Skyline de Nova York. Foto por Oliver Niblett, disponível no Unsplash.

Nova York no olhar de Fran Lebowitz

‘Faz de conta que é uma cidade’

Gabriel Thomas
O Veterano
Published in
7 min readMay 5, 2021

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Dai-me os seus fatigados, os seus pobres,

As suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade

O miserável refugo das suas costas apinhadas.

Mandai-me os sem abrigo, os arremessados pelas tempestades,

Pois eu ergo o meu farol junto ao portal dourado.

– De ‘O Novo Colosso’, por Emma Lazarus

Escrito em 1883 por Emma Lazarus, o poema O Novo Colosso foi produzido visando à arrecadação de fundos para a construção do pedestal d’A Liberdade Iluminando o Mundo, escultura de bronze colossal que ficaria popularmente conhecida como a Estátua da Liberdade. A intenção da autora foi salientar a visão dos Estados Unidos da América como a pátria-mãe dos exilados que acreditavam na promessa de uma terra de oportunidades e liberdades, e que chegavam ao porto de Nova York para lutar pelo american dream. Assim, liberdade sempre foi tida como sinônimo da metrópole nova-iorquina, e muitas são as interpretações a seu respeito. Dessa imensidão de visões, poucas se distinguem tanto quanto a percepção da escritora e humorista Fran Lebowitz, conhecida pela sua natureza irreverente e cujo olhar afiado muito pode nos ajudar a compreender o mundo ao redor — especialmente os grandes centros urbanos.

Estátua da Liberdade. Foto por Riccardo Manieri, disponível no Unsplash.

Nascida em 27 de outubro de 1950 na cidade de Morriston, Nova Jersey, Frances Ann Lebowitz teve uma infância pacata e marcada pela descoberta do seu amor pelos livros, mas uma juventude no mínimo conturbada. Expulsa do colégio no ensino médio, Fran se mudou para Nova York aos 18 anos para tentar a sorte como escritora, mas se viu obrigada a trabalhar como taxista, chofer, faxineira e ambulante para pagar suas contas — até que conseguisse um emprego na revista Changes, aos 21, e, posteriormente, se tornasse colunista da revista Interview, de Andy Warhol. Assim, a promessa de Nova York enquanto terra das oportunidades e da liberdade artística levaram-na a migrar para a cidade que nunca dorme.

Recentemente, foi lançada na Netflix a série documental Pretend it’s a city (“Faz de conta que NY é uma cidade”), dirigida por Martin Scorsese — amigo íntimo de Fran — e que explora a visão de mundo da escritora sobre os mais diversos temas. Quando perguntada sobre o que há em Nova York que leva tantos jovens a se mudarem para lá até os dias de hoje, Fran responde:

“O que não há aqui? É assim que devemos ver. […] Uma das razões para pessoas da nossa idade virem se fossem gays era porque eram gays. Agora pode-se ser gay em qualquer lugar. Mas viemos porque não podíamos morar em outros lugares. E isso criou uma densidade de homossexuais raivosos, o que é sempre bom para uma cidade.”

A forma única e irreverente de Fran ao observar o mundo e se expressar — jamais abrindo mão do humor e do sarcasmo — foram determinantes para seu sucesso enquanto autora e intelectual, bem como para que fizesse amizades com pessoas influentes das artes e da indústria do entretenimento norte-americana. Sua lista de amigos inclui nomes como Malcom Forbes, Toni Morrisson, Mick Jagger, Anna Wintour, David Bowie, Diane von Fürstenberg e Martin Scorsese, revelando assim sua posição privilegiada na observação das transformações culturais das últimas décadas. Sua convivência com artistas de todos os tipos inclusive a levou a uma interessante conclusão sobre o que é talento:

“O que os escritores, pintores e outros artistas mais precisam é de talento. E o melhor sobre talento é que é a única coisa que é absolutamente distribuída aleatoriamente pela população do mundo. […] E é provavelmente por isso que as pessoas estão sempre — especialmente neste país — procurando explicações para o sucesso […] além de talento. Porque é enfurecedor para as pessoas.”

Seu entendimento sobre talento como algo determinístico é bastante revelador de sua própria profissão. Desde que entrou em um bloqueio criativo — que a impede de publicar desde 1994 –, Fran tornou-se uma ‘julgadora profissional’. Ironicamente, ela já atuou como juíza tanto na série televisiva Law and Order quanto no filme O Lobo de Wall Street, dirigido por Scorsese. Nesse sentido, sustentando-se principalmente por meio de palestras e aparições em talk shows, a intelectual sarcasticamente afirma no documentário Public Speaking, de 2010: “É o que eu sempre quis. Pessoas pedindo minha opinião e impedidas de me interromper”. Apesar de extensivamente (auto)taxada como ‘preguiçosa’ por ser uma escritora que não publica, seu editor acredita que seu bloqueio criativo é na realidade produto de sua “reverência excessiva pela palavra escrita”. Assim, a julgadora profissional é sobretudo julgadora de si mesma, ao não se considerar à altura da palavra escrita.

Fran Lebowitz na New York Fashion Week. Foto por EventPhotosNYC, disponível no link (CC License).

Grande crítica da noção de ‘prazer culposo’, e defensora da importância de se divertir, Fran afirma que odeia dinheiro, mas que ama ter coisas. Sejam móveis, roupas, livros ou jantares, a escritora se considera gastadeira, por vezes deixando em segundo plano as preocupações de como pagar por aquilo que tem. Ela afirma: “Nunca na minha vida fiquei empolgada com dinheiro. […] Um dos requisitos para ganhar muito dinheiro é amá-lo. […] Para mim, há dinheiro suficiente. Ter dinheiro suficiente é conseguir pagar por tudo que eu tenho.”. Sua aversão ao dinheiro é um reflexo da crítica de Fran à cultura do dinheiro. Segundo a escritora, “Se você for a um leilão, entra um Picasso na sala, silêncio absoluto. Quando o martelo bate, aplausos. Vivemos num mundo em que aplaudimos o preço e não o Picasso.”

A crítica de Lebowitz à cultura do dinheiro também se aplica à forma como ela entende as mudanças pelas quais a cidade de Nova York vem passando nas últimas décadas. Questões como a gentrificação e a crescente influência do dinheiro na administração da cidade — como na gestão do ex-prefeito bilionário, Michael Bloomberg, por exemplo — são denunciadas pela escritora. Para ela, Nova York deveria ser administrada como uma cidade, e não como destino turístico lucrativo para os bilionários que moram no Upper East Side, distantes da confusão da Times Square. Nesse sentido, Fran afirma: “Para mim, não há nada mais emblemático da mudança em Nova York do que a banca de jornal que ficava aberta 24 horas por dia, em Columbus Circle, ter virado uma locadora de bicicletas.”

Essa intensa transformação de Nova York em um dos principais destinos turísticos do mundo é vista com ressalvas por Fran uma vez que a cidade — que deveria servir primordialmente à sua população — teria se tornado abarrotada de turistas que atrapalhariam a movimentação urbana e em nome dos quais a prefeitura destinaria verbas volumosas para projetos meramente estéticos– e, na visão de Fran, de natureza questionável –, enquanto problemas estruturais permanecem ignorados, apesar de afetarem diretamente os nova-iorquinos. Enquanto gravava as cenas da série documental para a Netflix, Fran andava pelas ruas e avenidas de Nova York e recorrentemente se via bloqueada por uma massa de turistas atrapalhando o caminho e mexendo no celular; nesses casos, seu sarcasmo tomava conta e ela gritava “Ande! Faz de conta que é uma cidade!”, e assim surgiu o título da série.

Com mais irlandeses do que Dublin, mais italianos do que Nápoles, mais judeus do que Tel Aviv e mais porto-riquenhos do que San Juan, a cidade de Nova York é o maior centro cosmopolita do mundo contemporâneo. Apesar de não ser propriamente uma carta de amor à cidade, a série Pretend it’s a city apresenta o olhar aguçado que apenas uma moradora como Fran Lebowitz poderia direcionar à cidade — do qual tantas outras cidades acabam carecendo — , e nasce sobretudo do amor que ela nutre pela cidade; afinal, quanto maior o apreço, mais crítico tende a ser o julgamento — ainda mais quando se trata de uma julgadora por profissão. Nesse sentido, a única certeza a respeito da cidade que nunca dorme, com todas as suas contradições, peculiaridades e promessas de liberdade, é a de que ela já não será mais a mesma quando o Sol se for.

Confira aqui um vídeo de Fran Lebowitz mencionando a produção da série no The Tonight Show, com Jimmy Fallon:

Referências:

PRETEND It’s a City [TV Mini Series]. Direção: Martin Scorsese. Produção: Fran Lebowitz, Josh Porter, Martin Scorsese, David Tedeschi, Ted Griffin, Emma Tillinger Koskoff, Margaret Bodde. Nova York: Netflix, 2021. 203 min, color.

LANKEVICH, George. “New York City: New York, United States”. Britannica, 1998. Disponível em: https://www.britannica.com/place/New-York-City/additional-info#history. Acesso em 01/05/2021.

SAYEJ, Nadja. “Fran Lebowitz To Fleeing New Yorkers: “Don’t Come Back. Ok?””. Forbes, 2021. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/nadjasayej/2021/01/13/fran-lebowitz-to-exiled-new-yorkers-dont-come-back-ok/?sh=12dfe236ffa3. Acesso em 02/05/2021.

SCHULMAN, Michael. “Fran Lebowitz Is Never Leaving New York”. The New Yorker, 2020. Disponível em: https://www.newyorker.com/culture/the-new-yorker-interview/fran-lebowitz-is-never-leaving-new-york. Acesso em 01/05/2021.

POESIAS Preferidas. “O Novo Colosso — Emma Lazarus”. Poesias Preferidas, 2013. Disponível em: https://poesiaspreferidas.wordpress.com/2013/07/22/o-novo-colosso-emma-lazarus/. Acesso em 04/05/2021.

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