O jogo do (meio) século

Kaio Torres Dias
O Veterano
Published in
8 min readAug 4, 2021

Como os videogames tornaram-se um fenômeno mundial

Imagem de joatseu por Pixabay

Quando a abertura das Olimpíadas de Tóquio terminou, muitos eram os elementos que os telespectadores analisaram– as coreografias, as delegações com trajes variados, o globo terrestre formado por drones -, mas para uma parcela da audiência houve um aspecto que chamou maior atenção: a música. A trilha sonora épica da abertura do evento esportivo mais importante do planeta foi composta por músicas das principais franquias japonesas de videogames. Isso, assim como o icônico surgimento do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, vestindo o chapéu do Mario no encerramento das Olimpíadas de 2016, lembra ao mundo do impacto cultural dos jogos eletrônicos.

Uma semana antes, do outro lado do mundo, a Netflix anunciou que começaria a produzir e distribuir jogos a partir de suas assinaturas. Apesar do estranhamento inicial causado pela notícia, não há como negar a racionalidade de tal empreendimento. Segundo dados da International Data Corporation (IDC), em 2019 a indústria de videogames obteve uma receita de U$150,2 bilhões — superando os rendimentos dos mercados de filmes e séries (U$101 bilhões) e de música (U$20,2 bilhões) combinados. Dessa forma, não é exagero dizer que os jogos eletrônicos possuem um lugar de destaque na indústria do entretenimento de um ponto de vista comercial.

Pong foi um dos mais icônicos jogos dos anos 70 (Imagem de Eric Perlin por Pixabay)

De Massachusetts ao Japão: a origem do mercado de videogames

Tais informações nos dizem muito sobre o mercado atual e levantam uma interessante questão: como uma indústria que há poucas décadas era vista como infantil e quase sucumbiu à falência alcançou os níveis presentes de importância? Essa é uma pergunta complexa que demanda um resumo da história desse produto de popularidade ascendente. Retornamos então ao ano de 1961, aos laboratórios do Massachusetts Institute of Technology (MIT).

Nessa universidade, um grupo de estudantes desenvolveu o software que viria a ser considerado o primeiro videogame de distribuição ampla da história: Spacewar!. O jogo, que simula uma batalha espacial, se tornou um marco e espalhou-se rapidamente para outras universidades, mas as limitações técnicas da época e o alto preço dos computadores impediram que ele atingisse um público maior. Seria apenas na década seguinte que os avanços na área da computação permitiriam que a produção em larga escala de videogames começasse, permitindo que tal produto chegasse a um público mais amplo.

Nesse período, surgiram os primeiros jogos com temáticas variadas, mas a grande inovação veio pela inserção dos arcades e consoles no mercado, ação esta foi liderada pela primeira grande empresa ocidental de jogos: a Atari. Devido ao acesso facilitado e à produção crescente, a popularidade dos videogames chegou a níveis inéditos ao redor do mundo, assim como o valor de sua indústria, com sua empresa líder conquistando relevância no mercado e no imaginário popular. No entanto, uma década depois, o mercado de jogos presenciaria sua primeira crise, esta motivada em parte pelos mesmos fatores que causaram a ascensão deste ramo do entretenimento.

A facilidade da produção de jogos e a atratividade da indústria haviam aumentado a um ponto no qual dúzias de empresas inundaram as lojas com produtos de qualidade questionável. Assim, devido a problemas de assimetria de informação e de excesso de oferta, os preços dos videogames e a confiança dos consumidores despencaram, levando à queda do valor do mercado de U$42 bilhões, em 1982, para U$12 bilhões, em 1985. Um símbolo marcante dessa época foi o enterro de centenas de milhares de cartuchos de jogos da Atari no Novo México, medida motivada pela simples ausência de demanda pelos produtos da empresa — o marco de uma indústria que parecia próxima do seu fim.

Entretanto, como se sabe, a história não acabou na década de 80. Nos EUA, ascensão de computadores pessoais cada vez mais avançados — como o Commodore Amiga e o IBM PC — viria a tornar tais máquinas as mais importantes plataformas de videogame do país. Enquanto isso, do outro lado do mundo, o Japão passava pela crise quase intocado. A presença dos jogos eletrônicos no país se consolidaria com o lançamento do produto responsável por reviver o mercado mundial de consoles: o Famicom, ou, como viria a ser chamado no Ocidente, o Nintendo Entertainment System (NES). Em poucos anos, a introdução desse console no mercado daria nova vida a uma indústria, elevando-a a patamares inéditos de popularidade e lucratividade.

Desde então, cada aspecto do mercado de videogames foi alterado muitas vezes — consoles portáteis surgiram, perderam público e retornaram; competições passaram a ocorrer em estádios com público visando prêmios milionários; os cartuchos se tornaram CDs, que gradualmente estão cedendo aos downloads e, agora, ao streaming. Logo, seria impossível detalhar em um único texto tudo o que ocorreu durante a transformação dos jogos eletrônicos no fenômeno que são hoje. No entanto, é possível explicar como os videogames atingiram sua atual popularidade em dois termos: acessibilidade e diversidade.

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That Dragon, Cancer aborda o tema sensível do câncer (Imagem por BagoGames em Flickr)

Entre tecnologia e arte: o que tornou os jogos eletrônicos tão populares?

Por um lado, qualquer pessoa com acesso aos recursos necessários pode jogar em qualquer lugar. Essa evolução com relação ao período no qual apenas universitários com acesso a computadores de ponta podiam jogar se deve, principalmente, ao desenvolvimento tecnológico dos últimos anos. Dispositivos cada vez menores e mais baratos passaram a ser comercializados no mercado, o que permitiu que um número maior de pessoas tivesse a oportunidade de jogar e que essa atividade pudesse ser realizada em uma variedade maior de lugares.

Em particular, a evolução dos smartphones e dos tablets teve papel crucial na popularização dos videogames. Se nos primórdios os jogos eletrônicos podiam apenas ser acessados em lugares específicos — arcades — ou por pessoas com a condição financeira necessária para comprar um console ou um computador, hoje qualquer pessoa com um celular é capaz de jogar onde quiser. Essa mudança se deve ao rápido desenvolvimento das tecnologias presentes nestes dispositivos — atualmente, um smartphone mediano possui várias vezes o poder de processamento dos primeiros consoles da Atari — que permitiu a criação de jogos complexos e baratos para esses aparelhos portáteis.

Essas plataformas não apenas contribuíram de forma substancial para o crescimento da indústria — atualmente, mais de um terço da receita do mercado de jogos é obtida em celulares e tablets — como também ajudaram no estabelecimento dos videogames como parte da cultura moderna. O fato da base de usuários ter aumentado exponencialmente nas últimas décadas transformou os videogames de uma atividade nicho para parte do cotidiano de bilhões de pessoas. Nesse sentido, não é exagero afirmar que personagens simbólicos como Mario são conhecidos pela maior parte da população de vários países, chegando, inclusive, a integrar a identidade cultural desses locais.

Por outro lado, esse mercado não cresceu apenas por aumentar sua base de jogadores: ele se diversificou de forma impressionante desde sua criação. No começo da indústria, devido às limitações técnicas da época, a maioria dos jogos ou eram baseados em textos com poucas ou nenhuma imagem (The Oregon Trail e Adventure) ou consistiam em o jogador acertar/desviar de pixels que podiam ser bolas, lasers ou qualquer elemento que o criador imaginasse (Pong e Asteroids). Hoje, existe uma ampla gama de gêneros de videogames, de forma que as opções dos jogadores e as possibilidades dos desenvolvedores nunca foram tão amplas.

Essa diversidade contribuiu tanto para atrair um público crescente e diverso quanto para permitir a inclusão de elementos inéditos dentro dele. Primeiramente, foram adicionadas narrativas e personagens identificáveis — características típicas de outras mídias, como literatura e cinema — que possibilitavam a criação de empatia por parte do jogador, algo que se fortaleceu com os avanços na fidelidade gráfica e na variedade de expressões faciais dos personagens. Em seguida, a abordagem de temas complexos e sensíveis passou a fazer parte da indústria dos jogos eletrônicos.

Atualmente, muitos videogames utilizam de capacidade única de colocar o interlocutor na posição de personagem da história para criar um sentimento de identificação com o jogo. Nesse sentido, alguns RPGs (role-playing games) — como Mass Effect e Dragon Age — se destacam por permitir ao usuário escolher o gênero, a etnia e a orientação sexual do protagonista que controlará. Outros jogos foram ainda mais longe ao abordar histórias reais, como That Dragon, Cancer — obra autobiográfica que coloca o jogador na posição dos pais de uma criança com câncer. Ou seja, para muitos desenvolvedores, os videogames deixaram de ser vistos apenas enquanto fonte de renda e forma de entretenimento, eles se tornaram um instrumento eficaz para transmitir emoções e experiências.

Essa transição está no cerne do desenvolvimento dos aspectos artísticos dos jogos. Por meio de gráficos únicos que impressionam pela estética, de trilhas sonoras icônicas que evocam sentimentos e de narrativas que não permitem a indiferença frente aos personagens, muitos videogames hoje utilizam as técnicas de diversas formas de arte no intuito de provocar catarse no jogador. Esse objetivo, no entanto, não os distancia das suas raízes enquanto produto de entretenimento, de fato, ele age em concordância com tais origens ao tornar a experiência mais interessante. Desse modo, a evolução do lado artístico dos jogos eletrônicos ajudou-os a adquirir uma importância cultural sem distancia-los de seu objetivo principal: divertir o jogador.

A realidade virtual pode fazer parte do futuro da indústria (Imagem de Olabi Makerspace em Flickr)

Qual a próxima fase?

A trajetória dos videogames de tímido entretenimento de nicho para fenômeno cultural foi longa, turbulenta e muito influenciada pela tecnologia. Não é errado dizer que, em quase todos os aspectos imagináveis, a indústria atual é irreconhecível se comparada a o que era meio século atrás. No lugar de barras e pontos, controlam-se personagens quase idênticos a pessoas reais; ao invés de histórias de dois parágrafos na contracapa da embalagem, existem roteiros dignos de adaptações cinematográficas; em contraste a um comércio tímido de apelo limitado, estabeleceu-se um mercado multibilionário para bilhões. Isso mostra até onde os jogos eletrônicos chegaram, mas ainda não revela até onde eles irão a partir desse ponto.

Pesquisas indicam que a indústria pode dobrar de valor até 2025 — guiada, principalmente, pelas receitas em smartphones — e que o número de jogadores é capaz de superar a marca dos três bilhões em 2023. Além do mais, a tecnologia nunca deixou de ser um aspecto intrínseco à evolução dos videogames: a realidade virtual ainda está em seus primórdios e cresce em popularidade de forma gradual enquanto inovações técnicas — como o Xbox Adaptive Controller, criado para permitir que pessoas com deficiências motoras joguem — constantemente tornam essa mídia mais acessível. Portanto, o que se observa não é um produto no auge de sua popularidade, mas um mercado em plena ascensão.

Desse modo, em pouco mais de meio século, os jogos eletrônicos alcançaram uma posição de destaque entre os meios de entretenimento modernos e não mostram sinais de que deixarão de crescer. Seja como uma forma de arte, um divertido hobbie ou uma pequena distração casual, eles estabeleceram seu lugar no mundo contemporâneo de uma maneira que poucos produtos até então conseguiram. Entendendo o que os videogames eram há várias décadas atrás, só resta uma coisa a fazer: imaginar o que eles serão no futuro próximo.

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