Motomami: Borboletas Soltas Pela Rua

LUCAS SALLES PITHON MACEDO
O Veterano
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5 min readMar 25, 2022
Logotipo do álbum. Fonte: Wikimedia Commons

Há três anos, terminei o curso de espanhol. Há cerca de oito meses, publiquei um texto sobre música pop experimental. Pouco depois, tirei minha carteira de habilitação.

Por que trago aqui essas informações? Pois há pouco mais de uma semana (17) teve-se um dia de êxtase para aqueles que, assim como eu, falam espanhol, são fãs de música pop experimental e possuem habilitação: nesse dia, houve não apenas o lançamento de um álbum musical altamente antecipado, por parte de uma das mais finas artistas pop da atualidade, como também o lançamento de um álbum que, para meu prazer, é integralmente espanhol, surpreendentemente experimental e, acima de tudo, brilhantemente temático de automobilismo e motociclismo: Motomami, de Rosalía.

É saboroso acompanhar a evolução de Rosalía por meio de sua discografia. Seu primeiro álbum, Los Ángeles (2017), é um apanhado da essência do flamenco; a voz da catalã compete com violões e canta sobre morte e outros temas de forma simples, mas carregada. É um álbum orgulhoso de suas raízes musicais, cantado sem medo de referenciar e reverenciar os ritmos que formaram a artista. Em seguida, servindo como TCC de seu bacharelado em música flamenca na Escola Superior de Música da Catalunha, ela lança El Mal Querer (2018), álbum inspirado em um manuscrito do século XIII e com fortes influências flamencas, porém também transbordando de ritmos urbanos. Este, por sua vez, a lançou ao sucesso mundial, tanto em audiência quanto em crítica, consolidando-a como fenômeno indiscutível entre os hispanófonos e um rosto familiar até mesmo para o mainstream anglófono.

“Sinto que com Los Ángeles, quis reivindicar um legado musical. E quis reivindicar uma música que é muito importante para mim que é o flamenco […]. Mas como já tinha encontrado isso, pensava, não quero seguir com isso que já encontrei, eu quero outra coisa agora”.

Já nos dois ditos álbuns, nota-se evolução saudosa no som de Rosalía: ao mesmo tempo que a cantora agrega muito a seu repertório ao longo do tempo, ela consegue continuar com o respeito e elevação de suas raízes flamencas. A música global lhe serve não como distração, porém como alongamento de seus talentos, acrescendo ao melodrama trágico ao mesmo tempo que o eleva a patamar inexplorado, as lágrimas de paixão se fundindo com as correntes de ouro e tremendo com a batida.

Então surge Motomami, o terceiro fascículo da girata de Rosalía. Aqui, o ligame entre ritmos não é uma decoração, mas o próprio conceito, a solda unindo todas as faixas e tornando a experiência da obra uma autobiografia da cantora, o retrato de uma mente romântica em meio aos sons e luzes do século XXI. Rosalía não tem medo de referenciar ou não referenciar o que conhece justamente porque é ciente de seus limites: sabe exatamente onde usar o clássico e o novo, ganhando do ouvinte a atenção pelo erudito e, então, o interesse pelo experimental. Um exemplo primevo de tal método é a faixa “Bulerías”, talvez a canção mais assumidamente flamenca do álbum, na qual também se faz, em poucos versos, referência ao cantaor flamenco Manolo Caracol e à rapper estadunidense Lil’ Kim, coroando-se com a sintetização dos vocais da cantora no momento de êxtase. Forma-se assim algo inerentemente velho e novo, intercalação fumegante.

Rosalía durante apresentação da canção “La Fama”, no SNL. Fonte: Twitter

O álbum é aberto com “Saoko”, canção de título e refrão referentes ao termo porto-riquenho de origem africana saoco, referente ao sabor, ao ritmo e ao movimento — na primeira palavra, o trabalho tem sua gênese na amálgama. Assim, com a junção de tambores de jazz e sons sintetizados de bassline, a artista discorre sobre a transformação, alegando ser como uma borboleta, uma drag queen, um cubo de gelo ou até o cabelo de Kim Kardashian: em um momento é algo, em outro, outra coisa. Na ponte, acompanhada de mais bassline intensificando-se a cada verso, Rosalía anuncia a alegoria com o lema perpassante no trabalho: dane-se o estilo, dane-se o estilista, tecido e tesoura, pegue-o e corte-o.

A subversão também é lírica. Na segunda faixa (uma de minhas mais queridas), “Candy”, Rosalía canta romanticamente sobre o passado de um relacionamento utilizando como referência imagética a marca de luxo Fendi, que vestia, e a dupla Plan B, à qual dançava no dia em que conheceu seu amor. Em “hentai”, faixa sutilmente sensual, nota-se anglicismos, a utilização do termo hentai (nome do estilo de animação pornográfico japonês) como metáfora romântica e, finalmente, a narração da intenção de dirigir seu xodó como uma bicicleta, tudo isso acompanhado de piano e recheado de paixão — uma serenata aos ouvidos daqueles que não falam espanhol, e um deleite subversivo para os daqueles que falam. O diabo está nos detalhes.

Em minha faixa favorita, “La Combi Versace”, a artista narra noites pomposas junto à rapper porto-riquenha Tokischa. Mais uma vez, o bassline se une às palmas do flamenco e, dessa vez, à batida do reggaeton, para criar uma faixa engajante, porém impassível. Aqui, destaco um detalhe que me toca de maneira especial: no início do segundo verso, a cantora anuncia Rusi season coming — “a temporada de Rusi [apelido para Rosalía] está chegando”. Tal frase se relaciona quase diretamente à frase Yeezy season approaching (“a temporada de Yeezy está chegando”), enunciada por Kanye West no início de seu álbum mais experimental, Yeezus (2013). Mais uma vez, por meio de sutilezas, tem-se noção da escala do planejamento e referenciamento utilizados pela cantora na obra, fazendo do álbum, além de um retrato pessoal da artista, uma coleção de adesivos reminiscentes àquilo que tanto a influenciou.

Certamente o álbum não soará inicialmente bem a todos os ouvidos. E não falo aqui sobre os conservadores, que procuram em desespero idealizadas conformidade e tradição, mas também sobre os ouvintes do cansativo pop tradicional, que esperam um álbum uniforme, raso, em conformidade com o repetitivo formato padrão TikTok que tanto domina a música atual. Motomami, enquanto tapeçaria de vida, obra e mundo de Rosalía, é um apanhado de sons, sentimentos e narrativas que perpassa países, eras e pessoas. Uma criação que ultrapassa sua criadora, perfume de gasolina, borboleta (ainda) sem táxon.

Finalmente, termino este texto com o último verso da obra, na canção “Sakura”, uma mensagem sobre arte e artistas. Assim como as flores da cerejeira sakura, artistas são efêmeros, restando marcar o mundo com a benção que é a arte, nem que seja preciso criar nova linguagem para tal:

Flor de sakura

Não me dá pena, me dá ternura

[…]

Só há risco se há algo a perder

As chamas são bonitas porque não têm ordem

E o fogo é bonito porque tudo o quebra

Bibliografia:

https://pitchfork.com/reviews/albums/rosalia-motomami/

https://jezebel.com/rosalia-la-artista-que-esta-innovando-un-genero-propio-1830480787?rev=1544132552953

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LUCAS SALLES PITHON MACEDO
O Veterano

Graduando em Letras — Português e Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e sommelier de caldo verde.