O cinema e suas articulações

Iasmim Matias
O Veterano
Published in
5 min readMar 17, 2021
Fonte: unsplash

No final do século XIX, houve uma transformação no mundo da arte que perpassa até os dias atuais: o cinema. Inicialmente, as produções utilizavam máquinas fotográficas que conseguiam tirar fotos em sequência, resultando em imagens que transmitiam a sensação de movimento. Um dos primeiros filmes conhecido pelos amantes da cinematografia foi transmitido no dia 22 de março de 1885, quando os irmãos Lumiére apresentaram uma de suas primeiras produções: “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”.Tal momento ficou marcado para sempre na história do cinema, sendo inclusive reproduzido diversas vezes.

Apesar de ser uma apresentação de apenas 60 segundos, esse filme foi transmitido em diversas reuniões públicas por se tratar da “primeira produção cinematográfica”. Diferentemente do que esperamos de um longa-metragem atualmente, os primeiros filmes apresentavam cenas do cotidiano, sem encenações e tampouco dramas. Com o passar do tempo, o cinema se transformaria nesse espaço de histórias a serem contadas que conhecemos nos dias de hoje.

Os filmes se transformam à luz dos movimentos que a sociedade faz. Afinal, o cinema é utilizado como utensílio de comunicação. Na Alemanha Nazista, por exemplo, o cinema era regularmente utilizado por Adolf Hitler como instrumento de propaganda. Filmes documentais produzidos nesse contexto divulgavam aos alemães a representação do nazismo, sendo o mais conhecido dentre esses o “Triunfo da Vontade”. No caso brasileiro, o Cinema Novo tinha como propósito em suas produções criticar as desigualdades sociais e raciais nas décadas de 1960 e 1970.

Cinema e mulheres

O cinema, como outros mercados de trabalho, foi formado por homens durante muito tempo. No entanto, este texto pretende mostrar como o cinema foi — e ainda é — um instrumento de resistência quando colocado nas mãos de mulheres.

Apesar de o cinema ser atualmente conhecido como forma de entretenimento, por muito tempo foi utilizado por mulheres para denúncias, exposições de pensamento e resistência. O Centre Audiovisuel Simone de Beauvoir apresenta um grande armazenamento de filmes importantes, feitos por mulheres, no qual podemos encontrar filmes produzidos por um coletivo chamado Les insoumises. Musas Insubmissas, traduzido para o português, era um coletivo de mulheres que criavam produções audiovisuais como forma de denúncia. O cinema ainda era precário para a presença de mulheres e uma das fundadoras do coletivo, Carole Roussopoulos, foi responsável por workshops ensinando os processos de um filme.

Institut Français. A direita, de camisa preta, é Carole. A esquerda, de camisa branca, é Delphine.

Mesmo tendo localização na França, os filmes produzidos pelo coletivo não tinham apenas o objetivo de relatar o que acontecia na Europa. É o caso do filme “Inês”, produzido pela cineasta Delphine Seyrig em 1974, que relata os abusos sofridos por uma jovem chamada Inês em uma prisão clandestina na ditadura militar brasileira. O filme sequer é conhecido no Brasil, mas de fato são cenas marcantes de um período histórico, que relata o sofrimento de uma mulher enquanto esteve confinada em uma prisão clandestina em Petrópolis, Rio de Janeiro.

Pela falta de dinheiro, o coletivo recorria a montagens sobre outros filmes e programas de TV para mostrar como a sociedade era misógina e sexista. A estética dos filmes, por sua vez, tinham características dramáticas, como no caso de Inês, ou cômicas, relatando as falas pronunciadas em rede nacional. Nesse momento, o cinema não era mais um lugar apenas de narrar romances e encenações ou imagens do cotidiano: passava a ser forma de resistência de grupos sociais marginalizados.

Cinema, atualidade e pandemia

Notamos que o cinema consegue se articular de várias formas a partir do movimento social no qual está inserido. Desde 2014, o Núcleo de Audiovisual e Documentário da FGV CPDOC oferece uma oficina de produções de filmes em determinada temática, sendo ofertado em 2020 com a seguinte descrição: “Cinema em tempos de confinamento”.

O primeiro filme decorrente da oficina chama-se “Ele tem uma carinha braba”, de Vanessa Rodrigues. Diferentemente do início da produção audiovisual, ou de 1970 — como abordado nos tópicos acima -, o curta é gravado com um celular e por familiares, sobretudo porque se passa em tempos de isolamento social. Retratam-se ao longo da produção quatro crianças que falam sobre suas percepções sobre o Covid-19 para além do cotidiano — como o ato de lavar as máscaras -, e o título do filme se origina da fala de uma delas: “Ele tem uma carinha braba”. As crianças relatam como é estar em isolamento social, com aulas online, que certamente estão achando entediantes, e citam a palavra saudade. Assim continua o diálogo entre a diretora e os participantes.

O outro filme, chamado “Grupo de risco”, trata sobre os aspectos políticos e sociais da pandemia. Ao decorrer do curta, a diretora argumenta que a principal causa do isolamento social é a preservação da vida perante o novo coronavírus. Em contraponto, ela comenta sobre as operações policiais que aconteceram durante os 100 dias de confinamento. A questão pautada no filme é a desigualdade racial, sobretudo por se tratar de uma mulher negra na produção. Nesse sentido, ela pergunta “para nós, quais são as recomendações?”, com a argumentação de que grupo de risco em um país como o Brasil é ser pobre e preto. A partir dessa produção audiovisual, de apenas 11 minutos, conseguimos criar laços de questionamento sobre (1) quem são os mais afetados pelo vírus, e (2) como o Estado lida com essas questões, mostrando que o COVID-19 não é imparcial como dizem.

Assim, a produção do cinema ultrapassou o objetivo inicial de ser apenas uma transformação das fotos estáticas em dinâmicas e se tornou, ao longo dos últimos 114 anos, mais acessível, como forma de relato e de denúncia, não como espetáculo, e sim como resistência de grupos sociais. De fato, o cinema ainda é uma forma de descontração e lazer, mas até isso é transformado quando conseguimos assistir aos filmes não com o telão, mas sentados na sala de casa com a televisão.

Referências Bibliográficas

BLANK, Thais Continentino. MACHADO, Patricia Furtado Mendes. Musas insubmissas: Estudo de “Inês” (1974), um filme de coletivo sobre uma presa política brasileira. 2020. Revista Ecopós. Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação — https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175–8689 — v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27608

CÁU, Maria Santos Castanho. Quem Decide As Histórias Que Vão Ser Contadas? Algumas palavras sobre o volume “Mulheres atrás das câmeras” e o apagamento do cinema brasileiro feito por mulheres.

Centre Audivisuel : https://www.centre-simone-de-beauvoir.com/

Institut Françai : https://www.institutfrancais.es/barcelona/evento/elles-francophones-delphine-et-carole-insoumuses-2/

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