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O valor da palavra

João Victor de Andrade
O Veterano
Published in
5 min readMay 20, 2020

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Qualquer pessoa pode constatar a grande influência da oratória em relações comerciais, interpessoais e na política. Exemplo recente: era facilmente visível, nos debates do Partido Republicano de 2016, que Benjamin Carson apresentava um discurso coerente, dados concretos e esboços de propostas, além de ser ideologicamente alinhado ao Partido. Em contrapartida, a candidatura de Trump foi, em grande parte, baseada em expor seus adversários de maneira agressiva e caricata, além de apresentar propostas pouco críveis — como levantar um muro de milhares de quilômetros e ainda forçar um governo estrangeiro a financiá-lo. No entanto, juízos de valor à parte, o desempenho de Carson foi pífio. Com as devidas proporções, poderíamos fazer uma comparação semelhante entre Meirelles e Bolsonaro em 2018. Por que isso acontece? As pessoas não querem uma política mais estável? Maior renda? Factibilidade política?

Ouso a dizer que a política das massas se molda quase que totalmente pela forma, em detrimento do conteúdo. Isto é, a própria aparência de legitimidade precisa muito mais de forma do que de conteúdo — pensemos em como os reis, desde o passado mais longínquo, fizeram de tudo para demonstrar o seu poder no campo simbólico. Dito isso, pensemos em exemplos do século XX: por que a Coreia do Norte adota o nome oficial de República Democrática Popular da Coreia? Por que diversas ditaduras de partido único têm eleições? Este último exemplo, em especial, ilustra bem a questão, por ser completamente supérfluo, apenas evidenciando a fraude que é o processo.

Os regimes ditatoriais, especialmente os comunistas, precisam controlar o significado das palavras e dos processos para manterem sua estabilidade. Além disso, ao fazê-lo, é mais fácil desqualificar os opositores que questionem o partido ou o próprio regime, uma vez que estes seriam os verdadeiros democratas.

Suponhamos que eu possa conversar a sós com um cidadão norte-coreano que viveu sempre sob o governo dos Kim e que não tenha tido contato com conteúdo estrangeiro. Se eu lhe perguntar se os Kim são democráticos, ele provavelmente dirá que sim. Não necessariamente por medo, mas talvez porque acredite nisso. Esta é uma uma situação análoga ao mito da caverna. Quer dizer, temos aí aquele conhecimento restrito que é a única fonte de conhecimento do indivíduo, com todas as suas interpretações ficando sujeitas às restrições.

Dito isso, para que um partido autoritário passe efetivamente a subverter a democracia, ele precisa, antes de tudo, conquistar poder. Um partido antidemocrático, via de regra, representa o desejo de poucos. Falta a ele, então, conquistar o interesse de mais pessoas. Para isso, precisa convencê-los de que é “democrático”, “justo” e de que estão a lutar pela verdadeira “liberdade” do verdadeiro “povo”. Aqui temos a semente da destruição política: o populismo, o “nós contra eles” (a política identitária), a crença em agentes políticos “verdadeiros”. Como regimes tão distantes da democracia e da liberdade conseguem se apoderar desses termos? Como puderam ideias totalitárias ser legitimadas em nome dos valores liberais?

Uma condição importante para o bom funcionamento das sociedades é sempre reconhecer a possibilidade de falha, seja ela intencional ou não. É impossível nos livrarmos dela, especialmente nas versões de violência ou corrupção. Adotarmos valores como democracia e liberdade implica oficializar esse reconhecimento, aceitar a imperfeição dos sistemas e dos indivíduos; isto é, aceitar a impossibilidade de eliminarmos o mal e o sofrimento da sociedade.

No entanto, é difícil manter essa aceitação em tempos de crise — seja econômica, política, social ou moral. A sociedade passa, em linhas gerais, a exigir soluções — soluções rápidas -, esquecendo-se de que não há uma solução, uma fórmula pronta. Este é o terreno perfeito para os oportunistas ou fanáticos.

Eles apresentam “soluções”. E, já que os sistemas democráticos e livres, supostamente bons, estariam vigorando antes da crise, haveria uma conclusão apressada: ou a democracia não é boa ou o que havia antes não era democracia verdadeira. Aliado a essa conclusão, vem o desenvolvimento das ideologias: planos para a economia, para a segurança nacional, para o combate à corrupção, para o alcance de um bem maior. Todos blindados das falhas intrínsecas dos sistemas livres.

Quando os planos, como é lógico, não funcionam como deveriam, a falha não está neles, claro. Está nos conspiradores, na falta de comprometimento, nos que não concordam com “o bem maior”. E, se o novo sistema é o correto, nada mais correto e cidadão que o uso de toda a brutalidade de que o Estado é capaz para preservá-lo. Este é o ponto sem retorno; a partir daqui, medidas contra a liberdade de expressão, contra o direito de propriedade ou contra determinados grupos são validadas sob os conceitos de democracia e liberdade, distorcidos ou sorrateiramente ignorados. No entanto, apesar da “simplicidade” do processo, é difícil identificá-lo e, principalmente, interrompê-lo. Ele é constante e sutil. Seria necessário que o significado de determinados termos não seja passível de relativismo e de flexibilidade em função da ocasião para que nada no campo linguístico pudesse ser ferramenta de ditadura.

Os termos seriam fixados a definições singulares e atemporais? Uma ideia razoável seria adotarmos os conceitos originários de cada um, admitindo a evolução temporal. Mas há aqui uma questão importante: evolução não é recriação, mas adaptação gradual do que já existe antes, de acordo com as novas situações. Caso contrário, seria mera questão arbitrária, por exemplo, dizer que os irmãos Wright inventaram o avião, e não Santos Dumont — o que é, inquestionavelmente, errado. Uma máquina planadora sem autopropulsão não encontrou espaço significativo de aplicação frente ao verdadeiro avião proposto pelo brasileiro. Logo, se o termo “avião”, ao longo do tempo, presume autopropulsão, expandi-lo, hoje, para máquinas que não a têm é ilógico, é degradar a palavra. Uma palavra representa uma coisa, exatamente por excluir o que não lhe corresponde. Analogamente, dado o desenvolvimento político ocidental, a ideia de democracia liberal demanda, categoricamente, as ideias de Locke e Montesquieu — adaptadas aos nosso tempos sem perder suas raízes. Do contrário, não temos democracia liberal.

Obviamente, a língua muda; mas essa mudança geralmente ocorre de baixo para cima e não de cima para baixo. Assim como a economia planificada frente ao sistema de preços, a mudança da língua vinda de cima não guia as decisões dos líderes de acordo com as vontades da sociedade, mas força as decisões da sociedade às vontades dos líderes.

Consequência disso é a desumanização da sociedade, a perda de identidade, a aniquilação do indivíduo. Todos passam a ser engrenagens de uma máquina maior sem espaço para inovação, dissidência ou crítica. Sem esses fatores, abre-se cada vez mais o espaço para que o poder absoluto desfigure a realidade conforme lhe convier. Sem uma identidade cultural ou política, não há ação dos grupos opositores. Com a comunicação restrita, não há organização de resistência. Para quem acha que esses fatores estão sendo exagerados, basta lembrar da veemência com que os japoneses impediram os coreanos de utilizar seu idioma nativo nos anos 40.

Lembremos dos livros de George Orwell: o passado é sempre pintado como o inferno e os registros históricos são constantemente apagados, para dar credibilidade à narrativa. Não existe debate porque “não há o que se criticar”, afinal, o paraíso chegou, com toda a sua liberdade e democracia (ou não), e os críticos eram simplesmente agentes da velha ordem tentando trair a revolução.

Referências:

  1. PETERSON, J. 12 regras para a vida. Toronto. Random House Canada. 2018.
  2. HAYEK, F. The road to serfdom. Nova York. Routledge. 2001
  3. ORWELL, G. A revolução dos bichos. São Paulo. Schwarcz. 2012.

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João Victor de Andrade
O Veterano

Former Brazilian Army cadet. Economics student. Conservative.