Galeria de Espelhos do Palácio de Versalhes. Fonte: Wikimedia Commons.

Opinião | Lições ao Jovem Rei.

Considerações políticas e econômicas para todo governante.

Pedro Gaya
O Veterano
Published in
8 min readAug 19, 2020

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Para explorar os meandros de um assunto, a escrita teórica é ideal por excelência. Ela dispõe matérias primas, meios e fins com clareza; sintetiza e expande conforme necessidade ou obrigação científica; a tudo tenta racionalizar e clarificar. Dito isso, há um campo de raciocínio que um texto puramente teórico não pode explorar. A ficção é um gênero exclusivo da criação e, sem a criação, não existe. Cada autor, da fantasia à comédia, é um pequeno deus com um mundo de suas palavras. E cada mundo tem, aí sim, um conteúdo de possível relevância teórica, por mimésis [1] à realidade ou por responder as nossas mais curiosas hipóteses.

Drácula, magnum opus do sr. Stoker, é, por exemplo, uma grande obra para explorar a imortalidade. Hamlet, para a vingança; Macbeth, a ganância; Peter Pan, a infância; A Divina Comédia, todo um leque de temas pertinentes à civilização ocidental. Ora, mas só citei livros, quando o assunto deste texto é um conto. Mais precisamente, O Jovem Rei, do sr. Oscar Wilde. Há muito o que se dizer deste texto para os políticos modernos de todas as nações e, portanto, tomo aqui uma fala própria sobre o assunto.

I. Do ouro e do mármore.

Estátua colossal de Antínoo (catamita do imperador Adriano) como Dionísio-Osíris. Fonte: Wikimedia Commons.

Invocando os sábios pensamentos de sir Roger Scruton, podemos dizer que certas discussões são espinhosas, pois

em nossa cultura democrática, as pessoas geralmente pensam que é ameaçador julgar o gosto de outra pessoa. Alguns até se sentem ofendidos pela sugestão de que existe uma diferença entre bom gosto e mau. […] Mas isso não ajuda ninguém. Há padrões de beleza que têm raízes firmes na natureza humana […].

Coincidentemente — ou não — , Scruton logo segue com uma citação de Wilde. Sem embargo, ela não nos será relevante. O ponto relevante aqui é a diferenciação entre o que é belo e o que não é, não pelo apetite, mas pelo padrão da própria natureza humana. E aí está uma lição do conto para todos aqueles que são, pelo menos um pouco, o jovem rei a ser coroado: a ardente paixão pela beleza. Ou, ainda, pelo belo, o bom e o verdadeiro; tomando a tríade de valores supremos levantados por sir Scruton.

A rainha Vitória iniciou o modelo de monarca que reina, mas não governa. O que isso quer dizer de fato, como colocaria T. Roosevelt, é que a coroa tornou-se um bully pulpit [2] — mas não do mesmo tipo. Assim, ao amar a beleza, ao mirar a estátua de Antínoo (catamita do imperador Adriano), ao contemplar o efeito da lua sobre o mármore de Endimião (rei de Élis), ao comissionar a túnica de ouro, a coroa de rubis e tudo mais, o rei está guiando a estética pública pelo exemplo. A série The Crown, por exemplo, nos dará um outro monarca que justamente conhece bem o papel de liderar pelo exemplo, mas o caso não é — ou não deveria ser — exclusivo deste sistema político. Isto é: que exemplo de beleza, bondade e honestidade nos dá Brasília? Mesmo sem resposta, esse não é o ponto mais importante do conto.

II. Das Restrições.

Representação satírica sobre os primórdios da Revolução Francesa, com o Primeiro e o Segundo Estados sendo carregados pelo Terceiro-Estado. Domínio Público.

Não obstante a preparação, três sonhos tem o rei e cada um lhe dá ciência do sofrimento envolvido em uma de suas encomendas.

Mas ele falou-lhes novamente, com severidade, e disse: “Levem estas coisas embora daqui e escondam-nas de mim. Embora seja o dia da minha coroação, eu não as usarei. Pois no tear da Tristeza, e pelas mãos alvas da Dor, este meu manto tem sido tecido. Há Sangue no coração do rubi, e Morte no coração da pérola.” E contou-lhes os seus três sonhos. [3]

Há bondade no coração do rei. Ele repudia a realidade lúgubre com que sonhou. Abandona seu fino traje pelo manto de couro, mas ainda o homem da multidão e o bispo lembram-nos do provérbio: “o inferno está cheio de boas intenções” [4]. Quer dizer, porquanto seja bom que o governante saiba das rugas de seu povo, será inócua — ou até prejudicial — sua ciência se não souber o que fazer com ela. Não apenas de problemas vivem os homens, pois à maioria escapa as corretas soluções.

E um homem saiu da multidão e falou-lhe [ao rei] amargamente e disse, “Meu senhor, não sabeis que da vida luxuosa do rico depende a vida do pobre? Do seu fausto somos alimentados e os seus vícios trazem-nos pão. Labutar para um mestre inclemente é amargo, mas não ter nenhum mestre a quem laborar é ainda mais amargo. Pensai que os corvos alimentar-nos-ão? E que solução tendes para tal? Querei dizer ao comprador, ‘Deverás comprar por tal quantia’ e ao vendedor, ‘Deverás vender por tal preço’? Não creio. Portanto, voltai ao vosso palácio e colocai a vossa túnica púrpura e o linho refinado. Que sabeis sobre nós ou o que sofremos?” (WILDE, 2013, p. 249)

Nos diz a sabedoria do vulgo, do senso comum, que o homem que fala ao jovem rei o faz com a verdade. E, se há um fato sine qua non [5] para a condução lúcida de qualquer assunto, é que a verdade nunca, nunca, deve ser secundária. Aliás, a fala remete à sentença de Roberto Campos: “O mundo não será salvo pelos caridosos, mas pelos eficientes”. Demagogia, idealismo e demais formas ignorantes à realidade nunca darão bons resultados. Essas são as boas intenções, quando o são, no inferno. Não adianta um político definir que criará determinado direito, pois há uma realidade muito relevante chamada restrição orçamentária. Ela não se aplica apenas aos indivíduos, mas à toda entidade capaz de adquirir e gastar dinheiro. Os gastos da coroa do nosso jovem rei dependem de uma arrecadação de impostos [6]. Assim, como o gasto da coroa é o gasto de impostos, não faz realmente sentido que o plebeu defenda que o rei gaste. Dito isso, de algum gasto vem a renda de todo indivíduo não criminoso e, portanto, em certa medida, esta última fala está correta. Ademais, a clara crítica ao controle de preços também prenuncia o seu desastre econômico. Em todos os momentos da história (e governos já tentam isso há mais de 2.000 anos), controles de preços serviram apenas para desincentivar produtores e enxugar a oferta, incapaz de ter lucros com os preços legais. E, mais do que isso, a tentativa desesperada de legislar o caminho para a melhora das condições de trabalho (proibição de demissão, salário mínimo, encargos, …) tende a ser prejudicial. Ao onerar a folha salarial, o governo configura várias situações em que o custo de oportunidade de contratar alguém se torna demasiado alto e, portanto, uma nova massa de desempregados estruturais é criada — note que esta não é a massa de desemprego natural. Em suma, a fala vulgar ao jovem rei lhe provê objeções econômicas à sua nova atitude. Em toda sua boa intenção, a decisão real em nada é positiva ao rei ou ao reino — ainda mais considerando que o traje já estava pronto. Dito isso, o mancebo segue cavalgando para a catedral da coroação e lá encontra a objeção do bispo:

Quando o bispo terminou de ouvi-los, franziu as suas sobrancelhas, e disse, “Meu filho, sou um homem velho, estou no inverno dos meus dias, e sei que muitas coisas perversas são feitas neste vasto mundo. Ladrões ferozes descem das montanhas e levam as criancinhas e vendem-nas aos Mouros. Os leões deitam-se à espera das caravanas e saltam sobre os camelos. Os javalis selvagens escavam o trigo no vale e as raposas roem os vinhedos sobre a colina. Os piratas assolam o litoral e queimam os barcos dos pescadores e tomam-lhes as suas redes. Nas salinas vivem os leprosos; têm casas de vime trançado e ninguém pode aproximar-se deles. Os mendigos vagueiam pelas cidades e comem a sua comida com os cães. Podeis fazer com que essas coisas não aconteçam? Tomareis o leproso como vosso companheiro de quarto e sentareis o mendigo em vossa mesa? Cumprirá o leão a vossa vontade e o javali selvagem obedecer-vos-á? Não é Aquele que criou a miséria mais sábio do que vós? Portanto, não louvo-vos pelo o que fizeste, mas desejo-vos que cavalgueis de volta ao Palácio e alegreis o vosso rosto, que coloqueis a vestimenta que cabe a um rei, e, com a coroa de ouro, coroar-vos-ei, e porei em vossa mão o cetro de pérolas. E quanto aos vossos sonhos, não penseis mais neles. O fardo deste mundo é grande demais para um homem carregar e a dor do mundo é muito pesada para que um coração a sofra.” (WILDE, 2013, p. 249–251)

O eclesiástico, em ampliação da visão da multidão, acrescenta a impotência humana mediante o estado de natureza: a miséria completa. Enquanto é possível para o rei ou para a caridade abrigar moradores de rua em uma residência comunal, nenhum deles pode comandar animais ou pode garantir o abrigo de todos. Há um limite para as boas ações, imposto justamente pela restrição orçamentária. Aliás, somente pode ser caridoso o homem que tenha alguma posse com a qual sê-lo.

Visto isso, algo deve saltar aos olhos para o leitor atual. O mundo de atrocidades apresentado pelo bispo ainda — meio que — existe, mas desde que o sr. Wilde escrevia até hoje, as taxas de pobreza extrema diminuíram de aproximadamente 90% para menos de 10%. O que aconteceu? Sabemos que nenhum rei foi objeto de milagre e foi coroado em um manto de luz, como ao fim do conto. O verdadeiro ocorrido foi um processo que a profa. McCloskey chama de O Grande Enriquecimento. Há um grande debate de história econômica sobre diversas especificidades deste processo, mas não necessariamente com esta nomenclatura. Sem embargo, há alguma causalidade clara com o processo de produção estandardizada resultante da Revolução Industrial. Confirmamos a máxima supracitada de Roberto Campos. Notoriamente, dividir o bolo é inócuo, cabe sempre aumentar o bolo. E, se o processo favoreceu inicialmente o mundo ocidental — como aponta um outro nome, “A Grande Divergência” -, temos hoje um processo de convergência, se não política, econômica que alguns já chamam de Grande Convergência.

Notas de Rodapé:

[1] Diz-se aquilo feito em imitação.

[2] Termo cunhado pelo presidente americano Theodore Roosevelt para explicar a presidência como uma plataforma de discurso para advogar uma agenda. No caso sugerido, para apresentar o exemplo pessoal.

[3] WILDE, Oscar. Contos Completos. Trad. Luciana Salgado. São Paulo: Landmark, 2013. p. 247

[4] Tendo como fim completar o entendimento, uma versão alternativa e expandida do provérbio segue assim: “a estrada para o inferno está cheia de boas intenções, mas o céu está cheio de boas obras”.

[5] Aquilo que é condição existencial de algo.

[6] Há outras duas formas do governo gastar dinheiro. Ele pode “imprimir” mais dinheiro, causando o indireto imposto que chamamos de inflação — que, em verdade, é uma reestruturação de renda em valores reais pela sociedade segundo a determinação do governo. Ademais, pode também criar dívida, com a óbvia oneração futura.

Leitura do Conto:

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