O Real Digital

Entenda suas consequências

Renan Magalhaes
O Veterano
5 min readJul 7, 2021

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Photo by Jason Leung on Unsplash

As moedas digitais estão recebendo bastante atenção na mídia há tempo. Até a recente queda da cotação da Bitcoin e do mercado como um todo, as criptomoedas atingiram valores astronômicos, mas estes ainda assim são enormes, principalmente na perspectiva de quem acompanha esse mercado há um tempo. Não à toa os governos do mundo inteiro estão se interessando cada vez mais por essas novas tecnologias, com destaque para a China, que está banindo todas as operações relacionadas a criptomoedas no país para não haver concorrência com o yuan digital — a moeda nacional chinesa em sua versão digital, com blockchain e as tecnologias derivadas desse sistema criptográfico, que está para ser lançada.

Assim, vários países estão de olho no potencial apresentado pela tecnologia blockchain para a condução da política monetária e o corte de gastos transacionais e burocráticos presentes no sistema financeiro atual. Chamadas de CBDCs (sigla para Central Bank Digital Currency), as moedas digitais — que são diferentes da moeda que é transacionada virtualmente por aplicativos de celular via Pix, por exemplo — podem trazer facilidades na condução do comércio diário e serviços inovadores, como o dinheiro programável e os contratos inteligentes.

No dia 24 de maio deste ano, o Banco Central brasileiro divulgou suas diretrizes para a criação do Real Digital, reacendendo o debate sobre os CBDCs. O mesmo órgão governamental estima que seja possível implementar tal inovação em até 3 anos. No mundo, há uma grande competição a respeito de quem implantará primeiro e de forma mais eficiente uma moeda digital que alcance uma evolução tecnológica da economia, colocando tal país à frente de todos os outros. O único país que já lançou uma moeda digital estatal e nacional foi Bahamas, com o Sand Dollar, com o objetivo de aumentar a inclusão financeira no país e facilitar os pagamentos. Como citado anteriormente, a China está atualmente se preparando para o lançamento do Yuan digital, com o grande experimento de seu uso a ser feito nas Olimpíadas de Inverno de 2022 em Pequim. O Reino Unido, que se posicionou fortemente contra as criptomoedas, anunciou recentemente a criação de uma força-tarefa para o desenvolvimento de sua CBDC, já apelidada de “britcoin”.

Assim, percebe-se que a integração do sistema financeiro com a tecnologia blockchain é inevitável. Mas há certa avidez nos países em desenvolverem uma moeda estatal, como se repentinamente houvesse uma grande necessidade em ter tal ferramenta sob o controle do governo. Além dos potenciais benefícios econômicos, há outro motivo para a urgência no lançamento de um CBDR em um país: as criptomoedas privadas.

Esse tipo de moeda contemporânea tem ganhado bastante relevância e pode desafiar governos de diversas formas, principalmente se tiver ampla adoção. Primeiramente, sua utilização apresenta desafios à tributação e facilita a lavagem de dinheiro, bem como os demais negócios escusos. Mas ainda mais problemático que isso, essas moedas podem concorrer com a moeda estatal caso a população decida que sua moeda está muito desvalorizada e precise usar uma moeda com maior reserva de valor — papel semelhante ao do ouro. Este caso em específico aconteceu na Turquia com a recente e brutal desvalorização da lira turca, levando a população a trocar sua moeda pelo dólar americano e por bitcoin. Assim, em países com expectativa de forte inflação, há a possibilidade de haver grande concorrência com moedas privadas deflacionárias no futuro próximo. Neste caso, a moeda fica ainda mais desvalorizada e é difícil de se implementar uma política monetária com o uso de uma moeda descentralizada e privada. Há ainda o caso de El Salvador, que aprovou uma lei que dá curso forçado ao Bitcoin no país. Assim, em El Salvador há duas moedas circulantes: o dólar e a Bitcoin. A ideia é aumentar o investimento e a infraestrutura no país, com a potencial riqueza gerada pela criptomoeda.

Portanto, há grande incentivo para um Estado criar uma moeda digital que ofereça a segurança e a facilidade proporcionadas pela tecnologia das criptomoedas, somando o controle monetário exercido pelo Banco Central e sua legitimidade. De tal modo, as diretrizes divulgadas pelo Banco Central demonstram o caminho que se quer seguir com o Real Digital. Uma das tecnologias mais importantes e que chama atenção é a dos contratos inteligentes, visto que podem revolucionar o sistema financeiro. A ideia inicial de criptomoedas privadas como a Ethereum é substituir bancos e corretoras, automatizando contratos através de códigos na blockchain. Se o Real Digital for emitido e regulado pelo Banco Central, haveria a possibilidade de todas as operações bancárias serem realizadas diretamente através dele, acabando com a necessidade de bancos comerciais. Não à toa, a divulgação do desenvolvimento do dólar digital gerou temor no mercado bancário um tempo atrás. Mas nas diretrizes é determinado que o sistema de distribuição de meios de pagamentos se manterá o mesmo, no qual o Banco Central distribui reservas pelos bancos comerciais e estes lidam com as demandas financeiras da população.

Ainda há um longo caminho à frente, visto que está para ser determinado quais serão os próximos passos a serem tomados e o ritmo de implementação. Mas o potencial apontado pelo BC é enorme para a economia, visto que pretende aumentar a eficiência do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), aumentar a inclusão financeira — que ainda é um grande desafio, visto que 30% da população não é bancarizada e faz todos pagamentos em dinheiro físico -, reduzir problemas de segurança relacionados a roubos e assaltos( já que haverá menos dinheiro em espécie com indivíduos e estabelecimentos; e facilidade nos pagamentos transfronteiriços.

Entretanto, há riscos associados à integração financeira maior com o Estado, o principal sendo o de privacidade, na medida em que todas as operações estarão automaticamente registradas no sistema do governo e este certamente contará com algum registro pessoal por todas as partes envolvidas em uma transação ou um contrato inteligente. Consequentemente, o debate sobre segurança versus liberdade volta com força nesse assunto. É melhor deixar o Estado saber todo o seu histórico financeiro e manipular seu dinheiro, mas diminuindo riscos de ilegalidades para a população, ou deixar o sistema mais anônimo e livre, mas facilitando assim a corrupção, a lavagem de dinheiro e demais problemas do tipo? Esta indagação provavelmente será um dos principais pontos a serem discutidos pela sociedade em meio à transição para uma economia cada vez mais digital.

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Renan Magalhaes
O Veterano

Bacharel de Economia pela EPGE-FGV Rio, gosto de aprender sobre os mais diversos assuntos em um empenho de tentar compreender melhor o mundo e as pessoas