Fidel e Pinochet tiram sarro de você que não faz nada

Um texto sobre a fragilidade das democracias

Caio Romio Augusto
O Veterano
6 min readJul 21, 2021

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“A verdade, que é o segredo para a salvação das democracias, é outra: para se viver em uma democracia, não basta uma razão codificada nas normas de uma constituição democrática. É necessário que, atrás dela, ocorra a vigilante e operosa presença do costume democrático que deseje e saiba traduzi-la, dia a dia, em uma concreta, racional e racionável realidade” — Piero Calamandrei, “Processo e Democracia”.

Protesto contra a Ditadura Militar no Rio de Janeiro, em 1968. Foto: Memorial da Democracia.

Hoje, como em todos os outros dias da semana, vamos ligar os nossos celulares e olhar as notícias. Vamos entrar no Instagram, no Twitter, na Folha de São Paulo, no Estadão, até na Globo, e olhar as notícias.

Todos sabemos o que está acontecendo. Um golpe está em curso. Jair Bolsonaro não vai sair pacificamente do poder, nem que perca já no primeiro turno. O sujeito apela para as urnas de papel e para as estratégias mais sujas e vis de confronto político — e é, pasmem, Presidente da República. E nós entramos no Instagram, no Twitter, na Folha de São Paulo, no Estadão, e até na Globo — e olhamos as notícias.

E postamos os nossos stories. Na praia, no restaurante chique, no estágio, no rolê. Às vezes, até tem espaço para uma crítica política aqui e acolá. Mas quem é que tem saco pra política nos dias de hoje? A pandemia está aí, com seus 540.000 — quinhentos e quarenta mil — mortos, e estamos impacientes para voltar ao normal. Ao réveillon, ao carnaval.

O fim da pandemia está claro, finalmente. Os erros cometidos pelas autoridades competentes estão sendo auditados, com grande atenção popular. Já o fim da democracia pode parecer impensável, como uma teoria distópica e exagerada de conspiração. Tomamos a democracia como garantida, e esse é o nosso maior engano: ao longo da história, a democracia não é a regra. É a exceção.

O autoritarismo e a tirania sempre governaram a humanidade. É mais fácil controlar um povo com um governo homogêneo do que admitir a tolerância aos que discordam dos governantes. O diálogo é dispendioso: mais fácil é recorrer às armas. Basta vermos os nossos exemplos históricos de democracia.

A história das grandes civilizações possui milênios. Nesses milênios, em poucos séculos e em poucos lugares houve regimes razoavelmente democráticos. Em Atenas, na Grécia Antiga, a democracia durou pouco mais de dois séculos e privilegiou apenas uma pequena parcela da população. Em Roma, a República até era mais abrangente, mas também admitia a escravidão e foi interrompida por golpes autoritários — como os de Sula, Pompeu e Júlio César.

Vamos ao Brasil: escrevo este texto para um jornal ligado a uma instituição que carrega o nome de um ditador. Getúlio Vargas, ao dar o golpe, postergou a democracia e, ao instituí-la, logo a interrompeu. O Estado Novo foi um dos períodos mais sombrios da história brasileira, e, proporcionalmente à sua menor duração, foi mais cruel que a Ditadura Militar. Getúlio Vargas, com uma corja de interventores, utilizou-se amplamente de torturas e censuras para implantar o seu projeto fascistóide de poder. Não obstante, por conta de seu carisma e de melhorias duvidosas na economia brasileira, ainda é venerado por muitos brasileiros ditos democratas. Prova disso é a quantidade de capitais com avenidas que levam o seu nome: Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Cuiabá e Porto Alegre são alguns exemplos. Em 1954, Getúlio se matou “para entrar na história” como o maior criminoso brasileiro a ser inocentado pela opinião pública.

Os anos de chumbo da Ditadura Militar ainda são lembrados com nostalgia por muitos brasileiros. Quem não vibrou ao ver o Rei Pelé levar o país ao tricampeonato mundial, em 1970? Quem não se empolgou ao saber que o Brasil crescia em ritmo galopante com o dito “Milagre Econômico”, enquanto o mundo se afundava na Crise do Petróleo? Quem se importava com a censura a toda e qualquer oposição ao regime corrupto e cruel de Emílio Médici? Quem percebeu que a crise dos anos 80, com a hiperinflação e os remédios desastrosos do Sarney, só existiu por causa das dívidas públicas astronômicas que os militares tomaram para sustentar o suposto Milagre? Ninguém. Quer dizer, quase ninguém.

Emílio Médici, carniceiro da Ditadura Militar, recebe a Seleção Brasileira após título da Copa de 70. Foto: Arquivo/Folha Imagem.

Os democratas marcaram forte presença no Brasil durante todo esse período. Muitos, como um retrato de um país que não merece os talentos que possui, são esquecidos ou vilanizados pela memória popular. Prova disso é que nem Ulysses Guimarães, nem Mário Covas, nem Leonel Brizola — todos eles, de maneiras diferentes, ícones da oposição à ditadura — foram ao segundo turno das eleições de 1989. Ulysses Guimarães, maior herói da redemocratização, teve menos votos que Paulo Maluf, o “filhote da ditadura” (como bem dito por Brizola). E, no segundo turno, um playboyzinho desconhecido venceu um metalúrgico radical.

Atualmente, já se passaram 36 anos desde que a Ditadura Militar foi oficialmente abolida — embora a censura tenha permanecido por mais tempo. É o maior período democrático de toda a nossa história, marcada por tiranias coloniais, escravocratas, imperiais, coronelistas, varguistas e militares. São 36 anos de uma história de 521. Ou seja: estamos na exceção, não na regra. E temos motivos para temer. A começar pelas características do autoritarismo, muito mais versátil e adaptável que a democracia. As maneiras de dominar um povo sempre se adequam às características de seu tempo, moldando-se às novas tecnologias de controle e às novas formas de manipulação ideológica. O regime do diálogo e da tolerância, contudo, segue essencialmente o mesmo, cabendo apenas invenções para deixar as instituições democráticas mais sólidas, eficientes e inclusivas.

Portanto, é temeroso quando Bolsonaro, nosso Presidente da República, sem provas, ataca o nosso sistema eleitoral, xinga Ministros do STF, despreza a liberdade de imprensa e tem um histórico de veneração a torturadores e desprezo pelas instituições democráticas. É temeroso quando países de nossa irmandade latino-americana, como Venezuela, Peru, México e Cuba, sofrem ou ficam à beira de sofrer golpes de Estado em nome de um suposto e obscuro interesse popular. É temeroso quando Lula, o maior candidato a substituir Bolsonaro, flerta com as ditaduras da América Latina, menospreza protestos pela liberdade em Cuba e endossa discursos irresponsáveis de apoio a uma suposta esquerda que tiraniza há décadas o povo de seu país. Isso sem mencionar os parlamentares que endossam o coro ditatorial do Presidente, ou que chegam a glorificar um dos maiores genocidas da humanidade, Joseph Stálin, em redes sociais — como fez Jandira Feghali.

A democracia importa porque é a única que impede a apropriação do Estado por um só grupo político. Importa porque todos os seres humanos são falíveis, possuem tendências corruptas e precisam se fiscalizar. Importa porque não permite que a sociedade seja usada como um laboratório para aventureiros políticos irresponsáveis, apoiados por armas e manipulação ideológica. Importa porque eu e você, mesmo que sejamos adversários políticos, somos filhos de uma mesma nação, não inimigos pessoais, e temos os mesmos nobres desejos de viver em um país melhor. Se há algo que nos une, é a possibilidade de nos sentarmos a uma mesa e dialogarmos pacificamente sobre como o Brasil deve prosseguir.

Não podemos deixar que nos tirem isso. Devemos ser vigilantes sobre as ameaças aos nossos direitos políticos e à nossa Constituição — que, com todas as suas falhas, é a melhor e mais duradoura que já tivemos. A democracia importa porque, à exceção de todos os outros, é o pior sistema de governo¹. E também o mais frágil.

[1] Como teria dito Winston Churchill, para a Câmara dos Comuns, em 11 de novembro de 1947.

Bibliografia:

CALAMANDREI, Piero; Processo e Democracia; Livraria do Advogado; Porto Alegre, 2018.

DAHL, Robert; Poliarquia; EDUSP; São Paulo, 2005.

PRZEWORSKI, Adam; Democracia e Mercado; Relume-Dumará; Rio de Janeiro, 2005.

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Caio Romio Augusto
O Veterano

Estudante de Direito da FGV Direito Rio, cuiabano e quase carioca. Apaixonado por política, História, cultura e artes num geral. Cat person e fã do Al Pacino.