Liberdade de Expressão e Ordem Institucional

Reflexões constitucionais à luz da prisão do deputado Daniel Silveira

Caio Romio Augusto
O Veterano
8 min readMar 3, 2021

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Daniel Silveira, de amarelo, observa e ri enquanto homem com camiseta de Bolsonaro quebra placa em homenagem à ex-vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018.

Autores: Caio Romio Augusto e Lucas Diettrich.

O Brasil passa por um período de constante instabilidade institucional. Isso ocorre, principalmente, por dois motivos: (1) uma crise de confiança nas instituições públicas, que vêm sendo frequentemente atacadas, e (2) o recorrente conflito dos princípios constitucionais de defesa da democracia com a literalidade das regras jurídicas, que talvez não sejam mais integralmente capazes de comportar as novas complexidades da vida social trazidas pelos meios digitais.

Na última semana, o deputado federal Daniel Silveira (PSL) foi preso em flagrante delito por publicar um vídeo em suas redes sociais em que defendia a volta do AI-5 e dirigia ofensas diretas aos ministros da Suprema Corte. Com isso, seguindo os trâmites legais estabelecidos pela Constituição (Art. 53, §2º, CF), o mandado de prisão emitido pelo ministro Alexandre de Moraes foi confirmado por unanimidade pelo plenário do STF, sendo votado e aprovado no dia subsequente pela Câmara dos Deputados. É válido lembrar que o parlamentar já está sob investigação do STF no “Inquérito das Fake News”, que investiga o financiamento de atos antidemocráticos em Brasília — como a divulgação de informações falsas e o ataque recorrente às instituições públicas em suas redes sociais. Além disso, já foi alvo de uma onda de críticas ao depredar, no período eleitoral de 2018, a placa de rua que homenageava a ex-vereadora do Rio Marielle Franco, assassinada em 2018.

A prisão do deputado foi motivo de grande alarde na comunidade jurídica, o que acabou por provocar debates sobre a forma como as instituições têm reagido a ataques, bem como sobre o precedente que se abrirá para casos similares. De um lado, argumenta-se pela necessidade de represálias a posturas que atentem contra a ordem institucional do país; afinal, as garantias constitucionais têm como finalidade última a proteção da democracia, e não sua destruição. De outro, critica-se a fundamentação técnica realizada pelo ministro na presente decisão, levantando dúvidas acerca de quais seriam os limites de atuação do Poder Judiciário para a punição de discursos anti-sistêmicos proferidos por membros do Legislativo nas redes sociais.

O discurso de Daniel, adianta-se, foi grotesco. Incompatível, em todos os sentidos, com o comportamento que se espera de um deputado federal — estando sujeito, inclusive, à perda do mandato por quebra de decoro parlamentar (art. 55, II, CF). No vídeo, o deputado não só realiza ofensas pessoais aos ministros, como também flerta com o passado sombrio da ditadura militar. Não obstante, eventuais incongruências técnicas no curso de sua prisão precisam ser devidamente esclarecidas e aprimoradas, posto que a defesa dos valores democráticos, queiramos nós ou não, perpassa obrigatoriamente pelo cumprimento do rigor normativo dos dispositivos jurídicos, tendo em vista a previsibilidade das leis e, consequentemente, a prevalência do Estado Democrático de Direito.

É verdade que a liberdade de expressão é um direito fundamental constitucionalmente tutelado (art. 5º, IX, CF). Para deputados e senadores, especificamente, a Constituição assegura a inviolabilidade de “quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” (art. 53, caput) — não podendo esses, portanto, serem presos, salvo em “flagrante de crime inafiançável” (art. 53, §2º, CF). Dessa maneira, assim como ocorre com a liberdade da expressão nos dias atuais, existem controvérsias sobre quais seriam exatamente as limitações legais para o exercício da imunidade parlamentar na vida política das redes; ou seja, até que ponto a generalidade escolhida pelo legislador no emprego normativo do pronome “quaisquer” (para acoplar todo e qualquer discurso) poderia ser utilizada de prerrogativa para inviabilizar a aplicação de sanções penais e cíveis aos parlamentares no que diz respeito a potenciais crimes cometidos em discursos.

Nesse sentido, segundo o entendimento proferido pelo STF, o atentado às autoridades que ultrapasse os limites da moldura normativa da liberdade de expressão dos parlamentares exige uma resposta imediata. Com efeito, o discurso realizado por Silveira no vídeo publicado foi interpretado como contrário à ordem constitucional e ao Estado Democrático, configurando, portanto, crime inafiançável (art. 5º, XLIV, CF). Ademais, o fato de permanecer disponível para visualização nas redes foi visto como um elemento de caracterização de “crime permanente” (Art. 303, CPP), circunstância que autorizaria a prisão em flagrante enquanto não cessar a permanência — no caso, o vídeo não sendo apagado.

Trata-se, por evidente, de um caso considerado difícil (hard case), que, se não dispuser de clareza evidente nas possibilidades jurídicas de sua aplicação, pode abrir espaço para resoluções futuras incertas ou mesmo arbitrárias. É fato, nestes casos, que a incerteza jurisdicional apresenta-se como uma inevitável consequência da execução de um raciocínio predominantemente jurídico, já que magistrados, em sua grande maioria, realizam interpretações levando em consideração não só a formulação textual disposta nas normas, como também os fatos concretos do caso, à luz de sua justificação subjacente. Por conseguinte, para que seja possível inviabilizar eventuais abusos nesse processo, faz-se necessário que sejam estabelecidos arranjos decisórios capazes de restringir a incidência das incertezas judiciais somente ao exercício padrão da atividade jurisdicional — sem margem para a parcialidade que poderia advir dela.

A decisão teve como objetivo constitucional a promoção de um efeito simbólico contra o radicalismo político emergente no Brasil nos últimos anos. Seus resultados práticos na realidade brasileira, entretanto, só serão possíveis de serem observados quando construírem-se critérios objetivos de aplicação do precedente formado. Isso implica responder, por exemplo: (i) para quais casos será admitido o instrumento jurídico da prisão em flagrante nos crimes cometidos em redes sociais e (ii) como exatamente delimitar-se-ão as fronteiras legais para o exercício da liberdade de expressão nos discursos e falas de parlamentares nas redes.

Cabe ressaltar que as especificidades técnicas do caso têm causado grande divergência entre os profissionais do Direito, tanto no que diz respeito ao caráter inafiançável do crime, quanto à permanência do vídeo que caracterizou a prisão em flagrante. Outra questão que levanta controvérsias é a recepção da Lei de Segurança Nacional pela Constituição Federal de 1988, fato que resultaria na manutenção da validade jurídica do dispositivo, elaborado na Ditadura Militar. Todavia, ainda mais importante que delimitar a simples legalidade ou ilegalidade da decisão, é desenvolver arranjos institucionais capazes de absorver abalos e se manterem firmes.

Conforme uma interpretação literal do texto da Constituição, o legislador aparenta ter optado pela abrangência absoluta dos discursos protegidos pela imunidade parlamentar. Pelo viés de proteção às instituições, no entanto, direitos constitucionais deveriam servir para preservar os pilares do Estado Democrático de Direito. Isso remete à ideia de que há de ser feita uma interpretação sistemática da Lei Maior, com base em princípios que tutelam valores como a dignidade da pessoa humana, a liberdade de expressão e a harmonia e independência entre os Poderes. Dessa forma, no caso do deputado, entende-se que devem ser ponderadas as normas que tendem à proteção ou à proibição das falas proferidas para, somente após esse procedimento, chegar-se à decisão mais compatível com o ordenamento constitucional brasileiro.

Ademais, vale mencionar a elaboração da PEC 3/2021 (popularmente denominada “PEC da Impunidade”), redigida pelo deputado Celso Sabino (PSDB-PA) em reação à prisão de Silveira e tramitada para votação com grande agilidade na Câmara dos Deputados. O texto, dentre outros privilégios parlamentares, prevê: (i) a restrição da prisão em flagrante de congressistas apenas aos crimes inafiançáveis previstos na Constituição, (ii) a impossibilidade de afastamento dos membros por medida cautelar e (iii) a flexibilização das regras de inelegibilidade dos candidatos a cargos eletivos. Em outras palavras, o que se tem na proposta é a objetivação de direitos quase divinos aos parlamentares, criando privilégios que parecem ter sido pensados para favorecer propositalmente deputados e senadores que cometem crimes.

A Proposta foi admitida para votação nesta quarta-feira (24), mas foi retirada de pauta na sexta após forte pressão de partidos contrários — fato que prolonga bastante a sua tramitação. Contudo, ao que se deve atentar aqui é o fato de essa iniciativa ser apenas uma das muitas possibilidades possíveis para o detalhamento objetivo dos princípios constitucionais supracitados, o qual pode ou não ser positivo. Disso resulta a urgência de se desenvolverem novos arranjos normativos para que busquem não apenas neutralizar as chances de oportunistas, de forma antagônica à doutrina de Luís Roberto Barroso, “empurrarem a história” para trás quando tiverem a chance, como também possam consolidar as novas demandas sociais de forma democrática.

Com efeito, para além dos aspectos técnicos que certamente não estão pacificados, tem-se buscado elucidar questões mais profundas sobre como se seguirá a vida democrática do país após momentos de instabilidade de suas estruturas, atentando aos precedentes que serão deixados e às melhores formas de não submetê-los ao mero arbítrio judicial.

Em tempos como os atuais, em que as atribuições do direito e da política confundem-se em fronteiras cada vez menos definidas, delimitar parâmetros objetivos de análise de casos como este mostra-se uma tarefa primordial. Se, por um lado, determinadas violações jurídicas do Judiciário possam ser ocasionalmente justificadas em razão de interpretações expansivas favoráveis às instituições, por outro, nada garante que tais precedentes serão sempre empregados dessa maneira, podendo ser fortemente subvertidos em seus propósitos.

Nesse sentido, as interpretações judiciais expansivas, embora mostrem-se inicialmente favoráveis por conseguirem criar direitos não tutelados previamente pela Constituição, podem ser controversas no longo prazo, pois não estabelecem parâmetros objetivos de sua utilização em casos futuros. Assim, fica a critério dos juízes decidir sobre as formas de sua aplicação, que podem — ou não — ser bem intencionadas.

Em conclusão, reconhece-se que os últimos anos têm sido positivos para a consolidação dos valores democráticos no meio jurídico. Isso pode ser observado nos recentes julgamentos da Corte, que, embora sejam em parte controversos, vêm atuando no sentido de expandir direitos e consolidar a democracia. Exemplos concretos foram os julgamentos de proibição do nepotismo nos poderes (ADI 3.510), do reconhecimento das uniões homoafetivas (ADPF 132), da criminalização da homofobia (ADO 26), dentre outras decisões históricas — e frequentemente questionáveis.

Tais mecanismos, no entanto, sozinhos, podem não ser suficientes para garantir a continuidade de tudo que já foi realizado. Há de se lembrar que a composição da Corte está em frequente mudança — sujeita, ainda, às preferências ideológicas do Presidente da República — e, se hoje o Supremo tende a concordar com posturas mais progressistas e protetivas às instituições, nada garante que a situação atual se mantenha nos próximos anos. Diante disso, por fim, cabe a reflexão: o que será de nossa democracia caso, no futuro, não se houverem estabelecidos limites objetivos para a manutenção dos precedentes que a protegem? Só o tempo dirá.

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Caio Romio Augusto
O Veterano

Estudante de Direito da FGV Direito Rio, cuiabano e quase carioca. Apaixonado por política, História, cultura e artes num geral. Cat person e fã do Al Pacino.