O Twitter pode nos censurar?

Caio Romio Augusto
O Veterano
Published in
7 min readJan 27, 2021

Uma análise dos impactos das big techs sobre a liberdade de expressão no mundo

Ben Garrison Grrgraphics

James Grimmelmann, em seu famoso artigo The Virtues of Moderation (2015), expõe as diferentes formas de moderação em ambientes virtuais adotadas nas mais diversas comunidades da internet. Em tradução livre, o autor define o termo moderação como “os mecanismos de governança que estruturam a participação em uma comunidade para facilitar a cooperação e prevenir abusos”.

Cada comunidade possui um, ou múltiplos, interesses em particular. Dessa maneira, atraem pessoas diferentes, ou ao menos objetivos em comum diferentes. Da mesma forma que, fora da internet, as pessoas seguem diferentes comportamentos, mudando de acordo com o ambiente onde estão, em grupos online também são adotadas variadas regras, interfaces e mecanismos de controle para evitar atitudes indesejáveis de seus membros.

Imagine, por exemplo, um grupo de advogados(as) às duas da tarde, em uma reunião com um cliente multimilionário. Agora pense que o expediente dessas pessoas acabou, e elas se reúnem para um happy hour no bar mais próximo. Como será a postura delas em cada uma dessas situações? Sobre o que discutirão? Qual será a escolha vocabular que farão?

Na internet, não é diferente. Um indivíduo pode, em determinado momento, estar conversando com amigos íntimos em um grupo de WhatsApp. Neste contexto, não se constrangerá em usar gírias, falar palavrões, fazer piadas de cunho ofensivo para determinadas pessoas — ao menos, não será pressionado pela ocasião a não fazer. Pouco tempo depois, esse sujeito entra no Quora e participa de uma discussão sobre a diplomacia do Brasil com a América Latina no Governo Bolsonaro. Sua linguagem mudará. Debaterá respeitosamente, com argumentos elaborados e formais. Não há novidade alguma nisso, é apenas a natureza sociável do ser humano em atuação.

Contudo, há diferenças importantes entre as comunidades presenciais e as virtuais, especialmente em relação ao enforcement da postura padrão de cada ambiente. Naquelas, a coerção existente contra comportamentos desviantes é feita apenas por pessoas, enquanto nestas existe o poderoso auxílio de algoritmos para a realização de tarefas. No Quora, por exemplo, pode haver uma lista de palavras selecionadas que, quando mencionadas em algum comentário, o impedem de ser sequer publicado. Em outro caso, o algoritmo pode detectar imagens com sangue, nudez ou consumo de drogas e colocar um alerta de conteúdo possivelmente perturbador junto à publicação. A ajuda de seres humanos também é essencial, principalmente com a possibilidade de um usuário denunciar um conteúdo que julga ser ofensivo.

No cerne da moderação em comunidades virtuais, está a transparência das normas e do enforcement de cada uma. Ou seja: o quanto os usuários sabem sobre como devem e não devem agir, e quais serão as medidas tomadas pela rede caso descumpram essas normas.

Tomemos por exemplo o Twitter: a plataforma disponibiliza suas regras publicamente, bem como as possíveis consequências de seu descumprimento. Entre os conteúdos não permitidos, estão terrorismo, exploração sexual de menores e suicídio/automutilação, vários exemplificados com publicações hipotéticas. Na maioria dos casos, a fiscalização é feita após uma denúncia que, se confirmada pela equipe da empresa, resulta na exclusão do post. Em casos de repetidos posts que violem as regras, a conta pode ser suspensa ou até banida do Twitter.

As redes sociais são ótimas plataformas para pessoas desconhecidas se tornarem influenciadoras. Sujeitos esses que dificilmente conseguiriam ter algum espaço em meios tradicionais de comunicação — notoriamente jornais, televisão e rádio. Porém, essas mídias também atraem indivíduos famosos, com fácil acesso às plataformas tradicionais de comunicação. Alguns, inclusive, de quem se espera que prefiram se manifestar em outros ambientes — deixando as redes sociais apenas para anúncios formais. Refiro-me aos políticos.

Recentemente, o então presidente dos Estados Unidos — Donald Trump — teve sua conta banida do Twitter. De acordo com a rede social, o ex-presidente cometeu “glorificação da violência” em seus tweets.

Anteriormente a empresa tinha suspendido a conta de Trump por 12 horas, como resposta às suas publicações que supostamente insuflaram ações violentas de manifestantes no Capitólio, parlamento dos EUA. Ele, como foi visto nos últimos meses, alegava que sua eleição contra o atual presidente Joe Biden havia sido fraudulenta, e não aceitou sua derrota nas urnas. Após a suspensão, Donald Trump publicou os seguintes tweets:

“The 75,000,000 great American Patriots who voted for me, AMERICA FIRST, and MAKE AMERICA GREAT AGAIN, will have a GIANT VOICE long into the future. They will not be disrespected or treated unfairly in any way, shape or form!!!” (Os 75,000,000 de grandes americanos patriotas que votaram por mim, AMÉRICA EM PRIMEIRO LUGAR, e FAÇA A AMÉRICA GRANDE DE NOVO, terão uma VOZ GIGANTESCA ao longo do futuro. Eles não serão desrespeitados ou tratados injustamente de qualquer modo, jeito ou forma!!!).

“To all of those who have asked, I will not be going to the Inauguration on January 20th” (Para todos os que têm perguntado, eu não vou à Inauguração em 20 de janeiro).

Com base nesses dois tweets, a conta de Trump foi permanentemente banida do Twitter. Cabem agora algumas reflexões.

A primeira delas é: Trump realmente violou as regras da plataforma? Por “glorificação da violência”, motivo pelo qual o ex-presidente foi banido, o Twitter entende:

“Glorificar, comemorar, elogiar ou tolerar crimes e eventos violentos em que pessoas foram vítimas por pertencerem a um grupo protegido ou os autores de tais atos. Definimos glorificação para incluir declarações com elogio, comemoração ou tolerância, como ‘Fico feliz que isso tenha acontecido’, ‘Essa pessoa é meu herói’, ‘Queria que mais pessoas fizessem o mesmo’ ou ‘Espero que isso inspire outras pessoas a agirem’. (https://help.twitter.com/pt/rules-and-policies/glorification-of-violence)

Trump evidentemente não “glorificou, comemorou crimes e eventos violentos em que pessoas foram vítimas por pertencerem a um grupo protegido ou os autores de tais atos”. Apenas saudou os seus apoiadores e indicou que não iria à posse do presidente Joe Biden. Causa um certo estranhamento, portanto, que essa tenha sido a interpretação dada aos seus tweets.

Pode ser argumentado, com um certo grau de razão, que as declarações supracitadas, vindas de quem vieram, devem ser interpretadas de maneira diferente em relação a um usuário normal. Em outras palavras: se eu, ou você, tivéssemos escrito esses mesmos tweets, não haveria problema algum. Todavia, Trump tem o poder de mobilizar milhares, senão milhões, de pessoas com suas palavras. Para um apoiador fanático cometer alguma violência, meia palavra de insanidade basta. O Twitter também utilizou o argumento que o fato do ex-presidente não comparecer à posse de seu sucessor poderia indicar que o ambiente seria um bom lugar para se cometer violência, já que ele não estaria lá. Ambas as justificativas são vagas e especulativas, e poderiam ser aplicadas a qualquer publicação de qualquer grande liderança política que incitasse protestos ou revoltas. Imaginem se a mesma régua fosse usada para os políticos que apoiaram os protestos de 2013 no Brasil: por causa da existência dos black blocks, qualquer apoio generalizado às manifestações glorificaria a violência.

Em julho de 2020, o Twitter possuía um total de 330 milhões de usuários mensais. Se fosse um país, seria o terceiro mais populoso do mundo — superando o Brasil, a Rússia, o México e o Japão. Como se sabe, é uma plataforma que se movimenta muito com acontecimentos políticos polêmicos, inclusive com comentários das principais lideranças políticas mundiais. O próprio Donald Trump publicou 1003 tweets somente em seus seis primeiros meses como presidente.

Isso leva a outra reflexão: quais são os riscos de uma só plataforma de divulgação de opiniões possuir tantos usuários? São muitos. A começar pelo fato de que as grandes redes sociais possuem uma infinidade de dados sobre a personalidade e o estilo de vida de cada um de seus usuários. Ademais, os efeitos sobre a liberdade de expressão de seus membros podem ser marcantes. Se um presidente de uma democracia teve sua conta banida por motivos obscuros, outros políticos e pessoas comuns também correm o risco de perderem suas contas por declarações políticas malvistas.

Não à toa, Ângela Merkel, chanceler da Alemanha, viu o banimento da conta de Trump como problemático. Não apenas ela, mas também o governo da França — por meio de declarações de dois de seus ministros — condenou o episódio.

É fato que as comunidades virtuais precisam de mecanismos de moderação para controlar interações maliciosas ou violentas de seus usuários. É verdade também que, sendo empresas privadas, as redes sociais têm autonomia para elaborar seus estatutos e seus códigos de conduta. Contudo, é urgente que se questione a liberdade total de moderação das chamadas big techs — Google, Facebook, Twitter etc — sobre as publicações de seus membros. Isso urge porque é cada vez mais difícil se fazer política fora dessas redes — que são espaços, destaca-se, privados. Não deveria caber ao setor privado determinar as arenas de debate político e as suas respectivas regras. Líderes mundiais não devem ficar sujeitos aos ditames de alguns bilionários da tecnologia. Se o banimento da conta de Trump ocorresse no início de sua campanha contra Biden, por exemplo, o ex-presidente teria total razão em dizer que sua derrota sofrera influência indevida, e talvez criminosa, da equipe do Twitter.

O papel das big techs em relação à liberdade de expressão no mundo é delicado. De um lado, há discursos que realmente não deveriam ser feitos — como a disseminação de notícias falsas e meros ataques pessoais a outros indivíduos. Do outro, há a difícil tarefa de saber quais notícias são realmente falsas, quais discursos realmente incitam a violência e quais outras publicações deveriam ser inclusas como contrárias às normas das redes sociais.

Por exemplo: o quanto é fake news afirmar que Bolsonaro planeja dar um golpe de estado no Brasil? Publicar “morte à burguesia” é uma incitação à violência? Uma publicação que espalha um boato de que um sujeito cometeu um crime sexual, potencialmente realizando uma calúnia e prejudicando a imagem da pessoa acusada, deve ser excluída?

São questões que resultam em diferentes respostas, e que podem ser abordadas de variadas maneiras pelas muitas comunidades virtuais existentes na internet. Sempre deve ser considerado, além de tudo, que cada rede social precisa zelar pela sua imagem diante de seus usuários, de seus acionistas e, obviamente, do Estado. São muitos os fatores, destarte, que podem influenciar no banimento de determinada conduta dentro de uma comunidade virtual.

Contudo, e enfim, a sociedade não pode ser refém de um conglomerado de empresas para se expressar politicamente. É de extrema relevância que o papel das big techs, e de outras redes sociais, sobre o processo democrático seja discutido no mundo inteiro. O povo não tem acesso aos algoritmos dessas empresas, mas pode lutar para controlar os seus poderes por meio do Estado. É a luta para deixarmos a realidade de Black Mirror apenas no universo da Netflix.

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Caio Romio Augusto
O Veterano

Estudante de Direito da FGV Direito Rio, cuiabano e quase carioca. Apaixonado por política, História, cultura e artes num geral. Cat person e fã do Al Pacino.