O setor privado pode comprar doses de vacina contra a Covid-19?

Gabriel Thomas
O Veterano
Published in
5 min readJan 27, 2021

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“Ñ haverá vacinas disponíveis p/ todos este ano. Se um funcionário de uma empresa privada, jovem e sem comorbidades tomar uma vacina agora, significa q alguem dos grupos prioritários deixou de tomar. Além de imoral, compromete a estratégia de vacinação.”

Tweet de Mariana Varella (@marivarella), 10:53 AM, 26 de janeiro de 2021

O tweet acima, de Mariana Varella — jornalista de saúde e editora-chefe do Portal Drauzio Varella –, deve ser entendido no contexto da discussão que tomou os veículos midiáticos nas últimas semanas: o setor privado pode adquirir suas próprias doses de vacina contra a Covid-19? Antes de tratar mais profundamente dos argumentos favoráveis e contrários a essa proposta, devem ser destacados os dois planos que agentes da iniciativa privada já propuseram para a aquisição de doses.

No dia 3 de janeiro, a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) anunciou sua negociação com o laboratório indiano Bharat Biotech para a importação de 5 milhões de doses do imunizante Covaxin, cujo uso emergencial já foi aprovado na Índia, apesar da terceira fase de testes não ter sido concluída ainda. À época, o Ministério da Saúde esclareceu apenas que, na eventualidade de autorização da vacinação na rede privada, os grupos prioritários estabelecidos pelo Programa Nacional de Imunização deveriam ser obedecidos.

Já no dia 13 de janeiro, um grupo de empresários do mercado corporativo nacional também demonstrou interesse em comprar vacinas privadamente. A iniciativa foi para a frente e pelo menos 12 companhias brasileiras, como Vale, Oi, JBS e Ambev, foram convidadas a participar do consórcio, que já estava conferenciando com o Ministério da Saúde a possibilidade de importar 33 milhões de doses do imunizante da Oxford/AstraZeneca. Membros do governo federal teriam indicado que pelo menos 50% das doses importadas deveriam ser remetidas ao setor público. No entanto, diante de temores de que esse acordo pudesse gerar uma repercussão negativa entre os consumidores — dependentes da vacinação pelo setor público –, a divulgação da lista de empresas que foram chamadas a integrar tal consórcio gerou um incômodo para algumas das companhias, que logo se pronunciaram e desmentiram sua participação na iniciativa.

Quais são os argumentos de quem é favorável à participação da iniciativa privada na imunização?

Em um editorial do Jornal O Globo, defendeu-se a ideia de que quanto mais pessoas forem vacinadas no menor tempo possível, melhor seria o processo de vacinação — desde que seja respeitada a ordem dos grupos prioritários estipulada pelo Ministério da Saúde. Isto é, a imunização por iniciativa privada seria complementar à do setor público à medida que aliviaria a demanda que recairia sobre este. Ademais, a fim de mitigar quaisquer complicações para a esfera pública, os organismos privados deveriam adquirir somente imunizantes que não estivessem no radar de compra do Governo Federal, como é o caso da proposta da ABCVAC.

E quais são os argumentos contrários à vacinação privada?

Primeiramente, há aqueles alegando que uma compra de doses pela rede privada implicaria dificuldades para a imunização por parte do setor público na medida em que diminuiria o estoque de doses ao qual o Governo Federal tem acesso, de modo a impor obstáculos à vacinação pública. Essa linha argumentativa seria válida para o caso do consórcio de empresas privadas em negociação com a Oxford/AstraZeneca — que também é fornecedora do Governo Federal –, mas pouco aplicável ao caso da ABCVAC.

Outro argumento contrário à vacinação pelo setor privado diz respeito a supostas injustiças inerentes a esse processo. De acordo com Gonzalo Vecina, médico sanitarista e ex-presidente da Anvisa, e Walter Cintra Jr, professor da FGV EAESP, uma imunização gerida pela iniciativa privada neste momento da pandemia implicaria uma fila de vacinação paralela que aprofundaria as desigualdades do país. Por essa ótica, ainda que a participação privada acelerasse o ritmo de imunização da população — além de promover um benefício marginal aos não vacinados, visto que vacinar-se gera externalidade positiva –, tal efeito seria alcançado por meios eticamente reprováveis: o privilégio dos mais ricos sobre os mais pobres. Assim, em uma época em que tanto se defende um espírito de comunidade para superar a crise — por meio da adoção de medidas de isolamento social, por exemplo –, seria no mínimo incoerente permitir que a letalidade do vírus se tornasse diferente para cada classe social.

De onde surgiu o debate?

Nesse sentido, cabe a cada um refletir sobre a questão e ponderar os argumentos de cada lado. No entanto, talvez mais importante ainda seja questionar o motivo pelo qual esse debate sequer está em discussão. Isso porque, segundo Mariângela Simão, diretora de Acesso a Medicamentos da OMS, a possibilidade de vacinação via iniciativa privada estaria ocorrendo apenas no Brasil.

Uma possível resposta seria a inoperância do Governo Federal na aquisição de vacinas para a imunização da população. Se há poucas semanas as repetidas falas do presidente Jair Bolsonaro descredibilizando a eficácia das vacinas já indicavam que o Poder Executivo relutava em garantir estoques para uma pronta imunização, a divulgação por parte da farmacêutica Pfizer de que foram oferecidas 70 milhões de doses ao governo brasileiro sem que contrato algum fosse assinado só reforça a noção de que o Governo Federal não agiu em prol da saúde pública. E alguém ainda mais crítico, como Mariana Varella, poderia argumentar que a permissão recentemente dada pelo presidente para a compra de 33 milhões de doses da AstraZeneca — uma das fornecedoras do setor público — pelo já mencionado consórcio de empresas privadas seria na realidade uma omissão do Governo em adquirir mais doses para acelerar a imunização pública e gratuita. Parece que algumas pessoas entenderam erradamente o conceito de lavar as mãos durante a pandemia.

Referências:

SCHÜLER, Fernando. ‘O debate ético em torno da vacina pode nos ajudar a pensar o Brasil’, Folha de São Paulo, 06/01/2021. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/fernando-schuler/2021/01/o-debate-etico-em-torno-da-vacina-pode-nos-ajudar-a-pensar-o-brasil.shtml?origin=folha. Acesso em 23/01/2021.

PEZENIK, Sasha. ‘VIP vacines: As availability tightens, the wealthy and well-connected push for access’, ABC News, 25/01/2021. Disponível em https://abcnews.go.com/US/vip-vaccines-availability-tightens-wealthy-connected-push-access/story?id=75437334. Acesso em 25/01/2021.

MORI, Letícia. ‘Vacinar primeiro quem pode pagar abre desafio ético e de saúde pública no Brasil’, BBC News Brasil, 07/01/2021. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55554353. Acesso em 23/01/2021.

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