Opinião | Donda

No Olho Do Furacão

LUCAS SALLES PITHON MACEDO
O Veterano
7 min readSep 22, 2021

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De volta do grande além, como o Filho do Homem ou o filho de Donda?

— Jay Electronica

Em latim, a palavra “branco” é grafada como albus, ou, em sua forma neutra, album. Na política romana, album era o nome dado às tábuas em branco para a inscrição de listas, de documentos e da história. Hoje em dia, o termo álbum é popularmente usado para designar um conjunto de fotografias ou canções, e, assim como em Roma, um corpo de trabalho, o registro de uma história. No dia 29 de agosto, o artista Kanye West lança seu décimo álbum de estúdio, Donda, e imediatamente, antes mesmo de que se inicie de fato a música, o ouvinte pode notar uma característica marcante do projeto: a capa do disco é inteiramente preenchida pela cor preta. De início, pode-se pensar que é uma capa vazia, sem substância. Porém, levando-se em conta a vida do artista, o significado do projeto e a própria noção do que é um álbum, é evidente que se trata não de um projeto nulo de uma figura polêmica, mas de uma tábua inteiramente preenchida, um transcrito histórico, pessoal e cultural do que é viver no olho do furacão.

O álbum se inicia com quase um minuto de repetição do nome Donda. Ainda se teoriza quanto ao significado, mas acredita-se que sejam imitações dos batimentos cardíacos de Donda West, mãe de Kanye, antes de sua morte em 2007. Inicia-se a experiência com a lembrança da inspiração do álbum, a invocação do propósito da obra: a lembrança e celebração de Donda West.

O álbum se desenvolve ao longo de uma hora e 48 minutos, uma experiência que, além de longa, é densa. A última obra de Kanye, o também gospel Jesus is King, acaba sendo mais refrescante na questão da coesão, tendo momentos de leveza, lamento e louvor balanceados e ainda assim impactantes dentro de somente 27 minutos. Esse equilíbrio de sentimentos e momentos acaba fazendo muita falta em Donda, especialmente levando-se em conta a duração e a carga sentimental do trabalho. Não há momentos perceptivelmente alegres ou otimistas no mesmo nível de trabalhos anteriores do artista (como as canônicas Ultralight Beam e Jesus Walks), que elevem o ouvinte ao divino com um sorriso no rosto. Ao invés disso, há 108 minutos de rap quase constante e adoração comportada — às vezes até contida — com traços do som industrial-urbano que Kanye adotou nos álbuns Yeezus e The Life Of Pablo. O profeta Kanye West, que já se auto-denominou o espresso para fazer com que as pessoas se tornem fãs de si mesmas, pinta agora um retrato tenebrista e exaustivo de sua adoração, como um quadro de Caravaggio excessivamente grande para a parede de um museu.

A Captura de Cristo (1602), Michelangelo Merisi da Caravaggio. Fonte: Wikimedia Commons

Contexto

O lançamento de Donda, não surpreendentemente, é marcado mais por seu contexto do que pela música em si. Primeiro, destaca-se a presença de duas personae non gratae no último evento de exibição do álbum: o rapper DaBaby, que recentemente teve shows cancelados e forte repressão nas redes sociais após comentários contra a comunidade LGBT e pessoas que convivem com o HIV, e Marilyn Manson, que enfrenta múltiplas acusações de abuso sexual e estupro. A presença dos dois, tanto no evento quanto no álbum em si — DaBaby é creditado em Jail pt 2, e Marilyn, nas duas versões da faixa — , gerou fortíssima reação negativa nas redes sociais. De acordo com Kanye, DaBaby foi chamado pois foi a única pessoa que disse publicamente que votaria em Kanye durante sua candidatura para as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2020, porém a presença de Marilyn não chegou a ser comentada.

Outro aspecto antecipado pelo público foi a influência no álbum do divórcio entre Kanye e Kim Kardashian, protocolado neste ano, após um casamento que exerceu grande impacto na vida pessoal e profissional dos dois. Ciente da atenção pública no evento e em sua relação, o casal decidiu teatralizar sua ligação durante o último evento de audição do álbum, com Kim entrando vestida de noiva durante a última performance (No Child Left Behind). Apesar de não se saber quanto ao estado do divórcio, Kim alegou no mesmo dia que não abriria mão do sobrenome West.

Além disso, semelhante a tudo que o cantor faz, Donda é rodeado (mesmo que não diretamente) dos escândalos passados e falas polêmicas de Kanye, como sua teoria de que a escravidão nos EUA foi uma escolha e seu apoio ao ex-presidente americano Donald Trump. Alguns, como explicitado pelo portal Pitchfork, acreditam que a música de Kanye West está se tornando cada vez mais um detalhe em meio a sua personalidade pública, “alguns sons extra para se ter como brinde”.

A obra

Ainda que o álbum seja sobre Donda, um dos pontos mais incômodos é exatamente a escassa presença da figura dela, que tinha aparições — por meio de gravações de sua voz em discursos e entrevistas — mais frequentes e marcantes nas versões iniciais, como visto no primeiro evento de audição do projeto, no Mercedes Benz Stadium de Atlanta. De forma mais notável, sente-se falta da faixa Never Abandon Your Family (“Nunca Abandone Sua Família”). A canção, ao som da qual Kanye ajoelhou-se diante de 49.000 pessoas durante o evento ao vivo, fala sobre como ele não quer abandonar seus filhos tal como seu pai o abandonou, sendo a canção também a primeira menção pública de sua separação de Kim Kardashian.

O álbum, como salientado pelas principais resenhas, não parece estar terminado. Além de ter sido lançado antes da hora pela gravadora (de acordo com Kanye), o projeto apresentou, nos primeiros eventos de audição, colaborações e até mesmo canções inteiras que não são vistas na versão final.

A obra, de fato, demonstra falta do tecido conectivo que o artista demonstrou saber fazer, como visto em seus projetos anteriores. O álbum, quando visto de longe, parece um gigante compilado de canções unidas por ocasionais referências a Donda e frequentes menções a Jesus.

A produção, apesar das ocasiões de incompletude, tem momentos de brilho. Um dos movimentos mais memoráveis do trabalho é a faixa Believe What I Say, que utiliza trechos da eterna Doo Wop (That Thing), de Mrs. Lauryn Hill: faz-se um dos intervalos mais alegres do álbum, uma pausa soul para a dança em meio à avalanche. Além disso, canções como Off The Grid, Heaven and Hell e Keep My Spirit Alive atingem a excelência na ambientação do ouvinte, transportando-nos através dos portões do culto urbano-futurista que o álbum promete.

Uma característica marcante é a qualidade das colaborações. Kanye West é conhecido por sua capacidade lírica impecável — mas ainda assim controversa — , porém alguns dos maiores versos do álbum saem dos convidados. Um exemplo certamente cômico é o primeiro verso de Off The Grid, que, cantado durante apenas 27 segundos por Playboi Carti, acaba sendo o ponto mais alto dos (ainda assim primorosos) quase seis minutos de canção. Outro destaque é o verso de Jay Electronica nas duas versões de Jesus Lord, no qual mistura-se islamismo, catolicismo, críticas ao governo americano e até mesmo o Pantera Negra em lírica monumental. Kanye ainda tem seus momentos de brilho, mas dessa vez não possui protagonismo nas palavras no mesmo nível de seus álbuns The Life of Pablo e Late Registration, por exemplo.

Todavia, é ainda assim inegável a qualidade do conjunto. Kanye consegue manter a coesão dentro do estilo das canções (ainda que se torne exaustivo) e apresenta algumas surpresas, como a faixa Hurricane, que estaria em seu álbum Yandhi — sucateado devido a incompletude e eventual conversão do artista — e recebeu nova produção, mais polida, sob a voz de The Weeknd.

Em última análise, o problema maior do álbum acaba não sendo necessariamente as canções em si, mas a união das peças para formar um conjunto contínuo, uma narrativa, uma verdadeira experiência. A maioria das canções proporciona um sentimento alinhado com o tema do álbum, mas o excesso de partes prova exatamente que a coesão não vem da semelhança, mas da conversa entre faixas, da completude que, às vezes, exige mudanças de tom e sonoridade. E, em Donda, parece que Kanye se conteve ao que sabia, o que é incomum ao artista: por exemplo, em The Life of Pablo, há momentos de alegria, ostentação, brincadeiras e tristeza muito diferenciados, porém condizentes com a narrativa da fama e da vida urbana retratadas na obra.

Kanye West durante apresentação do álbum Yeezus, em 2013. Fonte: Wikimedia Commons

O que será de Kanye West?

A vida e obra de Kanye West provam que falar de seu futuro é falar também do futuro da cultura. Inúmeras vezes, Kanye já se transmutou, se dobrou e se desdobrou, e todas as vezes o mundo parou, seja para louvar, para apedrejar ou simplesmente para contemplar. O Kanye West de hoje é o oposto daquele de cinco anos atrás, que por sua vez era o oposto daquele do início de sua carreira.

Donda serve não apenas como a consolidação de um Kanye West convertido e batizado, mas como uma guinada transcendente e sublime em sua arte, mesmo que, por ora, conturbada. A mudança em Kanye agora não é em estilo ou estética, porém em espírito. Ainda há lugar para o novo Kanye na indústria? O que será de um artista gigante em uma época de músicas cada vez mais curtas? Há lugar para a santidade na ventania que ronda a persona de Kanye West?

Todas essas perguntas só serão respondidas com o tempo. E, até lá, nos resta somente a contemplação do fluxo dos fatos, o louvor melódico e a admiração dos cônsules da arte enquanto a história de nosso album cultural é escrita — ou melhor, cantada.

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LUCAS SALLES PITHON MACEDO
O Veterano

Graduando em Letras — Português e Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e sommelier de caldo verde.