Onde está Djavan?

Davy Albert Dutra de Andrade
O Veterano
Published in
7 min readFeb 5, 2024

No último final de semana(27–28/01), fãs de alguns artistas (Djavan, Maria Bethânia, John Lennon e Ana Carolina) levaram um susto ao verem desaparecer do catálogo do Spotify uma dezena de suas músicas. Diversas gravações marcantes dos cantores estavam indisponíveis na famosa plataforma de streaming, sem nenhuma explicação aparente. E, apesar de tudo parecer uma pura coincidência, a data do ocorrido é também aniversário de 75 anos de um dos maiores compositores e intérpretes da música popular brasileira, um dos afetados pelo erro.

Fonte: X (antigo Twitter)

Relevante no cenário musical mundial, dono de uma voz marcante e de uma mão direita inovadora e ágil no violão, trata-se do alagoano Djavan Caetano Viana.

Fonte: X (antigo Twitter)

Nascido no ano de 1949, desde muito cedo Djavan via sua mãe (lavadeira na cidade de Maceió) embalar sua rotina do dia-a-dia por lindas canções. Poderia se dizer, para fins poéticos, que foi nessa época o despertar das suas aspirações para artista e do amor à arte de costurar os sons em melodias e acordes. Ao contrário disso, é muito mais provável que tenha sido no caminhar da sua trajetória o encontro de Djavan com inequívoca vocação: por anos flertou com a possibilidade de ser um jogador profissional de futebol (inclusive, ao que se sabe, não carecia desde pequeno das habilidades necessárias para ser o próximo craque nacional), e suas condições financeiras difíceis na capital alagoana não o deixaram ter boa formação na juventude. Não chegou a obter uma graduação, e também não possuía condições para estudar música com algum professor, de maneira que foi alfabetizando a si mesmo nas pautas e cifras que ele percebeu sua aptidão e gosto para a coisa. Levava jeito, afinal!

Esse texto não se valerá de contar toda a trajetória, em detalhes, de tal ícone nacional. São 75 anos de muito proveito, altos e baixos e amor à música e ao Brasil. É válido saber que ele perdeu seu pai aos 3 anos de idade, de maneira que foi criado apenas pela mãe. Na juventude, podou seu flerte com os gramados e se pôs a sonhar com os louros de ganhar a vida na capital carioca, onde faria brotar uma música nova, antropofágica, simbolista e espetacularmente popular.

A nova voz, o novo violão e a nova música

A arte de costurar os sons é sem sombra de dúvida uma maneira precisa de destacar o que faz Djavan no seu ofício desde o primeiro disco, “A voz, o violão e a música de Djavan” (1976), produzido pelo conhecido Aloysio de Oliveira. De alguma maneira, as composições e interpretações de Djavan, desde muito cedo, possuíam um quê de extremamente espontâneas, naturais. É como se houvesse um pé-de-música no quintal de Djavan, e de quando em quando, o pé produzisse frutos, Djavan apanhasse alguns, selecionasse os que não estavam “bichados” e lançasse em um disco novo. O cenário musical e as influências nacionais e internacionais de Djavan de fato surtiram muito efeito em toda a sua produção. Eram retalhos que ele coletava aqui e ali e unia à sua experiência pessoal muito única com a música (já que havia sido autodidata). Assim como Clarice Lispector buscou se desamarrar de padrões literários para expor o cerne das questões existenciais e íntimas que precisava contar, ele o fez. Ao invés de contar, claro, o que ele fez foi cantar!

E é de maneira tão habilidosa, voltando à costura, que ele une os retalhos; são tão bem selecionados, recortados e muitas vezes reformados; que Djavan consegue, no fim, um resultado que em nada se parece uma colcha de retalhos. Todo o seu cancioneiro é da mais alta costura, sofisticado, ao passo que traduz simultaneamente os anseios mais humildes e naturais do sentimentos humano.

Você entende Djavan?

Ritmos sincopados, a forma popular com que canta seus versos (adaptando acentos das palavras como bem quer para rimar e ser natural de cantar), as melodias de vogais prolongadas e harmonias inesquecíveis, muitas vezes, deixam os fãs cantando letras sem saber de fato do que estão falando.

Essa é uma impressão comum quando se ouve Djavan: canta-se junto, porém é primordial estar atento e não se perder no seu fluxo de pensamento. Tal como os grandes poetas simbolistas (Cruz e Souza, Alphonsus de Guimaraens), as imagens evocativas e a sinestesia são tudo para a composição de uma canção djavaneática. Muitas vezes, isso gerou crítica negativa em jornais e acusações ao cantor, de estar produzindo letras sem sentido, aglomerando palavras que combinavam sem de fato se preocupar com o sentimento e o entendimento que deveriam passar. Para um cenário musical de grandes compositores academicistas, graduados (Caetano, por exemplo, era graduado em filosofia; Chico, em Arquitetura; para citar alguns dos nomes), isso era natural de se pensar. O que talvez a crítica não percebesse era que, por não ter ocupado tanto esses espaços e ser dotado de uma liberdade magistral na sua obra, não era com eles que o poeta queria dialogar…

O diálogo de Djavan era com tudo que era humano e permeava o Brasil, nu e cru. Era com a mais sincera retratação dos desejos, conquistas e decepções que enfrentamos de Norte a Sul: se pode ser difícil avaliar o valor literário do “Amar é um deserto e seus temores; Vida que vai na sela dessas dores”, nada é mais natural para o desiludido pelo amor, que talvez trabalhe cuidando de gado em uma fazenda e, no seu cavalo, rumando o horizonte, tente achar conforto para sua dor e para um recomeço. O que para alguns pode parecer anedótico, em “Açaí, guardiã; Zum de Besouro, um imã; Branca é a tez da manhã”, é uma linda conexão entre a natureza e a espiritualidade humana, nessa famosa canção sua, “Açaí”, homenageando o fruto guardião do sustento na região amazônica. Onde há, inclusive, uma bola curva de interpretação, em “E o meu Jardim da vida; Ressecou, morreu; do pé que brotou Maria; nem Margarida nasceu” (muitos veem como uma metáfora para uma filha que Djavan teria perdido com a esposa Maria Aparecida dos Santos Viana), existe apenas um lamento inventado por ter perdido um grande amor ao cometer um erro crasso no relacionamento. Quem nunca? Valei-me, Deus!

Esse último verso citado é da canção “Flor-de-lis”, uma das canções de Djavan a encontrar espaço no cenário internacional da música. A versão em inglês, “Upside Down”, lançada em 1982, obteve bastante êxito e o colocou em evidência entre os artistas brasileiros que conseguiram se lançar para o estrangeiro no século passado (ao lado de Tom Jobim). Outro exemplo da sua internacionalização foi a parceria com o famoso cantor de jazz e blues Ray Charles, na canção “Samurai”.

E no Brasil, onde está Djavan?

Após atingir sua maturidade musical, Djavan construiu o próprio selo e gravadora, a Luanda Records, e com ela tem sido produtor, compositor, arranjador e intérprete das suas obras nas últimas 2 décadas. Seu último disco, “D”, tem sido apresentado na “Turnê D” nos últimos meses, sendo que restam ingressos para Belém — PA, Fortaleza — CE, João Pessoa — PB, Natal — RN, Recife — PE, Lauro de Freitas — BA, Rio de Janeiro — RJ, Cuiabá — MT, Campo Grande — MS, São José — SC, São Paulo — SP, Goiânia — GO, Belo Horizonte — MG, Uberlândia — MG, e terá fim em Portugal, nas cidades de Oeiras e Porto.

Claro que os R$ 230,00 (entrada social para o show da turnê) não são tão acessíveis a todos, mas, no Rio de Janeiro, o espetáculo “Djavanear: um tanto flor, um tanto mar” do diretor e produtor Eduardo Barata conseguiu saciar a sede por Djavan. Uma mega produção musical, que comemora o cancioneiro e a trajetória de Djavan sob o olhar feminino (há apenas mulheres como atrizes da produção), Djavanear está em cartaz até 04/02 na capital carioca, Sesc Copacabana, pelo preço de R$30,00 (R$15,00 meia entrada). Feito em um Teatro Arena, une 40 canções do homenageado e cumpre o papel de contar sua história com bastante poesia, amor e leveza.

Por fim, onde mais podemos ouvir Djavan? Os artistas e suas canções, do início desse artigo, só ficaram fora do ar temporariamente com o bug relatado no Spotify, e já estão todos disponíveis novamente. Portanto, acima de tudo, Djavan está na casa e rotina de todos nós, bastando acessar pela sua plataforma de streaming favorita e aproveitar o vasto e honesto cancioneiro de Djavan Caetano Viana!

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Davy Albert Dutra de Andrade
O Veterano

Poeta de tempos em tempos, matemático por ofício (ou tentando ser um) e primo do Carlos Drummond de Andrade