Entrevista | João Carlos Cochlar — Música e Direito

Gustavo de Santana
O Veterano
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10 min readFeb 17, 2021
Fonte: Unsplash. Link: https://unsplash.com/photos/rPOmLGwai2w

João Carlos Cochlar, hoje advogado pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, foi um aluno destaque da FGV Direito Rio ao longo dos cinco anos em que esteve na graduação. Com fartas pesquisas em seu currículo e intercâmbios em renomadas instituições de ensino, ele é um exemplo a ser seguido pelos graduandos de Direito e das outras áreas do conhecimento, além de evidenciar, com as suas vivências, que um sonho não precisa ser abandonado para que o outro possa ser perseguido.

Vencedor do XI Prêmio Alfredo Lamy Filho de Inovação com o seu Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Clareza e Legitimidade: como elementos de teoria musical podem iluminar a interpretação jurídica?”, João Carlos, que escolheu como foco de suas pesquisas um tema não muito trabalhado nas universidades brasileiras, nos contará um pouco mais sobre a sua trajetória e sobre a relação que existe entre a música e o Direito no campo da interpretação.

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Qual é a sua história com a música e com o Direito? Como você se interessou por ambos?

Impossível responder isso sem voltar ao tempo de escola. Lá no meu ensino médio, num colégio católico tradicional do Rio. Meu terceiro ano foi marcado por aquelas dúvidas infernais sobre decidir o que fazer “para o resto da vida” com 17 anos de idade. Sem falar no massacre que era estudar para vestibular.

E eu era um paradoxo. Eu fiz o ensino médio de 2012 a 2014. Minhas matérias preferidas eram química, matemática e física. Mas minha atenção tinha ficado absorta num assunto que dominou a imprensa nessa época: o Mensalão no Supremo. O impacto e a força simbólica daquele julgamento e todas aquelas figuras me chamavam muito a atenção.

Com o Mensalão, entendi o direito como uma ferramenta de transformação da realidade. E me encantou, como nas mais diversas formas e carreiras, é possível contribuir com a comunidade em que vivemos. O impacto que pode gerar. Positivo, ou mesmo negativo.

E, para completar, em 2014 eu tive a oportunidade de tocar numa orquestra estudantil em Brasília e estudar com músicos brilhantes. Uma adrenalina e tanto. A música sempre foi (e é) algo muito forte no meu cotidiano. Desde criança, ouvia de tudo. E a música foi se tornando mais do que uma descontração. Passou a influenciar minha forma de pensar. Sobretudo conforme fui estudando ao longo tempo.

A conclusão disso tudo é que eu estava massacrado pela dúvida entre uma faculdade de engenharia química, direito ou música. O que fazer nessas condições? Um tremendo paradoxo.

Mas as decisões foram acontecendo ao longo do tempo. Minhas notas começaram a baixar nas minhas matérias preferidas. Achei que era um sinal e cortei engenharia química.

Fiquei entre direito e música. Cheguei a colocar isso no meu anuário de ensino médio, respondendo o que eu queria fazer quando me formei na escola em 2014.

Apesar de ter tido o privilégio de passar em uma ótima faculdade de música, decidi fazer direito na FGV. E não me arrependo nenhuma vez da decisão que tomei. Foram 5 anos excelentes. Aprendi muito e aumentei ainda mais meu interesse no direito. Mas segui fazendo inúmeros cursos particulares de música e fui estudando na medida do possível.

Talvez não tenha resolvido essa minha dúvida até hoje.

Nem pretendo…

Como você decidiu que a relação entre teoria musical e interpretação jurídica seria o ponto central do seu trabalho de conclusão de curso?

Essa é uma história engraçada. E para essa decisão, o papel do meu orientador aqui foi determinante. Sou imensamente grato ao professor Joaquim Falcão por essa trajetória gratificante e turbulenta chamada TCC.

E foi engraçado porque, nas primeiras reuniões, eu chegava para o professor Joaquim com uns cinco temas, ele vinha com outros dez e nós saíamos sem nenhum. A certeza era que não havia certezas. Uma das minhas maiores angústias nesse um ano e meio de elaboração e escrita de TCC foi simplesmente escolher o tema. Como eu sabia que ia tomar tempo, queria que fosse algo interessante e tivesse alguma pretensão de ser diferente. Mas até achar esse ponto central da sua pergunta, foi um caminho áspero.

Quando eu tinha desistido dessas ambições todas e tinha escolhido um tema menos arrojado, o professor Joaquim me interrompeu com uma pergunta fatal. “Do que você gosta?”, ele perguntou. E não estava interessado em saber se era constitucional, administrativo ou tributário. Era uma pergunta para além de direito.

E não foi difícil responder. O que eu mais gostava naquele ido final de 2018 era quando eu dava sorte de chegar antes de 22h em casa, depois de um dia de estudos e estágio intenso, e podia tocar qualquer coisa no piano. Para não correr tanto risco com os vizinhos…

Ouvindo isso, a réplica do professor Joaquim foi determinante: “Está aí seu tema”.

Essa quase epifania naquela reunião foi tão forte que eu tive um imenso apego a esse tema: “direito e música”. Seja lá o que isso significasse. Decidi me jogar num caminho escuro cujo percurso tinha o objetivo de dar a esse tema algum sentido. Buscar dentro desse grande tema algum recorte compatível com um TCC, sem saber se era exatamente possível.

Mas de qual seria o sentido desse tema, eu não tinha ideia. Sequer sabia se era um tema viável.

Eu não queria que fosse algo entre direito e letras de canções ou entre direito e cultura. Meu objetivo era encontrar um caminho para aproximar direito e música como duas entidades em si. Duas ciências. Duas realizações que poderiam ter sua forma de operar semelhante.

Eu tenho a impressão de que os momentos de maior ansiedade na elaboração de um TCC variam dependendo da pessoa. Pode ser o tema, a pesquisa, o cumprimento do cronograma, a redação ou a defesa oral. No meu caso, foi definir como eu expressaria esse tema. Qual ordem seguir? Sobre o que falar? E talvez mais importante, sobre o que não falar? Que dúvidas

expor?

Aí foi o começo do percurso. Foi bem intenso.

Em quais pontos a hermenêutica jurídica e a música se encontram? Como você enxerga a relação entre as duas?

Tudo começou a ficar claro quando eu entendi que direito e música poderiam ser observados como teorias de interpretação.

Nem direito nem música esgotam seu sentido no ato de interpretar. Mas essa é uma forma de realização da qual ambas comungam. Decidir um conflito e executar uma peça também é interpretar um texto. Texto esse cuja interpretação deve seguir um conjunto de cânones de interpretação porque o intérprete possui responsabilidades tanto com o autor do texto como com a audiência para quem ele expressa essa interpretação.

Música e direito se inserem nessa plataforma teórica. Faz sentido para um músico, por exemplo, ainda que não com esses nomes, falar em interpretação literal, sistemática, teleológica e histórica. A ideia é semelhante.

Interpretação não é um assunto de eterno debate só no direito. Há também reflexões profundas entre intérpretes da música. Um músico de orientação clássica provavelmente estará muito mais preocupado com a literalidade do texto do que um músico de jazz estaria (foram os exemplos que eu usei no meu TCC). Um organista tocando Bach numa igreja antiga certamente pode querer buscar soar semelhante ao tempo do compositor do que uma roda de samba tocando na Central do Brasil um choro de Chiquinha Gonzaga, por exemplo. A depender do contexto, espera-se do intérprete comportamentos específicos.

O debate é muito semelhante no direito. A deferência a determinados métodos de interpretação em detrimento de outros é algo sectário na doutrina. Os que reverenciam mais o literal em detrimento de outras variáveis são os formalistas. Os que consideram que o texto normativo é só mais um elemento de convencimento, mas não o único, são os não-formalistas. Chegam a resultados diferentes quando enfrentam situações nas quais o direito não é claro.

Na música também. Composições idênticas se expressam de formas distintas por diferentes intérpretes. Alguns, inclusive, afastam suas próprias preferências estéticas em favor daquilo que o compositor prescreveu. Outros não.

Veja que são crises semelhantes. E longe de mim ter a pretensão de resolvê-las. O objetivo era, se é que alcancei, jogar luz sobre um problema de longa data que aflige a teoria do direito e demonstrar não só que ele se expressa de forma semelhante na música. O resultado esperado é que isso ajude os juristas a afinarem sua compreensão de como interpretar o direito positivo.

Mas até chegar aqui, fiz dezenas de índices de TCC tentando colocar ordem nessas ideias todas. Fazendo escolhas difíceis sobre o que e quanto procurar. Foram dias e dias enfurnado em bibliotecas fazendo uma série de leituras. E aqui faço questão de registrar meu agradecimento à FGV por proporcionar um generoso programa de intercâmbio. Se não tivesse tido acesso a esse período de estudos e ao acervo de bibliotecas no exterior, a profundidade do trabalho teria sido muito comprometida.

Organizar as ideias foi um enorme desafio. A progressão dos assuntos a explorar foi muito difícil. E teve consequências. O tempo e falta de maturação de algumas ideias é notável no TCC, e espero aperfeiçoá-lo. Foi um grande salto no escuro. Mas estava muito motivado.

Talvez esse percurso possa ser resumido por Dostoievski em A Senhoria, falando do personagem Ordínov: “Mas em seus estudos solitários nunca houve ordem e um sistema determinado, nem mesmo agora havia; o que havia agora era apenas o primeiro entusiasmo, o primeiro ardor, a primeira febre do artista.”

Talvez tenha sido por aí…

Como e em quais tipos de casos as posturas hermenêuticas adotadas no campo da teoria musical podem ser úteis para iluminar a interpretação jurídica?

Uma forma de reformular essa pergunta é: Como pensar como músico resolve um problema jurídico?

A resposta me parece ser que a música ajuda a compreender melhor como direito opera, dentro do escopo que propus. E o que me moveu a me aprofundar nisso foi a crença de que quanto mais se aprofunda em teoria do direito, melhor se torna a manipulação das ferramentas à disposição do jurista para resolver problemas.

Torna-se uma questão de contexto. Todo intérprete tem responsabilidades com os diferentes agentes do discurso. Seja o discurso jurídico ou musical. O intérprete tem responsabilidades com o autor do texto e o receptor da sua interpretação. Legislador lato sensu e jurisdicionado. Compositor e audiência.

Stravinski, o notável compositor de O Despertar da Primavera, diz que o dever de tocar conforme as prescrições do compositor é um dever antes ético do que estético. Não vale tudo para o intérprete. Assim como não vale tudo para o juiz.

O trabalho, no fundo, também procura oferecer uma reflexão sobre o papel do juiz. O que o jurisdicionado espera da sua atuação? Como o legislador espera que ele atue? Qual é o dever do juiz?

A música ajuda a escancarar o contraponto entre o intérprete previsível e deferente em oposição à espontaneidade e à individualidade.

O primeiro entende que o dever de fidelidade ao texto não significa transpor a sua concepção daquilo que é mais esteticamente agradável a uma plateia. Mas transmitir a vontade do compositor da forma mais fidedigna possível a uma plateia, que pode gostar ou não. Aí já é uma externalidade. Positiva ou negativa. É um perfil estereotipicamente vinculado a um intérprete de música clássica.

Já o segundo entende que é dever do intérprete agir mais proativamente para atingir certos resultados estéticos. Ou para agradar uma determinada plateia. Uma atuação voltada na consequência. É um perfil estereotipicamente vinculado ao músico popular.

Um dos exemplos que eu usei que revelava esse contraponto foi o debate sobre prisão em segunda instância em seus diversos exames pelo Supremo. De um lado, Eros Grau falou que há “contraste bem vincado entre o texto expresso da Constituição do Brasil e regras infraconstitucionais que a justificariam.” De outro, o ministro Joaquim Barbosa fez uma fundamentação sobre como a literalidade desse texto traria sensação de impunidade e frustraria a audiência maior: a população brasileira.

Partindo do pressuposto que as premissas de ambos estão certas, Eros Grau seria um erudito e Joaquim Barbosa, um jazzista. Novas luzes são jogadas.

Quem está certo? Bem, não sou juiz…

P.S.: Um adendo a essa pergunta. Logo quando saí da graduação e defendi meu TCC, a FGV Direito Rio ofereceu o curso “Música e Direito”, dado pela vice-presidente do Conselho Curador da Orquestra Sinfônica Brasileira, Ana Flávia Cabral Souza Leite. Pude acompanhar todo o curso e essa foi uma experiência extraordinária. A expertise de Ana Flávia revelou que interpretação é apenas uma de muitas aproximações possíveis e que a música — seja observando interpretação, o papel de músicos numa orquestra ou mesmo aspectos doutrinários da música em si — colaboram para aprimorar o comportamento judicial e a compreensão do direito. Espero que ofereçam esse curso novamente e encorajo meus colegas graduandos a fazê-lo.

Você produziu o Trabalho de Conclusão de Curso vencedor do XI Prêmio Alfredo Lamy Filho de Inovação. Como foi a experiência de obter este reconhecimento pelo seu trabalho?

A maior satisfação não foi exatamente o prêmio, mas saber de onde veio. De quem veio.

Uma das maiores alegrias é receber o reconhecimento daqueles que você admira. Que participaram da sua formação e tinham um interesse genuíno no seu sucesso. E cujo exemplo profissional e pessoal inspira o crescimento, nesse caminho tormentoso que é uma graduação em direito na FGV.

Eu sou ex-aluno orgulhoso da FGV Direito Rio. Eu tenho uma genuína admiração não só por cada um dos professores que passaram pelo meu caminho — nas salas de aula, nos corredores, nas conversas perto do bebedouro ou nas salas do 13º andar. Mas também por todos que tornam a escola possível: a coordenação, os funcionários, pessoas realmente devotadas à Direito Rio.

E também digo que um estímulo importantíssimo para eu aprofundar mais e mais, dentro das minhas capacidades, o meu TCC foi a admiração que eu tenho pelos meus colegas. A minha turma era realmente muito boa. Eu estava cercado de talentos que até hoje me inspiram seja nos grandes escritórios, no serviço público ou seguindo um projeto pessoal ambicioso. Os TCCs que saíram da minha turma são excelentes. E não esperava nada diferente também.

O sentimento principal foi de gratidão. Fui muito feliz nos cinco anos que passei e me sinto realizado de terminar com esse prêmio. Mas mais ainda de saber que esse reconhecimento vem de pessoas que tenho em alta conta. É também um dever e uma responsabilidade para manter a busca por bons frutos nos projetos futuros.

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