O Sucateamento dos Estaduais no Brasil

Danyel Lima
O Veterano
Published in
9 min readMar 1, 2024
Maurício Galiotte, presidente do Palmeiras, após o vice-campeonato paulista de 2018 contra o Corinthians com algumas polêmicas de arbitragem

Em janeiro e fevereiro, começo de ano e de temporadas esportivas no futebol brasileiro, temos o início dos campeonatos estaduais. Contudo, esses torneios, que historicamente sempre tiveram sua relevância regional, vêm cada vez mais perdendo seu valor ao longo dos anos. Nessa edição d’O Veterano iremos abordar como e por que isso tem ocorrido em solo tupiniquim e de que forma isso afeta tanto os clubes quanto principalmente os seus torcedores.

Os torneios estaduais nas ligas de ponta do futebol

Para começar, uma impressão muito comum nos dias de hoje no futebol é a ideia de que só existem torneios estaduais aqui no Brasil, e de fato aos moldes que temos no país é algo que não é visto no restante do mundo, porém nos países com as principais ligas futebolísticas, como Alemanha, Itália e Inglaterra, existem sim torneios a nível estadual e regional, porém com propósitos e formatos bem distintos do que vemos no Brasil. Enquanto no Brasil temos os estaduais sendo disputados pelas equipes do principal escalão nacional, na Espanha, por exemplo, existem 18 torneios regionais que correspondem a uma espécie de quinta divisão do futebol espanhol, formando uma ponte para times amadores alcançarem uma vaga nas divisões nacionais e possivelmente a primeira divisão, onde estão times como Real Madrid e Barcelona.

Esse mesmo formato espanhol é adotado nas principais federações do futebol europeu, contendo estaduais sem as principais equipes e dando espaço integral a times de menor expressão que em muitas das vezes tem somente essas competições a disputar ao longo da temporada. Contudo, temos no Brasil uma altíssima relevância histórica aos estaduais, o que de certa forma impediu que o mesmo modelo aplicado nas principais ligas europeias fosse aplicado aqui.

A importância dos estaduais para o brasileiro

Um ponto que demonstra essa relevância dos estaduais no Brasil é que dos 20 maiores públicos já registrados em estádios no país, tivemos 5 jogos da seleção brasileira, um jogo de Campeonato Brasileiro e todos os outros 14 jogos foram em edições de Campeonato Carioca, sendo os 20 jogos realizados no Maracanã, que era o maior estádio do mundo em sua inauguração. Sua capacidade deu acesso para que tantas pessoas pudessem ir em jogos no Rio de Janeiro, permitindo, como ilustração, que 194.603 pessoas vissem o Flamengo ser campeão carioca de 1963 após um empate em 0X0 com o Fluminense, no que é até hoje o jogo entre dois times com maior público da história do futebol mundial. E até mesmo saindo da análise especificamente do Maracanã, estádios como a Vila Belmiro, o Morumbi, o Mineirão e o agora extinto Parque Antarctica tem como maiores públicos de sua história jogos de campeonatos estaduais, mostrando o quão tradicionais e relevantes são para o imaginário do torcedor brasileiro.

Ainda assim, cada vez mais se nota o discurso contrário a competições nesses moldes e o desinteresse crescente dos torcedores. Analisando novamente a quantidade de torcedores por jogo nos estádios, enquanto em 1983 a média de público no Campeonato Carioca foi de 12.971 pessoas, em 2022 essa média foi menor que a metade, somente 6.358 pessoas. Resultados similares a esses se vêem também nos outros estaduais de maior relevância nacional, como nos campeonatos paulista, mineiro e gaúcho.

Entre as causas apontadas para esse desinteresse, há alguns fatores constantemente apontados tanto por torcedores quanto por dirigentes de clubes. Dentre todos eles, o principal é o calendário das principais equipes, que nem sempre comporta com tranquilidade uma quantidade tão grande de jogos como aqui no Brasil, e então precisam dividir parte de sua agenda para a disputa dos estaduais, que não atraem mais tanto interesse aos clubes.

O desgaste físico em jogar futebol no Brasil

Para utilizar um exemplo da temporada passada, o Fluminense, campeão da Copa Libertadores em 2023, realizou 69 jogos ao longo do ano, mesmo chegando somente até às oitavas de final da Copa do Brasil, e sendo que dos 69 jogos, 14 foram pelo Campeonato Carioca, que a equipe também sagrou-se campeã. Ao comparar com uma equipe do futebol europeu, o Manchester City, campeão da Champions League, da Copa da Inglaterra e do campeonato inglês na temporada de 2022–23, realizou somente 61 jogos, 8 a menos. Um dos efeitos disso em campo foi a final do Mundial Interclubes que evidenciou uma equipe inglesa fisicamente inicialmente já muito mais bem preparada e que chegou na final sem tanto desgaste do ritmo de jogos, uma vez que fez a partida no meio da temporada europeia tendo realizado somente 27 jogos entre o período de férias e a final, enfrentando um Fluminense completamente desgastado e que fisicamente não teve condições de equilibrar a partida e encerrou o jogo com o vice-campeonato.

O desinteresse financeiro dos clubes atrelado à desorganização nas competições locais

Além disso, outro fator que prejudica o interesse dos clubes nos torneios regionais é o baixíssimo retorno financeiro de tais competições. Enquanto a Copa do Brasil tem uma premiação de 70 milhões de reais ao campeão, o Brasileirão tem uma premiação de 45 milhões e a Libertadores tem um prêmio mínimo de 18 milhões de dólares (aproximadamente 90 milhões de reais) ao campeão, o estadual com maior premiação financeira do Brasil é o Campeonato Paulista, em que a Federação Paulista de Futebol somente 5 milhões de reais ao Palmeiras campeão e 1,65 milhão ao Água Santa que ficou com o vice-campeonato. Com isso, a equipe alviverde recebeu uma premiação maior por simplesmente participar da fase de grupos da Copa Libertadores do que ao ser campeão paulista, visto que a CONMEBOL tem um prêmio de 3 milhões de dólares (aproximadamente 15,1 milhões de reais) para as equipes participantes da primeira fase de sua competição.

Saindo do estado de São Paulo o cenário é ainda menos atrativo. No Rio de Janeiro, estado da segunda federação de futebol mais importante do país segundo o ranking da CBF, desde 2021 a equipe campeã não recebe nenhum prêmio financeiro pago pela FERJ. A federação gaúcha e a mineira também não oferecem premiação financeira aos seus clubes pelo desempenho em seus torneios nessa temporada, e no regulamento de outras competições, como o Campeonato Baiano e o Campeonato Paranaense, sequer é feita a menção a uma premiação financeira aos clubes participantes.

Contudo, a arrecadação das federações ainda sim segue sendo alta. Analisando o borderô de alguns jogos do Campeonato Carioca, é possível notar, dentre outros custos naturais para a realização de uma partida, uma taxa de R$558.315,00 paga à FERJ para a realização do duelo entre Sampaio Corrêa e Flamengo, sendo mais de 20% da receita líquida obtida na partida. No clássico entre Botafogo e Vasco o cenário é ainda mais ressaltante, uma vez que o resultado final foi de R$687.271,95 mas a taxa FERJ foi de R$226.548,55, quase um terço do valor.

Mesmo com uma arrecadação proporcionalmente tão grande, o campeonato demonstra uma certa desorganização por parte da gestão do torneio. Um ponto que demonstra isso é o fato de que até a edição passada só contava com árbitro de vídeo nos clássicos e a partir da semifinal. Isso só se alterou para essa edição no meio do campeonato, após o Vasco, sentindo-se prejudicado em um lance no jogo contra o Bangu em que não havia a revisão do VAR, pressionou a federação para que se fosse utilizado o mecanismo em todos os jogos do campeonato. Ainda assim, a federação do Rio de Janeiro implantou o VAR somente em jogos que tenham um dos times grandes do estado e em estádios que tenham estrutura para o equipamento.

A falta de estrutura para o futebol no país

Partida entre Bangu e Fluminense pelo Campeonato Carioca de 2024

Em relação à estrutura dos estádios se nota um ponto delicadíssimo da gestão do futebol no Brasil como um todo e que é mais escancarado nas competições no início das temporadas. Tomando como representação a imagem acima, temos o jogo entre Fluminense e Bangu realizado no Estádio Luso-Brasileiro, casa da Portuguesa da Ilha do Governador. O destaque para essa imagem se dá no fato de que na lateral do campo, onde se espera que esteja uma arquibancada, havia dois tratores e diversas placas do que aparentam ser materiais de construção. Esse problema já era de conhecimento da federação e dos clubes, uma vez que o estádio já estava nesse estado no ano passado, conforme matéria feita pelo Globo Esporte acerca da obra prevista porém nunca iniciada de expansão do estádio.

Em outros estádios e estados, ainda é comum a reclamação dos clubes acerca da falta de estrutura para os jogos. A representação dessa falta de estrutura está presente nas recorrentes reclamações dos treinadores brasileiros acerca da qualidade dos gramados dos estádios nos estaduais. A falta de suporte aos clubes gera falta de estrutura para que eles consigam manter uma logística de qualidade para as competições ao longo da temporada, e na ótica de um clube grande que disputará competições de maior porte ao longo da temporada, qual o incentivo que ele tem em usar seus principais atletas em partidas assim correndo um risco maior de lesionar os jogadores e os perder para o restante do ano?

Temos como exemplo disso o São Paulo, atual campeão da Copa do Brasil e que disputará a Libertadores nesta temporada, que já perdeu 6 jogadores em 2024 por lesão nos primeiros 10 jogos. O Corinthians, equipe que disputará a Sudamericana, também já perdeu esse ano 5 atletas em 9 partidas. O Palmeiras já tem neste ano 3 lesionados, sendo um deles o Bruno Rodrigues, contratado no início do ano e lesionado logo na segunda partida do clube, com expectativa de retorno somente no final do ano.

A solução que não solucionou nada

Buscando uma maior valorização dos torneios, a CBF decidiu que a partir de 2023 o desempenho nos campeonatos estaduais define os classificados à Copa do Brasil. O efeito disso foi a distorção do sentido do por trás do torneio, com times de menor expressão conseguindo a vaga para a competição e times maiores não conseguindo a vaga. O caso mais emblemático dessa distorção ocorreu em São Paulo, em que o Água Santa, equipe que não disputou divisão nacional em 2023, conseguiu a vaga para a Copa do Brasil de 2024, porém o Santos, um dos maiores clubes do estado e participante do Campeonato Brasileiro Série B em 2024, está fora da copa nacional, e por muito pouco na temporada anterior não conseguiu manter a permanência na primeira divisão e mesmo assim ficar de fora da copa. Eventos como esse enfraquecem a Copa do Brasil ao gerar a possibilidade de tirar times mais bem estruturados da competição por conta de um simples início de temporada abaixo do nível, gerando uma tentativa ineficiente de gerar incentivo aos torneios locais por não resolver seu problema.

Uma vez que as federações estaduais têm o interesse em manter suas competições, é necessária uma mudança na gestão de como eles são feitos, porque caso o modelo atual se perpetue, tais torneios terão como único saldo uma série de jogos sem interesse aos torcedores e que geram mais desgaste que resultado financeiro e esportivo para os clubes.

Referências bibliográficas:

Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 3 jul. 1988, Caderno de Esportes, pág 52

https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/04/02/campeoes-dos-estaduais-de-mg-rj-e-rs-nao-ganham-premiacao-sp-e-excecao.htm#:~:text=O%20Galo%20deve%20receber%20cerca,Tudo%20independente%20de%20seus%20resultados.

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