Existe Liberdade, mesmo que Incompleta?

Reflexões acerca de situações onde a liberdade veio à tona causando polêmicas

Gabriel Martins Mendes
O Veterano
12 min readNov 10, 2021

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Quando o assunto é Liberdade, dificilmente o nosso primeiro pensamento será igual ao dos outros, especialmente sem a existência de um contexto prévio. Enquanto uns pensam a liberdade enquanto o poder de ser e de se relacionar com quem quiser, outros já podem pensar na liberdade em um sentido econômico, financeiro, cultural, religioso ou até mesmo em algo mais concreto, como a Estátua da Liberdade. Isso se deve ao fato de a palavra Liberdade possuir uma ampla variedade de conceitos e interpretações, de modo que, mesmo em um único tópico, as experiências e as prioridades das pessoas são tão destoantes entre si que se torna praticamente impossível haver um único foco em uma conversa sobre o tema.

O presente texto não se propõe a responder, mas a apresentar situações que instiguem e promovam reflexões acerca da seguinte pergunta: existe liberdade, mesmo que incompleta? Além disso, assim como o termo “Liberdade” pode assumir muitos sentidos diferentes, muitas também são suas definições. A fim de situar melhor este texto, dado a amplitude do tema, é importante destacar que a palavra Liberdade será abordada em um sentido mais amplo, que remete a sua origem no latim: Libertas. Libertas, por sua vez, remete à condição do indivíduo que possui o direito de fazer escolhas autonomamente, de acordo com a própria vontade. De um modo geral, o significado de Liberdade está associado ao poder de escolha dos indivíduos.

A Libertação dos Escravos

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Ao pensar a liberdade no período colonial, esse tema logo contrasta com a escravidão presente e enraizada na sociedade. As barbaridades cometidas contra os negros escravizados, apesar de chocarem, não são novidade e, por isso, serei breve. Após serem trocados por mercadorias na África, iniciavam uma longa jornada, em uma situação extremamente precária, nos navios negreiros. Após meses atravessando o Atlântico, os sobreviventes eram levados a grandes mercados nas principais cidades brasileiras (ou coloniais portuguesas, dependendo da época), onde eram expostos como mercadoria e leiloados como animais. Depois de serem comprados pelos seus novos donos, estes últimos podiam explorar os escravizados como bem entenderem. Além disso, é comum pensar na Lei Áurea (1988) como um feliz desfecho da situação, equivalente ao “e viveram felizes para sempre” dos contos de fada. Todavia, a situação que se seguiu não foi muito diferente do pré-Abolição, tendo em vista que não houveram políticas visando a reinseri-los na sociedade. Dessa forma, os recém-libertos foram obrigados a se submeter a uma condição de trabalho semelhante à escravidão ou buscar uma vida melhor nas (margens das) cidades.

“A desagregação do regime escravocrata e senhorial ocorreu, no Brasil, sem que se oferecesse aos antigos agentes do trabalho escravo assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho.” (Florestan Fernandes. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. Volume 1, São Paulo: Editora Globo, 2008, p. 29)

Nesse sentido, e levando em consideração a Liberdade enquanto o direito de fazer escolhas de acordo com a própria vontade, faz sentido falar em ‘libertação dos escravos’, tal qual a historiografia tradicional ensina? Podemos dizer que os recém-libertos eram livres?

Política de Ação Afirmativa

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Por outro lado, ao pensar a Liberdade nos dias atuais, já entra em voga os impactos do preconceito, da falta de oportunidades e da marginalização da população negra ao longo de tantos séculos. No início dos anos 1980, com o projeto de lei n° 1.332/1983, houve o início das discussões acerca da implementação de medidas que visam a beneficiar temporariamente a população afrodescendente, de modo a reparar os impactos supracitados. Dentre as medidas propostas, havia a criação de quotas raciais nos cargos públicos, de incentivos à diversidade no setor privado e a concessão de bolsas de estudos para negros. Todavia, o projeto de lei não foi aprovado e as primeiras ações afirmativas só foram de fato adotadas no início dos anos 2000. Em 2001, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), estabeleceu que pelo menos 20% dos seus funcionários (e de empresas por eles terceirizadas) devem ser negros. Já o Ministério da Justiça, ainda em 2001, passou a exigir de seus cargos de assessoramento, uma composição mínima de 20% de negros, 20% de mulheres e 5% de pessoas com deficiência.

Desde então, ocorreram diversos avanços na adoção de políticas de ação afirmativa, tanto no setor público quanto no privado. De um lado, outros ministérios, instituições públicas de ensino e diferentes esferas do poder público seguiram o exemplo do Ministério da Justiça, adotando suas próprias políticas de cotas. Além disso, em 2002 foi criado o Programa Nacional de Ações Afirmativas (PNAA), com o intuito de propagar as políticas de inclusão social e chegando até mesmo a criar um sistema e um conjunto de critérios de pontuação em licitações, incentivando os fornecedores a adotar políticas de inclusão social.

Magazine Luiza e o Trainee Exclusivo para Negros

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Avançando mais na cronologia, em 2021 a Magazine Luiza trouxe o debate à tona ao criar um programa de trainee exclusivo para negros, ocasionando um debate quanto à legalidade desse tipo de programa. De um lado, defensores e apoiadores do programa elogiam-no pelo seu potencial de inclusão e aumento da diversidade nas empresas. Já do outro lado, críticos e opositores do programa, como a Juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer, afirmam que é inadmissível a discriminação na contratação em razão da cor da pele. Já Sérgio Nascimento, presidente da Fundação Cultural Palmares, acusou a empresa de racismo. Ainda que em diferentes graus de ‘explicitude’, essas afirmações trazem consigo uma carga muito séria de um delírio coletivo chamado ‘racismo reverso’, ou seja, discriminação de negros contra brancos. Segundo a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, em seu livro Quem tem medo do feminismo negro?:

“Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui.

Para haver racismo reverso, seria necessário que houvesse existido navios ‘branqueiros’, escravização por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a ela. Brancos são mortos por serem brancos? São seguidos por seguranças em lojas? Qual é a cor da maioria dos atores e apresentadores de TV? Dos diretores de novelas? Da maioria dos universitários? Quem detém os meios de produção? Há uma hegemonia branca criada pelo racismo que confere privilégios sociais a um grupo em detrimento de outro.”

Já do ponto de vista legal, Daniel Teixeira, advogado especialista em direito público do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), afirma que esse discurso de racismo reverso não se fundamenta, pois:

“A Constituição Federal traz no artigo 170 os princípios que regem a ordem econômica e, entre eles, no inciso 7, está a redução das desigualdades sociais. Então, como se trata de um artigo que rege a ordem econômica, as empresas devem obedecer, elas precisam cumprir essa norma. Um princípio é uma norma e tem ainda mais importância quando está na Constituição Federal”

Voltando à Liberdade, é justo falar que antes dessas políticas afirmativas esse grupo marginalizado e desprovido de oportunidades era livre para competir por aquelas vagas de emprego, com as camadas privilegiadas da população? Faz sentido falar em Liberdade, sem falar em Oportunidades? A Meritocracia é soberana, independente da condição das pessoas?

Diversidade nas Empresas

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Muitas empresas acreditam que não. Dentre elas, Gerdau, P&G e Banco BV seguiram o exemplo da MagaLu e disponibilizaram vagas de estágio e de trainee exclusivas para mulheres e pessoas negras. Isso mostra que as empresas não estão (e não deveriam estar) alheias a essa discussão, bem como à discussão da diversidade e da inclusão de uma maneira mais ampla. Para diversas firmas, é evidente que ter funcionários com diferentes experiências e pontos de vista traz benefícios ao ambiente corporativo ao ampliar os horizontes da empresa, permitindo-a abranger novos processos, novas soluções e novas formas de fazer negócios, de modo que a realização de processos seletivos específicos para determinados grupos sociais marginalizados se torna uma boa alternativa para trazer diversidade às empresas. Além disso, equipes mais diversas tendem a tornar a empresa mais atrativa para novos talentos e o ambiente de trabalho mais agradável aos colaboradores, afinal, não é por causa da orientação sexual, da cor da pele, da religião (ou falta dela) ou outras características, que as pessoas deixarão de ser extremamente competentes em seus respectivos trabalhos. Por outro lado, um ambiente hostil costuma gerar desconforto e, até mesmo, inibir o desenvolvimento das pessoas, sendo assim menos produtivo do que ambientes inclusivos e acolhedores.

Um estudo realizado pela Pearson Corporate Solutions concluiu que um ambiente agradável e que valoriza as diferenças permite que os colaboradores sejam autênticos em seus trabalhos, de modo que suas diferentes realidades, ideias e pontos de vista contribuam para a originalidade e o processo criativo da empresa. Também foi possível observar uma forte relação entre a diversidade e a performance financeira das organizações. Além disso, identificaram que as empresas socialmente e ambientalmente engajadas se destacam no recrutamento de colaboradores de alto desempenho, afinal os novos talentos tendem a priorizar firmas conectadas, globais e engajadas. Vale ressaltar que a diversidade é um conceito amplo e associado à liberdade, englobando uma grande variedade de aspectos, dentre eles de gênero, sexual, étnico-racial, cultural e religioso.

Assim sendo, as diferentes organizações (públicas e privadas) estão cada vez mais preocupadas em promover um ambiente acolhedor e incentivar a formação de um time diverso. Nesse sentido, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou a Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual e a Coordenadoria Executiva de Promoção da Igualdade Racial, ambas vinculadas à Secretaria Municipal de Governo e Integridade Pública (Segovi) e criadas com o objetivo de melhorar a representatividade de grupos marginalizados na prefeitura e no Rio de Janeiro como um todo. Como divulgado no perfil da própria Segovi, seu principal objetivo é “resgatar o Rio e trabalhar pela cidade que os cariocas merecem”, e a existência das duas coordenadorias supracitadas nos permite concluir que a construção desse ambiente acolhedor e diverso é muito importante para a atual gestão.

Liberdade, Política e Economia

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Apesar dessas pautas mais sociais serem comumente associados a bandeiras de causas e partidos de esquerda, a atual gestão municipal do Rio de Janeiro não se enquadra nessa categoria. Pelo contrário, a gestão iniciada em 1° de janeiro de 2021 se destaca por uma gestão fiscal responsável e sustentável, contando, inclusive, com diversos gatilhos acionados de acordo com a Capacidade de Pagamento (Capag) do município. De acordo com os princípios e valores divulgados no site do partido, suas pautas incluem tanto o apoio a causas sociais (englobando a ‘liberdade nos costumes’), quanto a defesa de uma economia de mercado (liberdade na economia) e de um Brasil moderno.

Nesse sentido, é possível falar em liberdade nos costumes sem falar em liberdade na economia? É possível falar em liberdade na economia sem falar em liberdade nos costumes? Existe Liberdade pela metade? As pessoas são verdadeiramente livres, mesmo com o governo, o julgamento/preconceito das pessoas ou até mesmo o ‘destino’ escolhendo a maior parte dos fatores que influenciam nas suas respectivas vidas? Note-se que uma das formas de compreender a palavra ‘destino’ é enquanto o somatório das decisões de terceiros, ou seja, das decisões que não estão no controle da pessoa. Além disso, esses terceiros não precisam ser necessariamente pessoas, podendo representar instituições (como o governo e as normas sociais) ou até mesmo forças naturais (como condições climáticas, eventos aleatórios e — havendo crença — divindades).

Voltando à Liberdade, a defesa desse princípio não é exclusividade de um partido ou de outro. De certa forma, todos os partidos buscam a liberdade em pelo menos um de seus muitos aspectos. A grande questão é: há liberdade, mesmo que incompleta? Naturalmente, liberais responderão que não, tanto que alguns liberais ainda foram além e criaram o Livres, uma associação civil sem fins lucrativos que atua como um movimento suprapartidário em defesa do liberalismo. A proposta do Livres está pautada em um equilíbrio tênue que assegura tanto uma economia liberal quanto a liberdade nos costumes, algo bastante incomum especialmente em períodos de polarização mais acirrada, tal qual estamos vivendo. O primeiro dos seus dez compromissos, já diz muito sobre a organização, como podemos conferir a seguir:

“Indivíduos devem ser livres para gozar de sua liberdade e responsáveis pelas consequências de suas escolhas. A atuação do Estado deve ser limitada às funções essenciais, protegendo a vida e a liberdade dos cidadãos, e garantindo-lhes o direito a florescer e buscar sua própria felicidade de acordo com suas escolhas e possibilidades.”

À primeira vista, a liberdade em termos econômicos se destaca pelo apelo mais explícito ao Estado mínimo. Todavia, em uma leitura mais cuidadosa, a sensibilidade social aparece no ‘direito a florescer (…) de acordo com suas escolhas’ e reforça a existência de uma interdependência entre liberdade e oportunidade. Com base nesse compromisso, espera-se que associados do Livres se posicionem contrários, por exemplo, ao enquadramento do programa de trainee exclusivo para negros enquanto supostamente racista e, consequentemente, ilegal.

Relacionamentos Abusivos

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No debate acerca da plenitude da Liberdade, relacionamentos abusivos também constituem uma perspectiva que merece atenção. Apesar de contraintuitivo, os relacionamentos tóxicos não costumam ser (e muito menos começar) escandalosos, pelo contrário: são sorrateiros e silenciosos. Um relacionamento começa a se manifestar como abusivo a partir de sinais muitas vezes imperceptíveis, como um ciúme ‘fofo’, com a invalidação dos sentimentos e até mesmo com o afastamento de outras pessoas. Dessa forma, a pessoa tóxica tentará de tudo para impedir o(a) parceiro(a) de enxergar os sinais e de poder pedir ajuda para sair daquela situação desconfortável. À medida que o tempo vai passando, alguns sinais mais evidentes tendem a aparecer: o ciúme excessivo, a chantagem e o controle financeiro dificultam ainda mais uma reação por parte da vítima, que acaba por tentar se acostumar àquela situação. Os abusos vão aumentando gradativamente, dificultando a visualização de um quadro amplo da situação e a permite evoluir a estágios mais graves, havendo inclusive violência física.

Ao observar a situação pelo lado de fora, pode parecer óbvio que determinado relacionamento é abusivo. Entretanto, a perspectiva da vítima é completamente diferente e não pode ser ignorada. A fim de tentar ilustrar melhor a evolução da situação, pela perspectiva da vítima, podemos recorrer à metáfora d’O Sapo e a Água Quente:

“Estudos biológicos mostram que um sapo colocado num recipiente com a mesma água de sua lagoa, fica estático durante todo o tempo em que aquecemos a água, mesmo que ela ferva. O sapo não reage ao gradual aumento de temperatura (mudanças de ambiente) e morre quando a água ferve. Inchado e feliz. Por outro lado, outro sapo, que seja jogado nesse recipiente com a água já fervendo, salta imediatamente para fora. Meio chamuscado, porém vivo.”

Muitas vezes, nós, seres humanos, nos adaptamos (que nem sapos fervidos) e não percebemos as mudanças: achamos que está tudo bem ou é só questão de tempo até melhorar. Abdicam de diversas liberdades ao longo do processo: perde-se a liberdade de escolher o que vestir, de passear e de curtir com os amigos por causa do ciúme excessivo; perde-se a liberdade de expressão por causa da chantagem; e perde-se a pouca liberdade que resta por causa do controle financeiro, tornando-se refém daquele relacionamento. Mesmo prestes a morrer, continuam boiando, estáveis e apáticos em uma água que se aquece a cada minuto e só percebem o que está realmente acontecendo quando já é tarde demais. Nesse sentido, podemos dizer que somos livres para entrar e sair de relacionamentos amorosos? Por outro lado, pensando na perspectiva dos parceiros(as) tóxicos(as), as pessoas poderiam ter o direito de interferir e restringir a liberdade dos outros? Até onde vai a liberdade dos indivíduos?

Reflexão Final

A fim de instigar esse tipo de reflexão, as polêmicas envolvendo Monark (um dos apresentadores do Flow Podcast) também se mostram interessantes, pelo caráter frequentemente polêmico das postagens em suas redes sociais. Apesar disso, o dia 26/10/2021 se destaca pelas proporções que as discussões adquiriram após Monark twittar: “Ter uma opinião racista é crime?”. Esse tweet movimentou as redes sociais de tal maneira que, após o incidente, iFood e Trybe repudiaram publicamente os atos racistas e encerraram as relações comerciais com o Flow Podcast. Esse tipo de situação, apesar de triste, é interessante para refletir sobre os limites da liberdade de expressão. Até que ponto nossas falas são de fato opiniões? Quando as ‘opiniões’ se tornam discurso de ódio? A plenitude da liberdade é utópica ou deveríamos ser ‘livres’ para falar e fazer o que bem entender, independente do mal que isso pode causar ao próximo? Para mim, a resposta de muitas dessas perguntas passa pelo Respeito.

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