Nineteen Eighty-fortnite.

Emanuel Bissiatti
O Veterano
Published in
6 min readMay 19, 2021
Epic Games | Divulgação

Gigantes do ramo de tecnologia, Apple, responsável pelo iPhone, e Epic Games, desenvolvedora de jogos de sucesso — como Fortnite — , iniciaram uma batalha jurídica nos Estados Unidos; disputa essa que pode mudar os rumos do mercado mobile. No texto do processo, a Epic Games afirma:

“Em 1984, a novata companhia de computadores Apple lançou o Macintosh — o primeiro computador doméstico de massa acessível ao consumidor. O lançamento do produto foi anunciado com um comercial impressionante evocando 1984, de George Orwell que representa a Apple como uma força benéfica e revolucionária quebrando o monopólio da IBM sobre o mercado de tecnologias para computadores. Passamos para 2020, e a Apple se tornou contrária àquilo por que antes lutava: o gigante em busca de controle de mercados, bloqueando competição e enfraquecendo a inovação. A Apple é maior, mais poderosa, mais arraigada, e mais perniciosa que monopolistas do passado.”

Tudo começou em 2020 quando a Epic Games lançou uma campanha nos Smartfones que oferecia preços menores para quem comprasse os V-Bucks — moeda virtual do jogo Fortnite — diretamente pelo site da Epic, e não pela loja da Apple ou da Google. O problema é que esse modelo de pagamento vai contra os termos de uso da Apple Store e da Google play: toda venda realizada pelos aplicativos baixados nessas lojas precisam destinar 30% do valor para as respectivas empresas. Assim, ambas baniram o jogo das suas lojas. Felizmente, os usuários do Android não perderam o acesso ao jogo, já que é possível instalar aplicativos de outras lojas no ecossistema do Google. Mas, como o iOS não permite o download de aplicativos por outras fontes fora da loja oficial, o jogo foi banido dos dispositivos iOS.

Como resposta, a Epic Games não só processou a Apple como também a provocou. Assim que o jogo foi banido, a desenvolvedora lançou uma propaganda satirizando o comercial do primeiro Macintosh de 1984. Na época, a marca criticava o monopólio da IBM, comparando-a ao livro 1984, de George Orwell, que narra uma distopia onde as liberdades são totalmente reprimidas por uma ditadura. O ‘Grande Irmão’, líder do regime, ordena a instalação de câmeras sobre toda a sua população, inclusive dentro da casa de cada indivíduo, e determina como esta deve pensar e agir: se o líder determina que 1 + 1 = 3, os cidadãos são obrigados a seguir a decisão e esquecer do significado de 1 + 1 = 2. Em paralelo à realidade, ambas as propagandas — da Apple e, mais recentemente, da Epic Games — criticam o controle da informação e do mercado, comparando as empresas rivais ao “Big Brother” do livro. A seguir, destacamos a mensagem no comercial de Fortnite direcionada a Apple:

“Epic Games desafiou o monopólio da App Store. Em retaliação, a Apple está bloqueando Fortnite em um bilhão de dispositivos. Junte-se à luta para impedir que 2020 se torne ‘1984”

Em entrevista ao portal IGN, o diretor do comercial 1984 da Apple afirmou que o ato da Epic Games não transmite uma mensagem revolucionária; pelo contrário, eles poderiam tocar em temas até mais importantes: “Eu acho que a animação foi ótima, a idéia foi fantástica, a mensagem foi ‘ehh’.” Neste ponto, faz-se necessário comparar ambos comerciais. Enquanto a Apple era uma estreante no mercado de PCs quando atacou o monopólio da gigante IBM, o jogo Fortnite já era um grande sucesso — estando disponível em outras plataformas e gerando um lucro absurdo para a Epic — quando criticou a gigante de tecnologia. Porém, o monopólio de software da Apple Store sobre o iOS, obrigando o pagamento de 30% sobre qualquer receita nos aplicativos, não prejudica só a Epic Games: todos aplicativos lançados na loja virtual são reféns dessa prática abusiva, e são poucas empresas com recursos para processar a Apple.

São esses os antecedentes do julgamento que se iniciou neste mês, nos Estados Unidos. “Vamos mostrar, sem ambiguidade, que a Apple exerce um monopólio”, disse a advogada da Epic Games, Katherine Forrest, no discurso de abertura do processo. A fabricante do iPhone se defende: “A Apple não criou um ecossistema seguro e integrado para afastar as pessoas, mas sim para poder convidar desenvolvedores, sem comprometer a privacidade, a confiabilidade e a qualidade que os consumidores desejam”, disse Karen Dunn a advogada de defesa. Para a empresa, possuir uma única loja é a essência do iPhone e traz segurança para os clientes. Todos os aplicativos disponíveis na Apple Store são anteriormente inspecionados para evitar vírus e golpes, e, sem esse sistema fechado, ela não pode garantir essa segurança aos seus clientes.

A advogada complementou: “A Apple é tão monopolista quanto uma mercearia que vende uma ampla gama de produtos, competindo com outras lojas”. Pela lógica da defesa, a Epic Games é livre para publicar o seu jogo em outras plataformas que cobram menores taxas. Vale notar, no entanto, que nem todas as pessoas possuem acesso às outras plataformas: o 1 bilhão de usuários do sistema iOS — dentre eles muitas crianças — ficaram impedidas de jogar Fortnite. Afinal, o mercado de Smartfones se divide atualmente em dois principais sistemas operacionais — iOS e Android — , de modo que, na visão da Epic, não seria justo que no sistema da Apple todos os desenvolvedores fiquem reféns dos termos de uso abusivos da loja.

Outra alegação da Apple contra a Epic Games diz respeito ao fato de que Microsoft, Sony e Nintendo — fabricantes de consoles — também vendem as moedas de Fortnite em suas lojas com uma taxa de 30% sobre qualquer transação. Ademais, embora as fabricantes imponham essa taxa, as desenvolvedoras ainda podem vender seus jogos em mídia física para os consoles, bem como os códigos dos jogos que dão acesso ao dinheiro virtual. Já no PC — inclusive no Mac, da Apple -, a Epic é livre para vender e publicar os seus jogos como e onde quiser. A própria Epic Games possui uma loja no PC onde cobra uma taxa de 12% sobre os desenvolvedores a cada venda.

Ainda assim, a Epic Games alega que os termos de uso da Apple são contraditórios. No ano passado, a Microsoft, dona do Xbox, queria lançar sua plataforma de streaming de jogos — a Xbox Game Pass, uma espécie de “Netflix de games” — no iPhone, mas a fabricante negou. Isso porque, além da taxa de 30% sobre a assinatura, a Apple obrigaria que cada jogo do serviço da Microsoft passasse pelo controle de qualidade da sua loja virtual. Porém isso seria contraditório na medida em que a Apple permite que Amazon, Netflix, Disney e outros lancem seus aplicativos de Streaming de filmes na plataforma. Será que antes de serem lançados nestes serviços todos os filmes passam pelo controle de qualidade da loja? Ou a maçã quer manter o seu monopólio dos games disponíveis no iPhone, com sua própria assinatura que garante acesso a alguns jogos da loja? Nesse sentido, para não perder seus possíveis clientes, a Microsoft teve que disponibilizar o acesso ao Xbox Game Pass pelo navegador do iPhone com uma considerável perda de qualidade quando comparado ao aplicativo disponível no Android.

Além disso, em uma sessão, evidências do caso mostram que a própria Microsoft teve problemas com o pagamento da App Store em 2012. Representantes da fabricante de software Windows perguntaram à Apple se os usuários poderiam assinar o Office pelo próprio site da Microsoft — ao invés de usarem o aplicativo para iPad — para garantir uma interface de usuário consistente. A Apple, no entanto, rejeitou esse pedido, apesar da Microsoft dizer que ainda pagaria uma comissão à fabricante de celulares.

Nessa sessão, a Juíza então responsável pelo caso até sugeriu um acordo entre as empresas: a App Store permitiria que os aplicativos tivessem duas opções de pagamento, uma dentro da loja, com a comissão, e em uma outra plataforma de pagamento. Porém, ambas as empresas negaram o acordo. A Epic alegou que nem todos os aplicativos possuem um duplo sistema de pagamento. Já a dona do iPhone afirmou que isso prejudicaria a comissão da empresa, uma vez que subestimaria uma possível venda da loja.

Assim, a disputa judicial entre duas gigantes de tecnologia continua. Caso vença, a Apple continuaria com a sua grande influência no setor mobile. Caso a Epic vença, o mercado deve mudar: outras empresas, como Microsoft, Netflix e Spotify, entrarão em disputas judiciais contra a Apple para obter mais lucros. O futuro ainda é incerto, mas o resultado desse julgamento com certeza vai balançar o mercado.

--

--

Emanuel Bissiatti
O Veterano

Aluno de Matemática Aplicada da FGV. Amante de tecnologia, jogos de tabuleiro, jogos eletrônicos e cinema.