Macron, o protecionista

As razões, as consequências e as incoerências dos discursos de Emmanuel Macron sobre a Amazônia

Caio Romio Augusto
O Veterano
5 min readMar 10, 2021

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28/06/2019 — Frederico Mellado/ARG/Flickr

O cenário político mundial, desde os últimos anos, passa por tempestuosidades ideológicas. Grupos extremistas, de direita ou de esquerda, ganham forças e provocam a reação de candidatos ditos moderados e aparentemente sem ideologia definida. Basta acompanhar quaisquer redes sociais para observar o que aqui se afirma: ideias polarizadas, pouco diálogo efetivo e tentativas desesperadas de se “ganhar” debates, mesmo com argumentos fracos.

Engana-se, porém, quem pensa que os principais líderes mundiais entram à toa nesse jogo de acusações mal sustentadas. Posicionamentos oficiais de Chefes de Estado quase sempre escondem motivos mais profundos para serem feitos, ao invés de simples benevolência ou indignação moral contra determinada conduta de um outro Estado. É o caso dos embates entre Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil, e Emmanuel Macron, Presidente da França.

Em 2019, ocorreram eventos importantes na relação dos dois países. O primeiro, em junho, foi a assinatura do Tratado de Livre Comércio do Mercosul com a União Europeia. Logo em seguida, começaram a acontecer fortes incêndios em biomas brasileiros, principalmente na Amazônia e, em 2020, no Pantanal.

A princípio, pode parecer difícil correlacionar os dois fatos mencionados. Porém, deve ser lembrado que a União Europeia é uma forte importadora de carne e outros produtos agrícolas do Brasil, que compete com os de lá. A criação do Tratado, desse modo, teria impactos fortes em como os países da Europa poderiam estimular a compra e venda dos produtos produzidos por agricultores e pecuaristas europeus, visto que taxações aos alimentos brasileiros seriam muito reduzidas. Em consequência, países da UE com maior dependência do setor agropecuário recomendaram cautela em relação à ratificação do acordo — ainda pendente.

Nesse cenário, qualquer motivo para desqualificar o agronegócio brasileiro seria usado pelos representantes de países contrários ao tratado de livre comércio. Os fortes, mas nada muito fora do comum, incêndios ocorridos na Amazônia em 2019 serviram como munição para Macron atacar o Brasil, o agronegócio brasileiro e a figura de Jair Bolsonaro. Pelo Twitter, chamou o cenário de incêndios de “crise internacional” e, em pronunciamento televisivo, chamou o bioma de “nosso bem comum” e exigiu que o tema fosse discutido na cúpula dos G7 — afronta tácita à soberania dos países que integram o território amazônico.

Vale lembrar, por um lado, que a Amazônia faz parte do território da França, considerando onde se localiza a Guiana Francesa. Contudo, a parcela é ínfima se comparada ao tamanho de espaço que o bioma ocupa em outros países. Cabem aqui algumas reflexões.

A primeira delas diz respeito à política interna de Emmanuel Macron. O presidente francês, eleito em 2017 com grande popularidade, enfrentava fortes crises de apoio em seu país. Reformas trabalhistas flexibilizadoras de direitos e uma reforma sobre o imposto sobre fortunas lhe trouxeram a alcunha de “o presidente dos ricos”. Ademais, seu discurso de campanha, favorável ao meio ambiente, estava sendo posto em xeque. Tal fato se tornou público principalmente após Nicolas Hulot, o primeiro dos ministros da Ecologia de Macron, ter abandonado o seu cargo alegando uma inércia governamental a respeito das mudanças climáticas.

Junto a isso, está a postura de Jair Bolsonaro em relação ao meio ambiente. Apesar de estar certo em defender a soberania nacional frente a discursos intervencionistas de quaisquer autoridades estrangeiras, a imagem do presidente brasileiro para o mundo é a de alguém completamente alheio à preservação dos biomas nacionais. Bolsonaro incorpora, em uma pessoa só, a perfeita descrição de alguém ignorante, autoritário, incapacitado e retrógrado. Muitas de suas atitudes, como a disseminação de notícias de procedência duvidosa e os xingamentos, por vezes bastante chulos, aos seus críticos, reforçam essas características. Não é de se espantar, portanto, que os apoiadores franceses de Macron repudiem a figura de Jair Bolsonaro — personificado como o mal encarnado em presidente por boa parte da mídia ocidental.

Atacar Bolsonaro, nesse sentido, foi uma medida estratégica para Macron recuperar a sua popularidade na França e mostrar que se preocupa com a preservação do meio ambiente. Ainda que o presidente brasileiro tenha bastante razão em reforçar a soberania nacional frente aos interesses externos, sua postura extremamente agressiva, reativa e destemperada contribuíram para que o francês obtivesse sucesso em seu falatório sobre a Amazônia brasileira. Vale ressaltar, contudo, que Jair Bolsonaro também acenava para o público interno em suas reações a Emmanuel Macron. O brasileiro sempre teve um discurso nacionalista, aliado a uma postura anti-sistêmica e despreocupada com o decoro exigido de cargos políticos de tão grande porte.

Em setembro de 2020, Macron voltou a atacar o desmatamento da Amazônia, dessa vez na cúpula da biodiversidade da ONU. Afirmou, inclusive, que o acordo entre União Europeia e Mercosul só não foi ratificado por causa do aumento do desmatamento — uma desculpa certamente mais palatável que os motivos protecionistas da França contra os produtos da agropecuária brasileira. Em janeiro de 2021, o presidente francês escreveu no Twitter que a dependência da soja brasileira endossa o desmatamento do bioma amazônico, e que a Europa deveria começar a cultivar o grão por conta própria. Essa afirmação é bastante questionável, visto que a maior parte do produto é plantada no Cerrado e, ademais, desde 2006 vigora a chamada “Moratória da Soja” contra o plantio em áreas recém desmatadas da Amazônia, que ajudou a reduzir o desmatamento em 2,4 vezes entre 2001 e 2014[1]. Um artigo publicado na revista Science mostrou que apenas 2% das propriedades rurais, na Amazônia e no Cerrado, causam 62% de todo o desmatamento potencialmente ilegal dos biomas[2]. Esses fatos afrontam seriamente as falas do presidente da França, que prefere se utilizar de estereótipos pouco fundamentados para atacar a reputação dos produtos brasileiros.

O problema de tudo isso é que vai muito além de brigas políticas entre dois presidentes. Dois blocos econômicos inteiros saem prejudicados por causa do protecionismo francês e da insensibilidade de Bolsonaro — lembrando que o tratado de livre comércio estava sendo articulado muito antes de seu governo. Produtores não apenas agropecuários, mas de todos os setores econômicos que seriam beneficiados com o acordo, deixam de lucrar e de gerar mais desenvolvimento regional por causa de embates assim. O protecionismo do governo francês, mascarado de heroísmo ecológico, ataca a soberania brasileira, prejudica a economia global e precisa ter um fim.

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Caio Romio Augusto
O Veterano

Estudante de Direito da FGV Direito Rio, cuiabano e quase carioca. Apaixonado por política, História, cultura e artes num geral. Cat person e fã do Al Pacino.