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A dívida pública e a crise fiscal — por Carlos Eugênio da Costa

O Veterano
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10 min readFeb 17, 2021

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1923: Uma mulher em Berlim queima marcos alemães na fornalha para aquecer a casa durante o pico da hiperinflação da Alemanha em Weimar.

Uma das primeiras hipóteses que fazemos em teoria microeconômica é a de que as pessoas têm uma regra bem definida associando a cada conjunto de opções disponíveis uma escolha. Um elemento crucial nessa teoria é, portanto, a existência desses conjuntos de opções disponíveis: os conjuntos orçamentários. E é exatamente por fazer previsões sobre a forma como as escolhas podem variar quando esses conjuntos orçamentários variam — e.g., satisfazendo os axiomas de preferências reveladas — que a teoria adquire conteúdo científico.

Apesar de não dispormos de uma teoria canônica análoga para o comportamento do governo, ainda que por vezes invoquemos preferências sociais reveladas, somos sempre tentados a transferir esse elemento básico da teoria do consumidor, a restrição orçamentária, para o governo. Mas é essa transferência legítima? O governo possui uma restrição orçamentária no mesmo sentido que damos a essa expressão no caso do consumidor?

O meu propósito neste texto é oferecer alguns elementos para essa discussão. Desde já esclareço que não espero responder de forma definitiva essas perguntas. Parece-me claro que a natureza da restrição orçamentária do governo é diferente daquela associada a consumidores em um mercado competitivo. Há, porém, vários aspectos em aberto nessa discussão associados à natureza das promessas implícitas na dívida pública, o que faz com que autores respeitados que estudam o tema há muito tempo divirjam até sobre a existência de uma restrição orçamentária.

A R.O. do Governo

Normalmente, quando pensamos em restrição orçamentária do governo, a primeira coisa a ser observada é que ela pode ser gerada pela combinação da restrição de recursos da economia e de uma hipótese sobre o comportamento das pessoas: que elas não jogam recursos fora. Ou seja, a hipótese básica sobre o comportamento das pessoas é a de que elas escolhem na fronteira (se tal fronteira existe) de seus conjuntos orçamentários. Se as pessoas não jogam fora seus recursos, então tudo aquilo que adquirem pela venda de sua dotação, notadamente sua capacidade de trabalho, é usado para seu consumo, presente ou futuro.

Do ponto de vista da economia como um todo, a restrição de recursos da economia — a diferença entre tudo o que as pessoas produzem e o que elas consomem (ou investem) — é o que sobra para o consumo (ou investimento) do governo. É também essa diferença o que chamamos de impostos. Ou seja, gastos (mais investimentos) do governo e imposto são iguais. Qual é, então, a grande controvérsia que hoje alimenta não só a academia como o debate político? Como é possível, então, que hoje se ouçam sugestões de que o governo não tem restrição orçamentária?

Para entender o que está em jogo, é importante explicitar os aspectos dinâmicos da política fiscal, bem como o papel e a natureza da dívida pública.

A dívida pública

Comecemos pensando em uma situação específica em que o governo precisa financiar uma elevação temporária de gastos — para o enfrentamento de uma pandemia, por exemplo. Neste caso, o governo precisa aumentar a fração dos recursos produzidos que retira do setor privado para seu uso. O governo tem duas formas de fazê-lo: aumentando os impostos ou aumentando o seu endividamento. A principal desvantagem da primeira forma é que, ao tributar além dos recursos retirados para atender suas necessidades, o governo impõe aos cidadãos uma perda adicional de bem-estar, o chamado custo de peso morto, que surge em virtude das restrições de implementação.

Parece óbvio, então, que é melhor contar com o endividamento. Como os recursos são voluntariamente cedidos pelos agentes, nesse caso, o peso morto é evitado. Há só um problema com esse raciocínio: por que os agentes cederiam voluntariamente seus recursos? A resposta é: pela promessa de mais recursos no futuro, como em qualquer empréstimo. Isso quer dizer que a dívida pública não elimina o peso morto, só transfere sua imposição para períodos ou situações em que a sociedade tenha uma maior capacidade de absorver esse custo.

Implícita na discussão acima está a ideia de que o agente somente empresta sob a promessa de que receberá de volta no futuro os recursos remunerados a uma taxa que os convença a adiar seu consumo. Não é, neste caso, a situação do governo igual a de qualquer pessoa com acesso ao mercado de capitais? Sim e não.

Em primeiro lugar, governos são, teoricamente, para sempre. Ou, no mínimo, espera-se que governos durem por um prazo longo e imprevisível. Em modelos dinásticos, supomos o mesmo para o consumidor, um ponto a que voltaremos mais adiante. O importante, nesse caso, é que o governo não mais tem necessidade de efetivamente pagar a dívida: pode rolá-la para sempre. Um exemplo explícito de tal ideia está na emissão de perpetuidades, que são promessas de fluxos eternos de pagamento sem que haja qualquer promessa de resgate de principal. Nesse caso, até a necessidade de rolagem é evitada. Mas por que uma pessoa compraria um título que nunca será resgatado? Imagine uma pessoa que compra uma perpetuidade. Se ela viver para sempre, como supomos em modelos dinásticos, então receberá também para sempre um fluxo de pagamentos que lhe permitirá manter um padrão de consumo futuro maior do que teria sem a perpetuidade. E se a pessoa não viver para sempre, como supomos em modelos de gerações superpostas? Nesse caso, ela poderá passar o ativo para a próxima geração.

A vantagem de falar de perpetuidade é que evitamos a discussão acerca da rolagem da dívida. No entanto, a lógica continua valendo para títulos com vencimento em tempo finito. Ao vencer um título, o governo pode substituí-lo por um outro vencendo mais adiante. As pessoas terão interesse em comprá-lo pelas mesmas razões que as levam a comprar as perpetuidades: pela promessa de consumo futuro. Nesse caso, as pessoas estarão dispostas a absorver dívida à medida que o acréscimo de utilidade no futuro supere a redução da utilidade corrente. Note que isso impõe na prática uma restrição sobre a capacidade de endividamento do governo e, novamente, nos sugere uma restrição orçamentária nos mesmos moldes da restrição orçamentária dos agentes.

Essa analogia, no entanto, é apenas aparente. Há algumas diferenças cruciais entre o governo e os agentes. Imagine um governo que prometeu pagar 1000 Reais no próximo ano e 2000 Reais no ano seguinte. Poderíamos imaginar, então, que o governo fizesse o esforço fiscal (superávit) primário nesses valores: 1000 em 2022 e 2000 em 2023. Suponha, porém, que o governo pudesse manipular as taxas de desconto de tal forma a aumentar a taxa de desconto (reduzir o preço) de 2023 relativamente à de 2022. Nesse caso, poderia reduzir o custo total da dívida, já que há um volume maior de vencimentos em 2023. Eu certamente gostaria de fazer isso com as minhas dívidas. Infelizmente, ao contrário do governo, que controla a política fiscal, não tenho os instrumentos à minha disposição para manipular taxas de desconto intertemporal. Essa capacidade que o governo tem de manipular os preços relevantes dos seus superávits gera uma oportunidade que não se apresenta ao consumidor, i.e., a de reduzir o valor de sua própria dívida.

Uma segunda questão importante diz respeito à natureza das promessas implícitas no endividamento do governo. Quando eu contraio uma dívida, prometo pagar uma determinada quantia em unidades de um numerário emitido por outrem, o governo. Já um governo que se endivida em moeda que ele próprio emite está em uma posição diferente da minha. A única forma que tenho de quitar minha dívida é reduzindo o consumo relativamente à minha renda, o bastante para acumular uma quantidade de numerário suficiente para cumprir a promessa que fiz a meus credores. Ao governo, resta sempre a opção de simplesmente emitir o numerário em que a promessa foi estabelecida, sem que nenhum sacrifício no seu consumo seja feito. Nesse sentido, argumenta-se: um governo que se endivida em sua própria moeda nunca precisa dar calote já que tudo o que promete é realizar um pagamento com papel que ele próprio emite. A dívida pública seria, nessa visão, como uma dívida de uma empresa pagável em ações (Reverse Convertible Bond). Não há, nesse caso, como essa empresa ir à falência: no pior dos mundos produzirá uma grande diluição da propriedade com consequente redução no valor de cada ação. De forma similar, na pior das hipóteses, a emissão de numerário produzirá um processo inflacionário que corresponde à diluição do valor da moeda. Uma versão mais extrema desse argumento é que, sendo a dívida nominal, o governo sequer tem uma restrição orçamentária.

Pensemos aqui na dívida pública não como dívida convertível, mas como ações propriamente. Podemos pensar no valor da dívida pública como sendo igual às promessas de pagamento (superávits) futuros. Sendo a dívida nominal, então qualquer mudança nas expectativas quanto aos superávits futuros resultaria em uma redução no valor nominal da dívida via aumento do nível geral de preços — a chamada teoria fiscal do nível de preços. Nesse caso, não há necessidade de se falar em restrição orçamentária do governo: a cada trajetória de superávits está associado um nível de preços que torna o valor da dívida igual ao valor presente desses superávits. A restrição orçamentária é substituída por uma equação de apreçamento.

Dívida e Compromisso

Em toda a discussão anterior, tomei como dado o estoque da dívida e discuti a forma como a posição especial do governo torna sua restrição orçamentária diferente daquela de um consumidor endividado. Omiti de propósito a resposta à pergunta: por que alguém compraria uma dívida sabendo que os termos seriam manipulados pelo devedor? Eis uma pergunta para a qual não tenho uma boa resposta.

Modelos econômicos dinâmicos sempre têm um período zero, em que várias decisões já foram tomadas: dívidas foram contraídas, capital foi acumulado, esforços foram realizados, etc. No período zero, é sempre benéfico aproveitar-se dessas escolhas passadas para evitar os custos de peso morto de todas as decisões que os agentes ainda vão tomar. Calotes, confiscos e quebras de promessa são normalmente benéficos nesse mundo, já que relaxam as restrições de implementação, reduzindo o peso morto. No entanto, o período zero é um artifício do modelo. Calotes, confiscos e quebras de promessa têm custos reputacionais que deveriam ser incluídos em qualquer análise de política em um ambiente dinâmico.

De fato, quando levamos a sério a antecipação por parte dos agentes dessas possibilidades de manipulação dos termos do endividamento, vemos que elas pioram em vez de melhorar a posição do governo. A capacidade de garantir que não vai agir como se estivesse no período zero, i.e., de comprometer-se com uma política pré definida, passa a ser um importante instrumento de política pública. Explicitar o que acreditamos ser a capacidade de comprometimento do governo passa, na minha opinião, a ser uma necessidade de qualquer avaliação de política pública. É também nesse sentido, por exemplo, que a teoria fiscal do nível de preços substitui a noção de ações do governo para a de estratégias, o que nos leva a migrar para uma abordagem explícita de teoria dos jogos.

r — g e Espaço Fiscal

Como é possível inferir por minha discussão acima, acho que a ideia de que o governo pode agir como se não tivesse restrições parece frágil demais para ser levada à sério. Em última análise, ele sempre estará limitado pelas restrições de recursos e de implementação. Há, porém, uma discussão mais canônica que merece ser mencionada sobre o efeito das baixas taxas de juros sobre o quão restrito está o governo.

Em seu discurso presidencial na American Economic Association, Olivier Blanchard defendeu o aumento do endividamento do governo em virtude das baixíssimas taxas de juros que prevalecem hoje. Para simplificar a discussão, foquemos no caso da dívida real. Nesse caso, para que a dívida seja absorvida pelo mercado, basta que ela não adquira um comportamento explosivo. Em um modelo dinástico, isso pode ser alcançado, por exemplo, através da estabilização da relação dívida/PIB, sob a hipótese de que a taxa de desconto relevante não seja menor do que a taxa de crescimento do PIB. Note que se a taxa de carregamento da dívida for menor do que a taxa de crescimento do PIB, mas a taxa relevante de desconto maior, então, o governo pode manter déficits permanentemente sem violar a condição de transversalidade que caracteriza a satisfação de sua restrição orçamentária [1].

É essa a motivação de Blanchard (ele usa, porém, um modelo de gerações superpostas) e, talvez, a principal rationale para o argumento de vários proeminentes economistas de que os níveis de endividamento atuais dos governos de países desenvolvidos não devem ser motivo de preocupação. Há duas limitações importantes dessa visão.

Em primeiro lugar, uma taxa de carregamento menor do que a taxa de crescimento da economia, r < g, abre um espaço fiscal, mas não elimina a restrição orçamentária. Por exemplo, se a dívida for 100% do PIB e r — g = 1%, isso quer dizer que mesmo que o governo tenha um déficit de 1% do PIB todos os anos, a dívida pública não crescerá como proporção do PIB. O problema é que os governos de vários países do mundo estão prevendo déficits substancialmente maiores para os próximos anos.

Uma segunda questão é que as expectativas sobre taxas de desconto, taxas de crescimento e superávits ou déficits futuros podem mudar rapidamente, fazendo com que o governo não mais consiga rolar a dívida.

Em resumo, minha visão é de que, em um momento de crise como o que vivemos agora, não devemos ficar obcecados com o cumprimento de metas fiscais quando despesas urgentes salvadoras de vidas precisam ser feitas e a taxa de juros está tão baixa. Por outro lado, não há almoço de graça. A trajetória de gastos prevista para a grande maioria dos países é incompatível com uma trajetória sustentável da dívida para quaisquer valores razoáveis de r — g . Há, na minha opinião, um sentimento geral de complacência com relação ao processo de endividamento que é bastante perigoso. Talvez seja hora de apresentar um plano fiscal crível capaz de manter a crença no cumprimento das promessas nos termos implicitamente acordados, para que não sejamos surpreendidos com uma eventual mudança de humor do mercado.

Notas de Rodapé

[1] Isso pode acontecer em um modelo dinástico, por exemplo, quando a dívida é um ativo com beta negativo, i.e., um ativo que covaria negativamente com o fator estocástico de desconto.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.