Opinião | O Currículo Oculto do Homeschooling

Direito dos pais ou dever do Estado?

Gabriel Thomas
O Veterano
16 min readAug 18, 2021

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Por NeONBRAND em Unsplash. Disponível em https://unsplash.com/photos/zFSo6bnZJTw.

Dois meses já se passaram desde que a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou um Projeto de Lei que dá respaldo jurídico para a prática de homeschooling — também conhecida como educação/ensino domiciliar –, mas não houve ainda votação no Plenário da Câmara para decidir essa medida. De autoria das deputadas federais Chris Tonietto (PSL-RJ), Bia Kicis (PSL-DF) e Caroline de Toni (PSL-SC), o PL 3262/19 consiste, mais especificamente, na modificação do Código Penal para que responsáveis legais que apliquem a metodologia do homeschooling com seus filhos em idade escolar e não os matriculem em unidades regulares de ensino fundamental ou médio não sejam enquadrados por abandono intelectual.

Lugar de criança é na escola?

O modelo de aprendizagem conhecido como homeschooling nada mais é do que um método educacional em que a educação da criança e do jovem é feita majoritariamente dentro de casa, seja pelos responsáveis legais ou por tutores contratados à parte. Ganhando força no final do século XX em reação à compulsoriedade da escola, pública ou privada, o movimento de defesa do homeschooling abrange famílias que entendem ser direito delas, e não do Estado, a transmissão de conhecimento aos seus filhos. No Brasil, essa prática reside atualmente em um limbo jurídico, na medida em que não é expressamente proibida por lei, mas tampouco autorizada. Em 2018, no entanto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que, segundo a legislação atual — que declara a educação como fruto da cooperação entre a família e o Estado –, os responsáveis legais não têm direito de adotar homeschooling para suas crianças. Apesar da proibição, entretanto, estimativas da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) apontam que aproximadamente 17 mil famílias adotavam essa metodologia.

Desde o início da pandemia de Covid-19, o homeschooling está em franca expansão no Brasil. De acordo com a Aned, a quantidade de lares que empregam o ensino domiciliar possivelmente já alcançou o patamar de 30 mil famílias, com um crescimento anual estimado de 55% nos últimos anos. Não há dúvidas de que a necessidade das aulas remotas em razão do distanciamento social tenha levado muitos pais a se aproximarem da educação de seus filhos, em especial dos mais novos. Diante desse maior acompanhamento das atividades escolares, o debate sobre o homeschooling, em trâmite na Câmara dos Deputados desde 2012, ganhou maior destaque e passou a figurar mais recorrentemente nas discussões da casa legislativa, chegando enfim à aprovação do referido PL na CCJ dois meses atrás.

Ilustração por Punch (revista dinamarquesa) em domínio público e disponível em https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Representation,_Punch_Denmark,_1889.jpg.

A quem interessa o homeschooling?

Para o professor Michael Romanowski, é falsa a visão bastante disseminada de que o homeschooling atenderia apenas a motivações religiosas. Segundo o pesquisador, essa proposta metodológica atrai uma demografia bastante diversa, que se divide em dois grupos, distintos quanto à razão que justificaria a adoção do ensino domiciliar: os ideológicos e os pedagógicos.

Os ideológicos consistem nas famílias segundo as quais a escola abriga influências negativas e danosas para os seus próprios valores, de tal modo que adotam o ensino domiciliar visando à garantia de que suas crianças não tenham contato com visões morais e éticas tão distintas daquelas do ambiente familiar. Esse é o grupo em que se inserem os defensores de uma educação mais pautada nos valores religiosos seguidos pela família em questão, bem como aqueles que criticam uma suposta doutrinação de cunho esquerdista que ocorreria na educação básica. Em reportagem para o Zero Hora, a pedagoga Gê Paier revelou que adota há 6 anos a educação domiciliar cristã com sua filha Alícia. Gê relatou que a decisão de retirar a filha da educação formal envolveu “o incômodo ao perceber que as instituições de ensino cristãs onde seus filhos estudavam permitiam que se tocasse funk no recreio”.

O grupo dos homeschoolers pedagógicos, por outro lado, não está tão preocupado com o conteúdo com o qual as crianças entrariam em contato na escola, mas com a forma de ensino e a inserção de seus filhos no ambiente escolar. Para esses pais, a escola é incapaz de oferecer um ambiente acadêmico saudável, e tampouco de adotar métodos de ensino adequados a crianças com particularidades de aprendizagem e necessidades especiais, como as portadoras de deficiência. Em reportagem para o Jornal O Globo, a mineira Kátia Nunes revelou empregar educação domiciliar com seus filhos de 7 e 11 anos em razão da profissão do marido, que levou a família a mudar de cidade 4 vezes nos últimos 3 anos. Na visão da enfermeira e gastrônoma, “Mesmo as famílias educadoras apoiadoras do governo não são, em sua maioria, fanáticos que ensinam criacionismo aos seus filhos. Não vejo essa loucura fundamentalista dentro da comunidade homeschool. Essa é a minha experiência”.

Os defensores do projeto de educação domiciliar atualmente em pauta na Câmara dos Deputados, no entanto, apresentam argumentos mais do grupo ideológico do que do pedagógico para criticar a escolarização compulsória. Para a deputada federal Caroline de Toni (PSL-SC), “O que a gente quer é o respeito às famílias e ao direito de escolha das famílias. É óbvio que a esquerda vai ser contra, porque eles não querem que isso seja aprovado porque seria uma alternativa à mentalidade esquerdista imperante no sistema de ensino brasileiro”.

Nesse sentido, a regulamentação do homeschooling no Brasil tornou-se uma das principais bandeiras de Jair Bolsonaro no que se refere à pauta educacional: da lista enviada pelo presidente em março de 2021 com 35 assuntos a serem discutidos pelo Congresso, o ensino domiciliar foi o único ponto levantado no escopo da educação — apesar de impactar apenas 0,04% dos estudantes do país. De acordo com a professora e pesquisadora Luciane Barbosa, a prioridade dada ao homeschooling pelo governo federal deriva de sua agenda conservadora e cristã. Em estudo da Universidade de Harvard, apontou-se que, das aproximadamente 2 milhões de crianças em educação domiciliar nos Estados Unidos, mais da metade vem de famílias cristãs fundamentalistas. Mais do que por mero interesse ideológico, especula-se que a defesa ferrenha do homeschooling que se vem observando pelas igrejas evangélicas brasileiras esteja fundamentada também numa vantagem financeira em comparação às escolas particulares que o ensino domiciliar proporcionaria caso aprovado. Como o PL em votação não descarta a possibilidade de contratação de um tutor para ensinar os filhos em domicílio, é possível que essas igrejas vejam uma oportunidade de expandir seu leque de serviços ao oferecer uma educação domiciliar religiosa em troca da compensação devida.

Para o deputado federal Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), representante da bancada evangélica, a regulamentação dessa modalidade de ensino “é o caminho de a gente livrar as famílias da forma agressiva pela qual a esquerda tomou conta da educação”. Nesse sentido, o projeto também vem sendo considerado um revival do Escola Sem Partido, movimento político suspenso desde 2019 que denunciava uma doutrinação ideológica esquerdista sobre os alunos de ensino fundamental e médio do país. Apesar das denúncias de que a regulamentação do homeschooling se insira nessa agenda ideológica, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro, ministro da Educação, afirmou que “não sei se foi colocado como uma pauta de costume. É uma pauta de educação. Estou olhando como técnico, como educador, que o homeschooling é uma ferramenta a mais. É uma escolha, uma opção que nós estamos dando aos pais”.

Milton Ribeiro em solenidade de posse como ministro da Educação. Foto por Palácio do Planalto e disponível em https://www.flickr.com/photos/palaciodoplanalto/50119941028.

O que a escola verdadeiramente ensina?

A professora escreveu o nome no quadro-negro e disse:

— Está escrito: Sou a srta. Caroline Fisher. Nasci no norte do Alabama, no condado de Winston.

[…] escreveu o alfabeto em letras de forma enormes, virou-se para a classe e perguntou:

— Alguém sabe o que é isso?

Todo mundo sabia, porque a maioria estava repetindo o ano.

Acho que ela me escolheu porque sabia o meu nome. Enquanto eu lia o alfabeto, surgiu uma leve ruga entre as sobrancelhas dela e, depois de me fazer ler em voz alta quase todo o Meu primeiro livro e as cotações da Bolsa no Mobile Register, ela concluiu que eu era alfabetizada e me olhou com mais do que um mero desagrado. […]

— Peça ao seu pai para não lhe ensinar mais nada. É melhor começar a ler do zero. Diga a ele que vou assumir a tarefa daqui em diante e tentar desfazer o dano…

— Como disse, senhora?

— Seu pai não sabe ensinar. Agora vá se sentar.

(LEE, Harper. To Kill a Mockingbird. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.)

O que se ensina na escola? Para o professor John Taylor Gatto, as escolas não ensinam nada aos alunos além da obediência a ordens. Vencedor do prêmio de Professor do Ano do estado de Nova York no ano de 1991, Gatto foi um ferrenho crítico do modelo de escola compulsória adotado nos Estados Unidos, e é um dos autores — e professores — que primeiro defendeu publicamente a adoção do homeschooling modernamente, ainda no início dos anos 90. Assim, analisar sua visão é interessante para esse debate, uma vez que o sistema educacional norte-americano criticado por Gatto em muito se assemelha ao brasileiro: as crianças são divididas em salas conforme suas idades, a campainha marca as trocas de aula, o currículo é determinado externamente e a despeito dos interesses pessoais dos alunos e provas determinam a aprovação ou não em dada disciplina, dentre outras semelhanças.

No bastante influente Emburrecimento Programado: O Currículo Oculto da Escolarização Obrigatória, Gatto afirma que, enquanto professor da rede pública, é obrigado a ensinar 7 lições aos seus alunos: a confusão, a posição de classe, a indiferença, a dependência emocional, a dependência intelectual, a autoestima provisória e a supervisão constante. Dessa forma, na visão do autor, a escola compulsória seria um modelo de engenharia social voltado para a manutenção da estrutura social vigente através da paralisia moral e intelectual dos alunos, de tal modo a regular as massas e manter as estruturas de poder correntes. O enraizamento do “emburrecimento” da escolarização seria tamanho que, nas palavras de Gatto:

É o grande triunfo do monopólio governamental obrigatório de escolarização em massa que até mesmo entre os melhores dos meus colegas professores, e até entre os melhores pais de alunos, apenas um pequeno número possa imaginar uma maneira diferente de fazer as coisas.

(GATTO, John Taylor. Dumbing Us Down: The Hidden Curriculum of Compulsory Schooling. Tradução d’O Veterano. New Society Publishers, 2002.)

Para Gatto, essa forma distinta de educação que impediria a crise de identidade dos alunos ao fomentar o autoconhecimento — incapaz de se desenvolver entre as campainhas das aulas — seria uma que partisse das próprias crianças, garantida a liberdade de elas escolherem o tipo de educação que mais as atrai. É aqui que se insere a agenda do homeschooling: para o autor, a instituição familiar deveria ser o principal motor da educação da prole, e não os professores — tais como a srta. Caroline Fisher.

O homeschooling causa rendimento acadêmico superior?

Desde a publicação e disseminação de Emburrecimento Programado, o movimento pró-educação domiciliar se complexificou consideravelmente nos EUA. Formaram-se diversas organizações defensoras e propagandistas do homeschooling (como a já mencionada Aned, no Brasil) que, dentre outros, advogam pela desregulamentação da prática em estados norte-americanos cujas legislações são mais rigorosas quanto a essa modalidade. Uma característica comum dessas organizações é a de que suas estratégias de marketing se baseiam muitas vezes em supostas evidências de que o ensino domiciliar proporciona resultados escolares tão bons — ou até superiores — em relação aos de alunos do ensino tradicional.

Segundo a Home School Legal Defense Association (HSLDA), os alunos dos 4 primeiros anos do ensino fundamental em educação domiciliar teriam, em média, 1 ponto a mais em dada prova de rendimento acadêmico, e, no oitavo ano, já estariam 4 pontos acima da média nacional nessas provas padronizadas. Outro relatório da HSLDA afirma que, em provas de matemática e linguagens, o estudante adepto do homeschooling estaria de 18% a 28% acima da média dos alunos das escolas públicas.

No Peabody Journal of Education, os autores Lubienski, Puckett e Brewer publicaram artigo apresentando alguns desses argumentos de causalidade entre homeschooling e rendimento acadêmico superior para em seguida revelar a farsa por trás deles. Para os autores, as alegações de que o ensino domiciliar resultaria em maior rendimento acadêmico são mais complexas do que parecem. De fato, os alunos do homeschooling nos EUA, em média, têm notas maiores em provas padronizadas. Isso não significa, no entanto, que o homeschooling seja a causa desse panorama. Afinal, há uma série de fatores que afetam o rendimento acadêmico e que podem estar ao mesmo tempo relacionados ao perfil de famílias que optam pela modalidade de ensino domiciliar. A renda familiar e o grau de acompanhamento dos responsáveis na educação dos filhos podem ser alguns desses fatores.

Para Lubienski, Puckett e Brewer, o que ocorre, na prática, é o caso de que pais que aderem ao ensino domiciliar são mais preocupados com a educação da criança, têm maior flexibilidade financeira — já que pelo menos um responsável legal deve abrir mão de horas de trabalho para acompanhar a educação do filho –, conseguem comprar mais materiais educativos e esses materiais têm maior qualidade. Esses fatores, por sua vez, têm correlação positiva com o rendimento acadêmico dos filhos. Assim, imaginando o cenário contrafactual em que essas crianças de famílias abastadas e cujos pais acompanham mais de perto seu estudo permanecessem na educação escolar ao invés de optarem pela educação domiciliar, já se esperaria que suas notas fossem mais elevadas do que a média. Como não há evidências para afirmar que seu rendimento teria sido pior, não se pode concluir que o homeschooling é a causa do rendimento acadêmico superior auferido nas provas mencionadas. Nesse sentido, qualquer argumento favorável à expansão do ensino domiciliar baseando-se em alegações de rendimento acadêmico superior não é bem fundamentado.

O homeschooling afeta a educação pública?

Por fim, tratemos de outro argumento comumente utilizado na defesa do ensino domiciliar. Por ser uma opção adicional de educação — e, desse modo, uma liberdade a mais –, são comuns as afirmativas de que essa metodologia não impactaria a sociedade e tampouco as escolas, mas apenas as famílias que optarem pela modalidade. Segundo Carlos Vinicius Reis, diretor da Aned, “Defendemos a liberdade de oferecer algo que é melhor aos filhos. Não é algo obrigatório e a medida não ataca professores e muito menos as escolas”. No entanto, para o economista George Shepherd, a teoria econômica indicaria o oposto: homeschooling e todas as demais formas de competição à educação pública pioram a escola estatal, na medida em que a existência de alternativas ao ensino público implicaria a escassez de grupos socioeconomicamente privilegiados nas escolas públicas. Note que o autor baseia suas observações no cenário norte-americano, no qual a participação da classe média na rede pública de ensino é mais frequente do que no caso brasileiro, onde aproximadamente 19% das matrículas são em instituições privadas.

Economistas do passado já se mostraram bastante favoráveis a alternativas ao ensino público. Para Milton Friedman, por exemplo, a existência de competição no mercado de educação obrigaria as escolas públicas a melhorarem sua qualidade, de tal forma que os estudantes só teriam a ganhar. Essa análise partiria do entendimento de que, na falta de alternativas, a escola pública seria um monopólio e, como indica a teoria, a qualidade oferecida pelo serviço seria pior, bem como a quantidade seria inferior à demandada. Desse modo, a competição via formas alternativas de ensino evitaria esse monopólio e, assim, resultaria em benefícios para todos, tornando o mercado de educação mais eficiente.

No entanto, como elabora Shepherd, essa análise de Friedman não se mantém ao considerar que a educação pública é na realidade um bem público. Ser um bem público significa que é impossível excluir o usufruto de seus benefícios por algum indivíduo, e que a educação de um estudante não diminui o aproveitamento educacional de outro. Além disso, por ser um bem público, há externalidades positivas associadas ao ensino público; em especial, a possibilidade de maior coesão social que é proporcionada por meio dele.

Por definição, a matrícula em uma escola pública não representa uma barreira de entrada a grupos socioeconômicos desfavorecidos, em oposição às escolas particulares — que cobram mensalidade de seus alunos — e à educação domiciliar — que demanda a renúncia de horas de trabalho por parte dos responsáveis legais. Nesse sentido, Shepherd argumenta que a ausência desse obstáculo financeiro potencializaria a exposição a valores socioculturais mais amplos e, desse modo, a formação de estudantes mais tolerantes e com maior empatia. Isso porque, ao permitir que os jovens sejam expostos a todo o espectro de ideias — e não apenas a um conjunto mais restrito de valores inerentes à classe social favorecida ou até mesmo impostos pela família — a escola criaria indivíduos mais capazes de alcançarem consenso e de se comprometerem uns com os outros. Esses princípios, por sua vez, aumentariam a coesão social — definida pelo US Department of Health and Human Services como “a força dos relacionamentos e o senso de solidariedade entre membros de uma comunidade” — e, em última instância, poderiam melhorar o próprio funcionamento da democracia. Dessa forma, a educação pública tem importantes externalidades positivas: mesmo pessoas não relacionadas ao ensino público desfrutam de seus benefícios relacionados ao fomento da coesão social.

Quando há externalidades positivas em um ambiente econômico, é comum que os free-riders apareçam. No caso do homeschooling não é diferente. Para entender quem é o carona nesse ambiente, no entanto, devemos primeiramente compreender que o custo pago pelas famílias para a escola pública não consiste apenas na coleta dos impostos por parte do Estado. Na realidade, Shepherd afirma que a participação dessas famílias no processo decisório da comunidade escolar também é parte do custo associado de se ter um filho matriculado na escola. Desde o mero comparecimento a reuniões de pais e professores, até a defesa de pautas de interesse da escola nas casas legislativas, as famílias têm muito mais a contribuir para a comunidade escolar na qual se inserem.

Dito isso, perceba agora que as famílias atraídas pelo homeschooling são majoritariamente de classe média/alta e que, pela natureza da educação domiciliar — que demanda ao menos um responsável renunciando à renda do trabalho para acompanhar o ensino do filho –, têm melhores condições financeiras. Essas famílias privilegiadas, tendo representação política e disponibilidade de recursos acima da média, poderiam, segundo a visão de Shepherd, contribuir em grande medida no desenvolvimento da comunidade escolar. Dessa forma, quando abandonam a educação pública e optam pelo homeschooling, elas deixam de zelar pela escola pública da forma como faziam antes, o que impacta negativamente toda a comunidade escolar. No entanto, dado que essas famílias, agora adeptas do homeschooling, permanecem desfrutando da maior coesão social que a educação pública proporciona, mas sem se empenhar pela melhoria da escola da forma como faziam antes, o que temos é um ambiente de ineficiência econômica em que essas famílias seriam free-riders.

Para fins de exemplificação, suponha que de fato exista uma doutrinação ideológica no ensino público como muitos defensores do homeschooling argumentam. Nesse caso, se a educação domiciliar é permitida, as famílias mais privilegiadas (e contrárias à ideologia propagada) logo removeriam suas crianças da escola pública, ao invés de lutar pelo fim dessa doutrinação. Desse modo, veríamos menos contestação à doutrinação ideológica nas escolas públicas, impactando negativamente os alunos que, na falta de outras oportunidades, teriam que permanecer no ensino público. Nesse sentido, a descoordenação proporcionada pelo homeschooling geraria uma ineficiência, pois um pequeno grupo estaria educando seus filhos em casa, livres da doutrinação, mas uma maioria, menos privilegiada, permaneceria sofrendo com esta.

Dessa forma, Shepherd conclui que seriam falsas as afirmações de que a autorização do homeschooling não afetaria negativamente o ensino público — mais radical ainda, o autor critica também a existência de escolas privadas. Devido à sua natureza de bem público, alternativas à educação estatal só poderiam prejudicá-la, uma vez que geram competição nesse ambiente econômico marcado pelas externalidades positivas associadas à maior coesão social proporcionada pela escola comunitária. Assim, considerar esse argumento econômico é essencial para as discussões sobre a aprovação da modalidade de ensino domiciliar no Brasil, pois passa-se a questionar se de fato não haveria prejuízos ao ensino público.

Direito dos pais ou dever do Estado?

Até meados de junho, 418 entidades brasileiras ligadas à educação já haviam se posicionado em manifesto contrariamente à aprovação do Projeto de Lei que na prática daria respaldo jurídico à prática do homeschooling. Desde professores e escolas públicas e privadas, até grupos de pesquisa e secretarias de ensino, o documento declara que a proposta de ensino domiciliar é danosa por ferir o direito à educação da criança e do adolescente, previstos na Constituição Federal. Para os opositores do projeto, a falta de fundamentação técnica de que o homeschooling — da forma como foi proposta — melhoraria a condição educacional de algum setor do país revela o caráter puramente ideológico da pauta, relacionado possivelmente à defesa de interesses de igrejas que podem lucrar com o precedente que se abriria.

Nesse sentido, o homeschooling pode ser considerado como mais um caso em que o corporativismo no governo federal interfere na gestão educacional do país; até o momento, a implementação das escolas cívico-militares já havia evidenciado esse cenário, com militares da reserva ganhando salário adicional para aparecerem em escolas municipais país afora e pretensamente inflarem o sentimento de cidadania dos jovens. Enquanto isso, o Projeto de Lei que visa à garantia de conexão à internet para alunos em meio ao ensino remoto foi vetado pelo Planalto com a justificativa de que “Despejar dinheiro na ponta não é política pública”.

Resta saber quando o Projeto de Lei será pautado no plenário da Câmara dos Deputados e se será aprovado. Até lá, deve-se fomentar na sociedade o debate sobre os limites dos direitos dos pais sobre seus filhos e se a proposta de educação domiciliar infringe ou não os direitos das crianças e dos adolescentes, bem como suas liberdades de opinião, de pensamento e de expressão.

Foto por Senado Federal — Fachada do Ministério da Educação (MEC), CC BY 2.0, disponível em https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=40449399.

Referências:

GATTO, John Taylor. Dumbing Us Down: The Hidden Curriculum of Compulsory Schooling. New Society Publishers, 2002.

ROMANOWSKI, M. Revisiting the Common Myths about Homeschooling. The Clearing House, vol. 79, n. 3, 2006.

BREWER, T.; LUBIENSKI, C.; PUCKETT, T. Does Homeschooling “Work”? A Critique of the Empirical Claims and Agenda of Advocacy Organizations. Peabody Journal of Education, 2013.

SHEPHERD. G. Homeschooling’s Harms: Lessons from Economics. Akron Law Review, 2016.

FARENGA, P. Homeschooling, Britannica. Disponível em https://www.britannica.com/topic/homeschooling.

FERRAZ, R.; BORGES, L. Bandeira bolsonarista, o ensino em casa entra em discussão no Congresso, Veja. Disponível em https://veja.abril.com.br/educacao/bandeira-bolsonarista-o-ensino-em-casa-entra-em-discussao-no-congresso/.

RFI. Homeschooling: ‘Menos Estado significa mais violações de direitos das crianças’, afirma especialista. G1. Disponível em https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/05/25/homeschooling-menos-estado-significa-mais-violacoes-de-direitos-das-criancas-afirma-especialista.ghtml.

DESIDERI, L. Homeschooling: como andam as tentativas de regulamentação pelo Brasil. Gazeta do Povo. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/homeschooling-como-andam-as-tentativas-de-regulamentacao-pelo-brasil/.

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