Nosso Lugar à Mesa

Precisamos falar sobre representatividade feminina no mundo do trabalho

Luisa Curcio
O Veterano
7 min readDec 17, 2020

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Tirinha da Mafalda disponível em Folha de São Paulo.

Você provavelmente já ouviu essa história, mas vamos lá. Pai e filho sofrem um grave acidente, tão grave, que, quando a ambulância chega, o pai já está morto. Já o filho é levado ao hospital e, quando chega, a pessoa mais competente do centro cirúrgico diz: “Não posso operar esse menino! Ele é meu filho!”. Lembro de ler esta história quando viralizou e pensar, como muitos, que o pai teria um parceiro ou, como outros, que o pai, na verdade, não estaria morto, ou mesmo que se trataria do avô. Eu, que leio sobre mulheres, que me esforço para desconstruir estereótipos de gênero diariamente; eu, que sou mulher, lembro de ter me envergonhado, no meu subconsciente, de não ter notado, no que ficou conhecido como enigma do acidente na época, que se tratava da mãe. Sim, uma mulher, em posição de liderança, é a pessoa mais competente do centro cirúrgico — e nem mesmo nós mulheres conseguimos destrinchar este enigma que, no fundo, não tem nada de enigmático.

Em tradução livre: “O mal da grande família humana é que todos querem ser o pai.” Tirinha da Mafalda disponível no site.

Se você também não pensou na opção de ser uma mulher, não tem motivo para sair correndo para ler o box de O Segundo Sexo de Beauvoir — não ainda -, uma vez que a ciência explica o que é este não reconhecimento de várias maneiras diferentes. Uma delas é começar por algo que as e os macroeconomistas chamam de “Expectativas Racionais”, forma bonita de dizer que tomamos o que aconteceu no passado para prever o futuro. Na macroeconomia, prevemos variáveis como o desemprego, inflação, salário; aqui, podemos falar sobre como as mulheres internalizam o que veem para prever seu próprio futuro: e o que veem são homens no poder. Ao fazerem isso, não apenas projetam seu futuro de maneira significativamente menos ambiciosa que os homens, mas essas expectativas, também a exemplo do que podemos ver no mundo da macroeconomia, se auto realizam em muitos dos cenários — se não a maioria.

Para tornar a situação mais clara, é possível citar diversos artigos que estudam o papel dos estereótipos de gênero como grande enfraquecedor da ambição de mulheres em sua trajetória acadêmica e/ou profissional. Shapiro e Williams mostram como esses padrões podem moldar, em uma escala micro, a performance feminina em testes de matemática acompanhados de cabeçalho para preencher o sexo e, mais a frente, os interesses desse grupo em áreas relacionadas à própria matemática, tecnologia e engenharia em suas escolhas de carreira. Na minha experiência, na medida em que subimos na escala acadêmica (ensino médio, graduação, mestrado e doutorado) no mundo da economia, a predominância de homens nesses espaços se torna cada vez mais explícita. Dessa forma, quanto mais masculino é um ambiente, menos as integrantes do sexo feminino esperam se realizar e alcançar cargos de poder nos mesmos, de forma que essas expectativas se autorrealizam e, de fato, tenhamos menos mulheres ocupando cargos de liderança em todas as áreas e empresas mundo afora — e se falamos de mulheres não brancas, o problema se agrava significativamente.

Por esse motivo — e também outros -, representatividade importa. Quanto mais mulheres ocuparem espaços corporativos e acadêmicos, mais mulheres vão se projetar ocupando espaços similares, e cada vez mais teremos lideranças femininas preparadas e se auto realizando.

Só tem um problema: o que os homens ganham com isso? Já que faltam alguns poucos períodos para me formar em economia, preciso pensar como economista: de maneira pragmática e, por vezes, utilitarista, como nossa reputação dita. Por isso, o equilíbrio tem que ser melhor para todos e, se pioramos a situação dos homens para melhorar a das mulheres, não temos um equilíbrio de Pareto [1], não é? Herring mostra que, na verdade, a diversidade tanto de gênero quanto racial está relacionada a melhores desempenhos (como aumento do faturamento das vendas, maior número de clientes e maior lucratividade) em empresas com maior predominância dessas características. Nesse sentido, times com maior diversidade na sua força de trabalho têm acesso a uma quantidade maior e mais diversificada de pontos de vistas e, por isso, possuem maior potencial de crescimento relativamente àqueles que não o possuem.

Imagem disponível em Unsplash.

Então, solucionamos o problema! Incluímos mais mulheres em nossas equipes e o mundo virou um grande jardim igualitário, não é? Não exatamente. Como mostram Mannix e Neale, o potencial de uma equipe mais diversa pode ser prejudicado por falhas de comunicação; isto é, muitas vezes pessoas de grupos minoritários tendem a se refrear na hora de compartilhar suas opiniões — em especial se estas divergem da opinião majoritária — por falta de confiança ou por não se sentirem completamente à vontade no ambiente em que se encontram.

Nesse ponto, é importante falar sobre inseguranças. No caso das mulheres, a mesma consciência em relação a seu sexo que as faz performar pior em testes de matemática, como nos mostra o mencionado artigo de Shapiro e Williams, também faz com que guardem suas opiniões para si, com receio de sofrerem retaliação ou não serem levadas a sério. Além disso, como mostra Beyer, quando estão diante de pessoas do sexo masculino, as mulheres tendem a se subestimar e frases como “me esforcei muito” ou “tive muita sorte/ajuda” são usadas no lugar de outras, mais comuns entre os homens, que atribuem o sucesso a características inerentes e não externas, como “sou muito inteligente”. Isto é, pessoas do sexo feminino reprimem suas opiniões diante de grupos majoritariamente masculinos por subestimarem sua própria capacidade intelectual, algo que é socialmente construído.

O relatório A Business Case For Women, produzido por Desvaux, Devillard-Hoellinger e Meaney em 2008, nos mostra que, na hora de aplicar para uma vaga de emprego, essa síndrome de impostor também se faz presente. A pesquisa mostrou que mulheres só se candidatam a vagas e novas funções se atenderem a 100% dos requisitos para a posição. Por outro lado, os homens se satisfazem com apenas 60%. Em uma escala muito maior, pense que homens se mostram, do ponto de vista das empresas, mais dispostos a aprender fazendo, enquanto as mulheres receiam não estarem prontas para a vaga se não acham o match perfeito — mesmo que sejam tanto ou mais qualificadas que os homens.

Nesse sentido, mesmo que incluamos as mulheres em nossos times e tornemos o ambiente confortável o suficiente para que compartilhem suas opiniões, ainda corremos o risco de não estarmos contratando as pessoas corretas para a vaga dado que, muitas vezes, elas nem chegam a se candidatar. E mesmo que se candidatem, outros entraves podem aparecer.

Um estudo de caso da Universidade de Administração de Harvard descrito por Sheryl Sandberg, chefe de operações do Facebook, no seu livro Faça Acontecer nos explica mais a fundo que entrave seria esse. A pesquisa, conduzida em 2003 pelos professores Flynn, da Escola de Administração de Columbia, e Anderson, da Universidade de Nova York, visava montar um experimento para reportar como homens e mulheres reagiam aos nomes “Heidi” (feminino) e “Howard” (masculino) diante de um currículo com as mesmas características: extroversão, vasta rede de contatos profissionais e pessoais, incluindo diversos líderes em outros setores, entre outros atributos. Metade da turma leu um caso, metade leu o outro, um questionário foi feito e, ao reportar suas percepções sobre Heidi e Howard, a versão masculina performou melhor em termos de quem seria mais agradável, enquanto Heidi foi vista como egoísta e o tipo de pessoa com quem ninguém gostaria de trabalhar. Nesse sentido, mesmo que as histórias e as capacidades cognitivas e relacionais sejam similares, as características normalmente vistas nos homens como potencializadoras de sucesso apresentam, no caso das mulheres, uma correlação negativa com a possibilidade de bom desempenho.

Por isso, representatividade importa. Se colocamos mais mulheres em posições de poder, cada vez mais esses problemas serão tratados com a seriedade que deveriam — e o mesmo serve para outras questões de diversidade, como a racial. Um episódio simples que retrata isso é contado por Sandberg em seu livro: foi apenas quando engravidou, na época em que trabalhava na Google, que notou a falta de vagas para grávidas no estacionamento da empresa. Quando levou o problema a seus líderes, eles prontamente concordaram em fazer a modificação. Por outro lado, foi preciso Sheryl ocupar uma posição mais elevada para reclamar seu direito — e, consequentemente, das demais grávidas — à vaga, enquanto mulheres em posições mais baixas talvez não tivessem voz ativa para fazer o mesmo.

Apesar dos muitos entraves aqui relatados, podemos dizer que nós, mulheres, já obtivemos grande salto em termos de ocupação de espaços de trabalho. Contudo, o que relato aqui é apenas uma pequena parte desses problemas, nem falamos sobre dupla jornada! De qualquer forma, alguma conclusão podemos tirar: precisamos ocupar mais espaços, mesmo que seja difícil lidar com o peso de não se sentir parte deles em muitos momentos — e o mesmo serve para outras minorias.

Mas, como vimos, querer nem sempre é poder e, por isso, precisamos também que os e as líderes atuais do mundo do trabalho percebam a urgência — e a lucratividade, se vamos falar de maneira bastante utilitarista — de contratar equipes mais diversas e de fazer ações afirmativas para captar essas pessoas e incentivar a sua permanência. Luiza Trajano, presidente do Magazine Luiza, defende a existência de cotas para mulheres em conselhos administrativos, por exemplo. Dentro da própria empresa, Luiza ainda implementou um sistema de apoio psicológico aos maridos para incentivar mais lideranças femininas em lojas da rede, além de assegurar que as mesmas funções recebam os mesmos salários, independentemente do gênero. É um caminho longo, mas temos que começar de algum lugar.

Imagem disponível em Unsplash.

Notas:

[1] Conceito econômico que diz que “Uma situação econômica é ótima no sentido de Pareto se não for possível melhorar a situação, ou a utilidade, de um agente, sem degradar a situação, ou utilidade, de qualquer outro agente econômico”

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Luisa Curcio
O Veterano

Estudante de economia na FGV EPGE e cofundadora do jornal estudantil da FGV Rio O Veterano.