ou Alemanha; isto é, fazer o Brasil virar um país civilizado e forte. O que o Bolsonaro faz, na verdade, não é nada disso: o Brasil virou caudatário dos Estados Unidos. O Presidente e o Ministro das Relações Exteriores vão comemorar a independência dos EUA na embaixada, em Brasília. Você faz manifestações pró-governo agarrado à bandeira americana. Isso para mim não é nacionalismo nenhum.

Isso na verdade é uma expressão, com a qual eu brinco em um texto que eu escrevi recentemente, que eu chamo de “nacionalismo colonizado”, que é uma contradição em termos. Na verdade, o ideário bolsonarista é o ideário de voltar para o século XVII. É um tempo em que o bom homem é o homem branco, patriarca, religioso, um bandeirante. É a livre iniciativa. Ele carrega a família dele toda hierarquizada, reza antes de comer e entra na floresta com seu séquito, com suas milícias de mestiços para aprisionar índio, escravizar negro e derrubar floresta. É um imaginário onde o Estado não existe. Não existe Estado. Por isso que o Paulo Guedes se dá muito bem com ele, porque o darwinismo social do Paulo Guedes é o neto desse sertanismo do século XVII em que não há estado. Não tem multa, não tem lei, não tem rei. Você faz o que você quiser. Não tem solidariedade social; é o reino do mais forte. Aí, nesse imaginário bolsonarista, a elite do país é formada por esses grandes empresários inescrupulosos, que não têm nenhum tipo de empatia ou solidariedade social.

Esse é o imaginário central do bolsonarismo. Não é o do Exército e nem dos militares, estou falando desse núcleo mais duro. Assim como no século XVII, ele é dependente de uma metrópole. Naquela época, qual era? Era Roma ou era Lisboa. Hoje em dia são os EUA. Então, na verdade, é um nacionalismo que não tem Estado, não tem projeto de inserção autônomo no mundo. É uma inserção subalterna a uma metrópole. Antes era Portugal, agora são os EUA do Trump. Se o Trump for derrotado, o governo Bolsonaro vai ter que virar governo Figueiredo; os militares, que estão tendo mais participação, vão ter que normalizar o governo. Então, não sei se o governo vai terminar como ele começou, até porque ele começou sem projeto e na mão de um bando de amadores radicais.

Por que os outros direitistas latino-americanos (Macri, Piñera) não são nada parecidos com Bolsonaro?

Eles não têm nada a ver com Bolsonaro porque eles não são de direita radical, eles são de direita liberal. Eles estão dentro do espectro político do Estado de Direito Democrático. Como se os presidentes lá fossem o Rodrigo Maia ou o João Doria. É esse tipo de direita que está lá, a direita liberal. Esse, nós sempre tivemos no continente americano. É a direita da República Velha: Campos Salles, Afonso Pena, Washington Luís, é o pessoal que governa São Paulo, o Partido Republicano Paulista, o tucanato paulista; é esse pessoal que está lá. Esse pessoal sempre existiu. A República Velha Argentina também, aqueles presidentes lá de trás, da dita época áurea da Argentina. Isso é uma coisa comum, um liberalismo democrático com tendência oligárquica e mercadista. Isso é normal, isso faz parte do jogo democrático, está no espectro democrático.

No Brasil, o Bolsonaro está aqui porque as eleições de 2018 foram totalmente atípicas. Houve uma desmoralização do sistema político acompanhada do cansaço de uma situação de esquerda que criou um sentimento antissistema. Pelos escândalos de corrupção e intrigas que a Lava-Jato trouxe, você criou a possibilidade de um candidato antissistema, e o próprio sistema brecou candidaturas que teriam ganhado do Bolsonaro, como, por exemplo, a candidatura do Joaquim Barbosa. Quando o Bolsonaro ganha e traz consigo o Moro, ele faz uma publicidade falsificada. É como se 2013 terminasse em Bolsonaro. E 2013 não tinha que ter terminado em Bolsonaro, não tinha relação de causalidade. A ascensão do Bolsonaro é muito mais contingencial, muito mais dada por casos fortuitos do que por alguma coisa que estivesse no destino do Brasil. Então, o resto da América Latina é que está no normal, nós é que estamos no anormal e não sei se por ser anormal isso vai durar.

Recentemente, a Constituição do Estado da Califórnia recebeu uma proposta de alteração para suprimir o trecho em que o Estado se compromete a não discriminar indivíduos, sob discurso de favorecer ações afirmativas de minorias. Isso, juntamente aos episódios de violência nos protestos antirracistas, pode ser interpretado como uma visão mais revolucionária a respeito de justiça social, sendo incompatível com a democracia liberal?

Essa pergunta é complicada, porque a gente não tem como pensar a nova direita, a direita radical, sem pensar que ela é uma reação à esquerda radical. A new right é uma reação à new left. A new left é a esquerda que aparece no final dos anos 60 e 70, mais identitária, menos focada em questões gerais e mais focada em minorias. De alguma maneira, essa nova direita é a mesma coisa com sinal trocado. Como todo movimento conservador, ela identifica um inimigo, rouba do inimigo aquilo que é “a roupagem do inimigo” e inverte contra ele próprio. Faz parte do conservadorismo essa autoconstituição especular, como se fosse um espelho invertido. Eles dizem que a origem da ordem é sobre-humana, que você não pode mudar, que ela é calcada no mercado, em Deus, na biologia, na natureza, em alguma coisa assim.

O liberalismo entra um pouco em xeque porque o liberalismo prega que a sociedade é um lugar que deve ter espaço para todos, desde que não queiram acabar com o liberalismo. No liberalismo político, o Estado de Direito é o Estado em que há lugar para todos exprimirem suas opiniões e preferências, e desde a Segunda Guerra Mundial, desde que você não queira comprometer o próprio Estado de Direito com isso. Então, não se pode ter manifestação nazista, discriminação racial, no sentido de querer restabelecer escravidão: os extremos não podem ter lugar na democracia.

O problema é que a radicalização de um lado cria também radicalização do outro. E isso piora em um momento como o atual, em que você tem no governo um sujeito como Donald Trump. Ele vive de explorar o ódio, assim como Bolsonaro vive de explorar o ódio por aqui também. Mas a nossa sociedade é muito diferente da americana, então isso não chega a esse ponto. Em algum momento isso vai ter que ser discutido e pensado. Não sei se pensar e discutir vai resolver, mas essa questão da esquerda extrema é que eles seguem sempre um padrão leninista de ação política, que é uma coisa de você constituir uma vanguarda e ter que pressionar; é uma coisa maximalista, em que você tem que pedir 200 para conseguir 20. Quando você tem uma polícia como americana, que fez o que fez, você dá razão para isso acontecer, você dá razão para esse tipo de reação. Então, fica uma situação difícil, porque é preciso que os dois lados cedam, porque você não pode ter uma a polícia que mata negros como quem mata uma barata, certo?

Então, você tem essas resiliências nos EUA que foram muito piores do que aqui do ponto de vista cultural, porque lá nem mesmo o elogio da mestiçagem você tem. Lá, é um apartheid, é uma sociedade segregada. Lá, se acreditava que era possível ter uma boa civilização escravista. Você tem teóricos americanos do escravismo defendendo Roma, dizendo que aquilo era um modelo, coisa que nunca aconteceu no Brasil. A tensão ali é muito pesada. E a elite branca tradicional americana está muito emparedada com essa ideia de que os brancos vão se tornar minoria. Então, você tem um “caldo”, uma exploração do ressentimento dos perdedores da globalização, porque as fábricas saíram de lá, foram para a Ásia, criando condições para esse tipo de radicalização.

Agora, os EUA têm uma vantagem: você pode eleger um Trump, mas, como o sistema é bipartidário, o outro partido vai ter que criar um outro candidato, e nenhum deles tem mais de 60% ou menos de 40%, então você pode criar um outro candidato de maneira fácil. Não é como no Brasil, que tem essa confusão geral. Eu não sei se isso vai ter boa resolução. Para e pensa comigo: a nova esquerda aparece no fim da década de 60, se aprofunda na de 70, o consenso liberal (progressista moderado) se rompe na década de 80 e começam os governos mais francamente conservadores, como o do Reagan, dali para a frente. Depois, você tem a formação do Tea Party; agora, você tem trumpismo. Essas guerras culturais viraram uma coisa normal nos EUA, aparentemente, mas o sistema tem conseguido se segurar, com desgaste, mas tem conseguido segurar. Eu não sei como vai ser o futuro.

Uma coisa é certa: o excesso de desigualdade social gera isso. Porque faz as pessoas se revoltarem e fazerem esse tipo de coisa. Então, a única solução é você fazer políticas que reduzam desigualdade e a sensação de desprezo que as pessoas têm pelas outras. Só assim você vai desarmando a bomba-relógio do ódio e do ressentimento: dando às pessoas a sensação de que elas não estão sendo prejudicadas. A gente está numa situação complicada, porque os brancos pobres, com a crise americana, começaram a se sentir tão prejudicados quanto os negros. Aí, vem a história de “Por que você privilegia a ele e não a mim?”, criando o “caldo” do trumpismo. A redução dessas tensões só consegue ser feita se você consegue reduzir desigualdade, produzir riqueza e dividir riqueza minimamente. Por isso que eu digo que o Hayek é ilógico: o discurso dele é impossível de acontecer, você vai ter uma guerra civil ou uma ditadura, porque isso que ele fala só funcionou em ditadura, na prática. No papel, tudo funciona lindamente, na prática, não funciona nada.

Existem discursos em ambientes universitários e na mídia — relevantes ao ponto de chegar a nível de proposta de lei — em que a isonomia entre os cidadãos não mais é um dogma.

Aí você tem a direita que segue usando mão dos instrumentos que a esquerda radical desenvolveu, e assim ficam os radicais de um lado e do outro, é como um espelho. E como você desarma o ódio? Aproximando as pessoas, aproximando o que está afastado. E o que é que afasta? É a desigualdade. Então, você tem que produzir um boom de crescimento, de riqueza, de prosperidade, de crescimento econômico, de divisão de renda e de melhores oportunidades tanto para os brancos pobres quanto para as minorias pobres, para diminuir essa tensão.

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João Victor de Andrade
O Veterano

Former Brazilian Army cadet. Economics student. Conservative.