Epidemias ideológicas: o teatro do absurdo invade a vida real

Luisa Curcio
O Veterano
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4 min readApr 29, 2020

Uma análise à luz da peça “O Rinoceronte” de Eugène Ionesco

Foto por: Jean-Louis Fernandez. Registro do primeiro ato da peça "Rhinocéros" no Théâtre de la ville, Paris. Direção de Emmanuel Demarcy-Mota, 2020.

Em sua peça do ano de 1959, o dramaturgo de origem romena Eugène Ionesco descreve uma pacata cidade tomada de maneira repentina por uma epidemia de “rinocerite”. Aos poucos, cada personagem passa por uma metamorfose que os transforma em rinocerontes diante do público, em clara analogia à maneira como o autoritarismo penetra e se capilariza na sociedade, convertendo até os mais resistentes em seguidores apaixonados. Rhinocéros, no contexto em que é escrita, é uma metáfora para o nazismo de Hitler, mas se torna atemporal pelo debate que suscita: até que ponto a capacidade do ser humano de se adaptar e, no caso, se conformar; pode ser destrutiva? Como afirmaria Hannah Arendt, a ausência de questionamento leva ao conformismo em massa.

O ato inicial se passa em um café: Jean conversa com seu amigo Béranger. O primeiro representa o sujeito letrado e conhecedor de cultura; enquanto o segundo é o atrasado, desarrumado, alheio ao conhecimento. Repentinamente, o andamento natural do dia no café é interrompido por sons aparentemente irreconhecíveis, até que se reconheça a presença de um rinoceronte. Ao findar-se a passagem do assustador animal em cena, Jean diz ao amigo que tal acontecimento não deveria ser permitido, que deveriam protestar. Contudo, ele parece o único preocupado com o perigo de se deixar a besta à solta; isto é, até aparecer o segundo rinoceronte. A discussão sobre a natureza do segundo animal — se seria o mesmo de antes ou não, se seria Africano ou Asiático — origina uma série de divagações por parte daqueles em cena que, como consequência, tornam a esquecer a tarefa mais imediata: impedir o rinoceronte.

Ainda perdidos em seus debates, os personagens chegam ao segundo ato e só compreendem a real natureza do “ser rinoceronte” quando Madame Boeuf decide passar pela transformação com o único objetivo de juntar-se ao marido, que já estava em forma quadrúpede. Nesse contexto, o leitor compreende que tornar-se rinoceronte é antes uma escolha (não necessariamente racional, como no caso da senhora Boeuf), do que fruto de uma doença contagiosa. Por outro lado, ao se sentirem sozinhos, os personagens passam a tentar explicar a metamorfose dos demais, hábito que se alastra como se de maneira efetivamente transmissível.

“Eu lhe digo que não é tão ruim assim! Afinal, os rinocerontes são criaturas como nós, que têm o direito à vida como nós!”, diz um dos personagens ao passar pela transformação, ao que o seu interlocutor responde:

“Desde que não destruam a nossa!”

Paulatinamente, a ideologia dos rinocerontes, antes insignificante pela falta de adesão, passa a tomar a cidade e seus entornos. Os habitantes, antes completamente assombrados pela bizarra ideia de abdicar da forma humana, passam a decidir pela vida animal em um claro comportamento de manada[1]. Trata-se, aqui, do contágio de seus ideais; esses que funcionam como células infectadas por vírus diante de uma epidemia sem precedentes, sem cura conhecida.

Foto disponível em: kidbentinho. Hitler saudado nas ruas de Munique, Alemanha, 1933.

Para escrever a peça, Ionesco se inspirou em episódio de cortejo do então führer alemão, Adolf Hitler; que teria presenciado. Segundo o autor, tratava-se de um ambiente cercado por tamanha alienação a ponto de inspirar qualquer pessoa presente na comitiva a seguir e glorificar seu líder. É nesse sentido que o autor atenta ao perigo de legitimar qualquer figura política sem que se faça uma análise cuidadosa do seu discurso. Uma vez validada e reconhecida, essa personalidade pode vir a ser, à maneira de Hitler; vetor através do qual ideias antidemocráticas se disseminam na sociedade. Na peça, Ionesco retrata o avanço da epidemia de rinocerite à medida que a mesma não é vista como ameaça e, portanto, nada ou pouco é feito para reprimi-la.

No ato final, resta ao leitor a companhia do último habitante da cidade em sua forma humana, esse que passa a se questionar sobre a validade de seus pensamentos ou até mesmo da língua que fala. Se não há mais com quem os compartilhe, é como se sequer existisse.

[1] Efeito de reação coletiva uníssona em direção a um objetivo não necessariamente definido, sem direção planejada.

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Luisa Curcio
O Veterano

Estudante de economia na FGV EPGE e cofundadora do jornal estudantil da FGV Rio O Veterano.