On Liberty” — John Stuart Mill e a defesa da liberdade de expressão

Gustavo de Santana
O Veterano
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10 min readMar 10, 2021

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Nascido em Londres, em 20 de maio de 1806, John Stuart Mill foi um dos filósofos e economistas mais influentes do seu tempo, sendo indispensável a leitura e o estudo de suas obras até os dias atuais. Recebendo do seu pai todo incentivo e todas as condições necessárias para se tornar um grande estudioso da escola de pensamento antes representada pelo filósofo iluminista inglês Jeremy Bentham, Mill veio a ser um notável defensor da ética utilitarista. Além disso, como representante do liberalismo político que era, tem sido apresentado ao longo dos séculos como uma das figuras mais importantes na defesa da liberdade de expressão. No seu livro intitulado “On Liberty”, aqui utilizado como principal material de acesso aos seus posicionamentos sobre o assunto, estão presentes relevantes tópicos em sua defesa.

Antes de adentrarmos nos argumentos em favor do direito fundamental de se expressar livremente, é indispensável entendermos qual é o limite da intervenção tanto do Estado quanto da sociedade nas liberdades dos indivíduos. De acordo com Mill, a ideia de que uma democracia não precisa de limites por se tratar de um “autogoverno” é inconcebível, já que este “autogoverno não é o governo que cada um exerce sobre si, mas o que todos os outros exercem sobre cada um” (2018, pág. 13).

Portanto, é plenamente possível que a maior parte, ou aqueles que se fazem parecer a maior parte, munidos de um sentimento de que todos deveriam agir ou pensar como eles, abusem de seu poder e usem o Estado como instrumento para oprimir as minorias. Assim sendo, a tirania da maioria, como Mill nomeia o fenômeno relatado anteriormente, em referência ao pensador francês Alexis de Tocqueville, acontece quando o povo quer decidir sobre coisas nas quais eles não deveriam interferir. É necessário que isso seja combatido.

Para impedir que isso aconteça, é essencial encontrar um equilíbrio entre o poder legítimo de o Estado interferir nas vidas dos indivíduos e as liberdades destes. Dessa forma, o autor utiliza o princípio do dano como ferramenta para alcançar este objetivo. Ele aborda o citado princípio da seguinte forma:

O único propósito para o qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar danos a outros. O seu próprio bem, seja físico ou moral, não é uma garantia suficiente. […] A única parte da conduta de qualquer um, pela qual é responsável perante a sociedade, é aquela que afeta outros. (2018, pág. 23)

Assim sendo, um indivíduo só deve ter cerceada a liberdade de expressar a sua opinião, nas palavras do filósofo inglês, “quando as circunstâncias em que elas são expressas são tais que as convertem numa instigação positiva a algum ato nocivo” (2018, pág. 99). Caso contrário, silenciar a expressão de alguém seria um roubo à humanidade, uma vez que se a opinião fosse verdadeira, todos nós perderíamos a oportunidade de corrigir os nossos caminhos e crenças; se fosse falsa, seria tomado da sociedade, também nas palavras de Mill, “a percepção mais clara e a impressão mais viva da verdade, produzida por sua colisão com o erro” (2018, pág. 35).

Primeira parte:

Em seu primeiro argumento, Mill discorre sobre a falibilidade do conhecimento humano. Trazendo para o debate a hipótese de que todos estejam errados e apenas um esteja certo, o filósofo e economista inglês torna evidente que o conhecimento humano é mais constantemente falível do que queremos admitir e que o não reconhecimento desta falibilidade representa um grande obstáculo para alcançarmos a verdade. Como ele afirmou, “recusar-se a ouvir uma opinião, porque tem-se a certeza de que ela é falsa é assumir que a sua certeza é a mesma coisa que a certeza absoluta. Todo silenciamento de discussão é uma presunção de infalibilidade” (2018, pág. 36).

Seguindo por esse caminho, John Stuart Mill nos lembra de Sócrates e de Jesus Cristo. Por se expressarem de maneira contrária à opinião pública, considerada infalível, eles foram mortos, visto que opiniões dissonantes não eram bem vindas. O primeiro, julgado e sentenciado em Atenas, foi acusado, por seus opositores, de corromper a juventude e negar a existência dos deuses. Já o segundo, pregado em uma cruz no Gólgota, foi condenado pelo Império Romano a pedido de uma multidão enfurecida na véspera da Páscoa. Aqueles que queriam vê-lo morto o acusaram de blasfêmia. Dois dos homens mais importantes da história foram executados por expressarem seus ideais.

Dessa forma, podemos perceber que presunção de infalibilidade representa um grande atentado à livre discussão na medida em que a maior parte, ou a parte mais relevante, decidirá por todos, de forma unilateral e sem nenhum tipo de abertura a contra argumentos, o que é a verdade. Todavia, como pode-se afirmar conhecer a verdade se qualquer opinião que pretenda questioná-la é logo censurada? Aí reside um grande problema, uma vez que, de acordo com Mill, a única forma racional de fazer com que uma opinião alcance um status de confiabilidade considerável é a expondo a todos os tipos de perspectivas contrárias e dando total liberdade para que todos possam contestá-la.

O hábito constante de corrigir e concluir sua própria opinião confrontando-a com a de outros, tão longe de causar dúvida e hesitação ao colocá-la em prática, é o único fundamento estável para a confiança depositada nela, pois sendo conhecida de todos os que podem, pelo menos de maneira óbvia, dizer-se contra ela, e tendo assumido sua posição contra todos os contraditores — sabendo que ele buscou objeção e dificuldades, ao invés de evitá-las, e não excluiu nenhum esclarecimento que pudesse ser lançado ao assunto de qualquer parte — ele terá o direito de achar seu julgamento melhor do que o de qualquer pessoa, ou qualquer multidão, que não tenha passado por um processo similar. (2018, pág. 41)

Como pode ser visto constantemente nos dias de hoje, e nada diferente disso ocorria nos tempos passados, muitas pessoas atribuem as suas opiniões e depositam a sua confiança em uma figura quase que etérea chamada por eles de “mundo”, tentando fazer parecer com que elas, as suas opiniões, possuam um certo grau de infalibilidade. Em sua lógica, se o “mundo” pensa como elas, naturalmente elas estão certas. Entretanto, como explicitou o autor aqui trabalhado, cada um considera o mundo a parte da sociedade com a qual tem contato, e não raro, ao considerarem infalíveis as suas opiniões, as pessoas ignoram os “mundos” contrários de seus semelhantes. Como visto nos casos de Sócrates e de Jesus Cristo, atribuir algum tipo de infalibilidade a um conjunto de pessoas não torna a opinião infalível. Sob o pretexto da existência de uma autoridade na opinião compartilhada pelo coletivo, muitas atrocidades já foram cometidas ao longo da história. Em muitos casos, a voz do povo é a voz do diabo.

Além disso, John Stuart Mill questiona aqueles que concordam com os argumentos e admitem a importância da liberdade de expressão, mas discordam que ela seja “empurrada ao extremo”. De acordo com o filósofo e economista inglês:

É estranho que os homens admitam a validade dos argumentos em favor da livre discussão, mas objetem que sejam “empurradas ao extremo”, não vendo que, a não ser que as razões sejam boas para um caso extremo, elas não são boas para caso nenhum. É estranho que imaginem que não estão pressupondo infalibilidade quando reconhecem que alguma doutrina ou princípio especial deveria ser proibido de ser questionado por ser muito certo. Chamar qualquer posição de certa, enquanto há alguém que, se lhe fosse permitido, negaria a sua certeza, é presumir que nós mesmos, e aqueles que concordam conosco, somos os juízes da certeza, e juízes sem ouvir o outro lado. (2018, pág. 43)

Sendo assim, conforme Mill, as opiniões contrárias às da maioria devem não só ser admitidas, como valorizadas. Tanto o indivíduo quanto o conjunto de indivíduos, chamado de mundo por alguns, são falíveis. As opiniões da maioria não devem ser entendidas como verdades absolutas. Em suas palavras, “não se pode negligenciar nada que possa dar à verdade uma chance de nos alcançar: se a arena continua aberta, podemos esperar que, se há uma verdade melhor, ela será encontrada quando a mente humana for capaz de recebê-la” (2018, pág. 42).

Segunda parte:

Após questionar a infalibilidade do conhecimento humano, John Stuart Mill volta as suas ferramentas argumentativas para discutir os dogmas. Trazendo para o campo argumentativo a hipótese de que todos estão certos e apenas um está errado, o autor discorre sobre a importância que uma voz dissonante tem para o debate público. É relevante para o conhecimento da verdade ouvirmos opiniões divergentes, mesmo que estas sejam falsas? Para Mill, sim, pois essas opiniões ajudarão a tornar a verdade mais viva.

Fazendo uma comparação entre os cristãos do primeiro século depois de Cristo e os cristãos de sua época, o autor evidencia que a expansão do cristianismo se deu, em grande parte, devido à crença viva em seus próprios princípios. E esta permanecia forte porque eles tinham que argumentar e provar os seus pontos o tempo todo, visto que o cristianismo estava longe de ser a religião dominante, uma vez que, além de disputar o espaço com outras crenças, ele era ostensivamente perseguido nos territórios que pertenciam ao Império Romano. Em contrapartida, os seguidores contemporâneos da religião cristã, apesar de esta ter se tornado uma religião predominante e poderosa, não têm a mesma capacidade de aumentar ainda mais a quantidade de crentes que os antigos tinham, uma vez que a falta de opositores ou questionadores faz com que a crença se enfraqueça, perca o seu significado.

Como visto acima, a “convenção tácita de que princípios não são para serem debatidos” é geradora de mal para os próprios princípios. No momento em que uma opinião se torna um dogma, ela inevitavelmente se tornará uma crença morta. A ausência de discussão irá enfraquecer as bases que servem de fundamento a ela e o próprio significado desta, fazendo com que ela passe a ser apenas um senso comum, um preconceito. As pessoas frequentemente esquecem a razão de ser daquelas coisas que não estão em debate. De acordo com Mill, quando os dogmas não são questionados, “ao invés de uma concepção vívida e de uma crença viva, permanecem apenas umas poucas frases retidas pelo hábito; ou, se resta algo, é apenas sua casca vazia, perdeu-se a sua mais fina essência” (2018, pág. 72).

Assim, aqueles que antes acreditavam nessa verdade se esquecerão do porquê e deixarão de ser capazes de argumentar coerentemente para defender a sua opinião, uma vez que, além de não conhecerem os argumentos dissonantes, já que estes não são bem vindos, mal sabem sobre as bases da sua própria crença, pois não precisam defendê-la. Tentar tornar inquestionável a própria crença ou um princípio defendido por um grupo que possui a sua simpatia, seja por meios legais, por meio do linchamento moral ou de um cancelamento virtual, não representaria nenhum tipo de bem ao próprio princípio.

De acordo com professor e filósofo Gustavo Hessmann Dalaqua, quando os dogmas são questionados, ocorre a relação que a economia chama de “ganha-ganha”. Assim, considerando que o dogma é a verdade, o opositor, que argumentou erroneamente, ganhará em ter a oportunidade de rever as suas crenças; já aqueles que defendiam o princípio, também ganharão, uma vez que, além de terem a oportunidade de revisitar a razão de ser e o significado do princípio que defendem, verão este se tornar ainda mais forte.

Terceira parte:

Abordando o assunto da liberdade de expressão por outro prisma, John Stuart Mill estabelece que raramente a opinião de uma pessoa (ou uma crença compartilhada por muitos) detém toda a verdade e não incorre em nenhum erro ao mesmo tempo que a opinião da outra pessoa (ou a crença compartilhada por outro grupo) está totalmente errada. É comum que pontos de vista concorrentes contenham, ambas, certos graus de acertos e de erros. Daí pode-se perceber como é indispensável a livre discussão na busca pela maximização da verdade.

Todavia, também é recorrente na mente humana, de acordo com Mill, a unilateralidade, isto é, a incapacidade de ter um olhar plural, de observar o argumento contrário e buscar extrair dele a verdade que frequentemente nele reside. As pessoas recorrentemente são maniqueístas. É corriqueira a compra de “pacotes de opinião” fechados. Segundo o filósofo e economista inglês, “mesmo em revoluções de opinião, uma parte da verdade normalmente assenta-se enquanto a outra se eleva” (2018, pág. 83). Assim, aquilo que deveria vir para dar à verdade a oportunidade de aparecer acaba subtraindo a outra parte desta que estava vigente.

Indo nesse sentido, Mill, ao comentar sobre os cenários políticos e a importância da pluralidade de natureza dos partidos, se opõe ao que é senso comum para inúmeras pessoas, que acreditam que apenas o seu espectro político detém toda a verdade e tudo o que não está de acordo com ele deve ser combatido e eliminado. De acordo com o autor, é indispensável para a democracia a existência de partidos de “estabilidade”, sendo estes os que lutam pela preservação das conquistas alcançadas pela sociedade, e de partidos de progresso, sendo esses os que buscam por novas conquistas. Citando o autor, “cada um desses modelos de pensamento deriva a sua utilidade das deficiências do outro” (2018, pág. 85).

Assim sendo, tanto em situações nas quais todos estão errados e apenas um está certo, quanto naquelas em que todos estão certos e apenas um está errado — além das mais corriqueiras em que cada parte está parcialmente certa e errada -, a liberdade de expressão se mostra um instrumento indispensável na busca pela verdade. A presunção de infalibilidade, quando posta à prova, não pode subsistir. Aquelas ditas verdades indiscutíveis que são assimiladas pela sociedade, mesmo que certas, perdem a sua razão de ser e o seu significado quando não são discutidas. Por fim, a unilateralidade não traz nenhum benefício à busca pela verdade, uma vez que raramente ela está totalmente concentrada em apenas uma opinião. Dessa forma, como sustenta John Stuart Mill:

No estado presente do intelecto humano, somente através da diversidade de opinião há uma chance de uma disputa justa para todos os lados da verdade. Quando há pessoas que são uma exceção à aparente unanimidade do mundo sobre qualquer assunto, mesmo que o mundo esteja do lado certo, é sempre provável que os discordantes tenham a dizer alguma coisa digna de ser ouvida, e assim a verdade perderia alguma coisa pelo seu silêncio. (2018, pág. 87)

Referências:

MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. 1. ed. São Paulo: VIDE Editorial, 2018.

DALANQUA, Gustavo Hessmann. A defesa milliana da liberdade de expressão. UFP. Dispinível em: <file:///D:/Nova%20pasta/Documents/2265-Texto%20do%20artigo-4595–1–10–20130423%20(1).pdf>

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