Opinião | Por que é nobre o Prêmio Nobel?

De buracos negros supermassivos à poesia: a relevância das pesquisas que ganharam o Prêmio Nobel em 2020.

Guilherme Morais
O Veterano
12 min readOct 19, 2020

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Fonte: Wikipedia

Falecido em 1896, Alfred Nobel (detentor da patente sobre a dinamite) deixou um testamento (1895) no qual requisitava que parte do seu capital fosse destinado à criação de um fundo. Através deste, um prêmio seria concedido aos indivíduos que realizassem a descoberta ou o avanço com o maior impacto para a humanidade em um determinado ano. As áreas citadas por Nobel eram: Física, Química, Fisiologia ou Medicina, Paz e Literatura. O leitor já familiarizado com o Prêmio pode perceber que não é citada a área de Economia, já que esta não estava no testamento e foi instituída em 1968 com o apoio do Sveriges Riksbank (Banco Central da Suécia).

Desde a ocorrência da primeira premiação, em 1901, 962 indivíduos foram laureados com o Prêmio Nobel e são nomes conhecidos pelo público geral: Madre Teresa de Calcutá (Paz) por seu trabalho em prol dos mais pobres e enfermos em 123 países; Marie Curie em (Física e Química) pelos estudos em radioatividade e a descoberta dos elementos Rádio e Polônio; Sir Alexander Fleming (Fisiologia ou Medicina) pela descoberta da penicilina e sua aplicação como antibiótico; e Albert Einstein (Física) que, ao contrário do que muitos pensam, ganhou o prêmio pelo estudo do efeito fotoelétrico, e não pela sua Teoria da Relatividade Especial e Geral.

O fato de que estas pessoas são expoentes de suas áreas fica claro através da premiação. Alguns leitores podem se perguntar, no entanto, qual é a diferença que essas descobertas têm em suas vidas ou para a humanidade. Exceto pelo Prêmio Nobel da Paz e de Fisiologia ou Medicina, não é uma tarefa tão simples pensar como desenvolvimentos nos campos da Física, Química, Literatura e Economia podem ter este impacto.

Apesar de a conexão entre os conceitos teóricos e os efeitos práticos ser bastante complexa, ainda é possível se surpreender com os eventos cotidianos que são originados nos trabalhos destes laureados. Marie Curie, por exemplo, é a grande responsável pelo começo dos tratamentos para o câncer usando a radiologia. Ainda é possível citar o trabalho de Einstein que, ao mostrar como certos materiais emitem elétrons quando iluminados, possibilitou a criação do fotodiodo usado em detectores de fumaça e em exames de raio-X.

Apresentada a relevância prática de algumas descobertas, deve ser apontado agora que os estudos não têm necessariamente como fim algum desenvolvimento prático. Na verdade, o Prêmio de Literatura é um exemplo de campo do conhecimento consagrado por seus desenvolvimentos em um aspecto contemplativo da vida. Outro exemplo ainda mais claro são os filósofos que passam a sua vida a pensar sobre a existência humana e o conhecimento. Caso a importância da contemplação não seja clara para o leitor, tente lembrar daqueles momentos da vida em que a cabeça está cheia de perguntas como: por que estou vivendo assim ou qual é a melhor forma de viver para mim? Se, mesmo assim, não estiver convencido — e isso é excelente -, o melhor exercício é procurar a boa e velha Filosofia.

Será que aprenderemos algo novo?

Após descobrir um pouco sobre o que cada ganhador do Prêmio trouxe de novo para o mundo da ciência no ano de 2020, o leitor poderá se sentir como o possuidor de novos conhecimentos. Devo ressaltar, no entanto, um ponto que o laureado com o Prêmio Nobel de Física de 1965 — e o melhor professor de todos os tempos para este que vos fala -, Richard Feynman, costumava alertar:

“Você pode saber o nome de um pássaro em todas as línguas do mundo, mas quando acabar, não saberá absolutamente nada sobre o pássaro. Então vamos olhar para o pássaro e ver o que ele está fazendo — é isto que conta. Eu aprendi muito cedo a diferença entre saber o nome de alguma coisa e saber alguma coisa.”

Richard P. Feynman. Tradução livre.

Apesar de não sabermos de fato sobre aquilo que lemos, ainda é possível nos encantar e imaginar as possibilidades existentes a partir do exposto. E, se o leitor não se esqueceu da introdução, isto é uma forma de contemplação, uma vez que conseguimos vislumbrar a capacidade do homem de produzir melhorias e como isso impactará no futuro do bem estar da humanidade.

O que realmente importa?

Como já foi possível perceber, o prêmio pensado por Nobel é endereçado ao nome de uma pessoa, e o que William Faulkner ressaltou em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura em 1949 é bastante proveitoso para este último ponto:

“Eu sinto que este prêmio não foi feito para mim como homem, mas para o meu trabalho — o trabalho de uma vida na agonia e na candura do espírito humano, não pela glória e muito menos por lucro, mas para criar a partir dos materiais do espírito humano algo que não existia anteriormente.”

William Faulkner. Tradução livre.

Reforçando o que Alfred Nobel deixou em seu testamento, o Prêmio é concedido em função de sua contribuição para a área, e não pelas características de uma determinada pessoa. Por este motivo o Prêmio Nobel não deve ser encarado como um atestado de conduta ilibada e, muito menos, os seus vencedores devem ser escolhidos por qualquer outro motivo que não o trabalho desenvolvido por eles. A característica que confere nobreza ao Nobel é justamente sua preocupação estrita com as obras que impactam a humanidade e não deve ser ofuscada por estes equívocos.

Sabendo da necessidade de distinguir sabiamente entre a obra e o autor, caminharemos construindo o conhecimento intelectual que propiciará uma vida mais saudável, pacífica e curiosa. Não para satisfazer os desejos egocêntricos de um indivíduo, mas para nos tornar maiores e perenes como humanidade. Por último, deixo uma frase do já citado discurso de William Faulkner:

“Eu acredito que o homem não irá meramente durar: ele irá prevalecer. Ele é imortal, não porque ele sozinho entre as criaturas tem uma voz inesgotável, mas porque ele tem uma alma, um espírito capaz de compaixão, sacrifício e resistência. O dever do poeta e dos escritores é escrever sobre essas coisas.”

William Faulkner. Tradução livre.

Sobre a descrição das pesquisas

Sabendo da existência de relevância prática e contemplativa nas pesquisas das quais os laureados passam a maior parte de sua vida focados, este texto tentará explicar de maneira simples o que foi feito por cada um dos premiados do ano de 2020. Consequentemente, as partes do artigo são independentes umas das outras e o leitor não se perderá caso resolva pular alguma(s) delas. O material utilizado se encontra ao final do texto.

Prêmio Nobel de Química

Entrando para o seleto grupo de laureados — que inclui nomes como Ernest Rutherford, Marie Curie e Linus Pauling — , as ganhadoras Jennifer Doudna (University of California, Berkeley) e Emmanuelle Charpentier (Max Planck Unit for the Science of Pathogens) desenvolveram uma tecnologia (CRISPR-Cas9) capaz de editar o DNA de uma célula.

O DNA nada mais é do que um conjunto de instruções que ditam as características que um determinado indivíduo terá. Nesta estrutura, os genes ditam, por exemplo, o quão alto será a pessoa e a qual será a cor de seus olhos e a de seu cabelo.

Uma forma simples de imaginar como esta tecnologia CRISPR-Cas9 funciona é pensar na seguinte analogia visual:

Imagine que você tenha uma fita longa (DNA) composta por várias outras fitas menores (genes). A tecnologia CRISPR-Cas9 é como um par de tesouras programado para achar uma das fitas menores, cortá-la e substituí-la por uma outra fita. Então, supondo que uma das fitas menores não te agrada, é possível cortá-la e substituí-la por uma de seu gosto (mais alto, cor do cabelo castanho e olhos verdes).

Os exemplos de genes dados acima foram propositais para provocar a reflexão sobre quais questões éticas podem surgir a partir desta tecnologia — já que não há espaço para debater este aspecto neste texto. No entanto, o leitor deve se concentrar nas aplicações capazes de melhorar a vida de diversas pessoas. É possível utilizar a tecnologia desenvolvida por Doudna e Charpentier para corrigir mutações como a anemia falciforme, a fibrose cística e potencialmente até o câncer.

Prêmio Nobel de Física

Os ganhadores deste ano Prof. Reinhard Genzel (University of California, Berkeley), Prof. Andrea Ghez (University of California, Los Angeles) e Sir Roger Penrose (University of Oxford) se juntaram aos nomes de Albert Einstein, Peter Higgs e Max Planck. Agraciados pelos desenvolvimentos nos estudos sobre buracos negros, cada um deles nos ajudou a entender desde o que seria um buraco negro até o conhecimento de que existe um no centro de nossa galáxia.

A primeira contribuição no campo foi feita pelo Sir Roger Penrose na década de 60, em conjunto com Stephen Hawking, utilizando a teoria matemática da gravidade desenvolvida por Albert Einstein. Neste trabalho matemático, os autores previram a existência de um ponto no espaço em que a gravidade (devido à sua massa) do objeto é tão forte que ocorre um colapso em si mesmo gerando um ponto de densidade infinita — uma singularidade.

Os buracos negros, como ficaram conhecidos, eram fortes candidatos a serem os protagonistas da pergunta: o que se encontra no centro de nossa galáxia?

Para responder este questionamento, Genzel e Ghez concentraram suas observações em estrelas que se encontram no centro da Via Láctea. Ao observar a velocidade e a posição destas estrelas, é possível inferir como é a órbita que elas seguem e, adicionando o conhecimento sobre gravidade, prevê-se o tamanho e a massa do objeto que se encontra no centro. As previsões dos autores confirmaram a teoria de que no centro da galáxia haveria um buraco negro. No entanto, este não é um buraco negro como os outros que possuem de 3 a 10 vezes a massa do nosso sol, e sim um buraco negro supermassivo com milhões e até bilhões de vezes a massa da nossa estrela.

Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina

A introdução deste texto se faz extremamente verdadeira para os laureados desta área no ano de 2020. O impacto da descoberta do vírus da Hepatite C feita por Michael Houghton (University of Alberta), Charles M. Rice (Rockefeller University) e Harvey J. Alter (National Institutes of Health, USA) tem o potencial de curar os portadores do vírus e até erradicá-lo no futuro.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de 70 milhões de pessoas no mundo têm esta doença que se mostra assintomática e pode levar o paciente a desenvolver um quadro de cirrose. A doença foi responsável pela morte de quase 400 mil pessoas no mundo em 2016 e é a principal causa de câncer no fígado.

Um número crescente de casos de Hepatite foi notado pela primeira vez 70 anos atrás em pacientes que tinham recebido muitas transfusões de sangue. No final da década de 60, o laureado Harvey J. Alter investigava casos de Hepatite após transfusão de sangue e percebeu que, mesmo depois de eliminar o sangue contaminado pela Hepatite B, a maioria dos casos de Hepatite persistiam. Desconfiado de que haveria um outro possível agente infeccioso, Alter mostrou que o plasma (componente do sangue responsável pelo transporte de nutrientes e gases) de pacientes com este tipo de Hepatite poderia transferir a doença para chimpanzés e que, posteriormente, apresentariam infecção no fígado, suportando a hipótese de que havia este outro agente infeccioso.

A busca pelo isolamento do vírus poderia começar agora, no entanto esta tarefa levou ainda muitos anos.

A descoberta veio em 1989 com Houghton, que usou uma combinação de biologia molecular e técnicas baseadas em imunologia para clonar o vírus. O clone obtido assemelhava-se aos vírus da família flaviviruses e o nomearam de Hepatite C.

Desta forma, era possível trabalhar em um teste sanguíneo para identificar a Hepatite C. Assim que o teste foi desenvolvido, testou-o em um banco de sangue e identificaram-se com sucesso todas as amostras que eram suspeitas de estarem contaminadas e nenhuma do grupo de controle. Rapidamente as ofertas de sangue ao redor do mundo podiam ser rastreadas e isto levou imediatamente a uma redução dramática do número de casos de Hepatite após a transfusão sanguínea.

Mas uma questão permanecia em aberto: o vírus da Hepatite C era a causa única desta forma de Hepatite? Isto é, seria possível um vírus clonado molecularmente reproduzir a doença?

Charles Rice e um time de pesquisadores investigavam as condições moleculares necessárias para a replicação viral. Quando testaram em animais o clone feito por Houghton e sua equipe, não conseguiram observar a replicação do vírus.

O autor então especulou que o clone utilizado deveria ter mutações inativantes em alguma parte do genoma. Nesse sentido, sequenciou o genoma de diversos vírus e comparou uns aos outros, percebendo que muitos deles tinham as partes inativantes pensadas e que poderiam ser retiradas através de engenharia genética.

Ao combinar esse genoma reparado, Rice criou o que achou que seria um vírus completamente funcional. Quando foi introduzido no fígado de chimpanzés, sintomas clínicos de Hepatite C foram observados e o vírus estava agora presente no sangue, além de se tornar persistente ao longo do tempo. Portanto, estava provado que o clone do vírus sozinho era capaz de gerar a doença e induzir uma infecção efetiva.

Os laureados proveram os fundamentos que eram necessários para combater a proliferação do vírus. Graças às suas descobertas, o vírus da Hepatite C já está sendo quase eliminado de várias partes do mundo e o desenvolvimento de antivirais extremamente eficazes significa que mais de 95% dos pacientes tratados podem ser curados da infecção, salvando milhões de vidas ao redor do mundo. A esperança é que o vírus possa ser controlado e, futuramente, até eliminado.

Prêmio Nobel de Economia

Os laureados deste ano ficaram marcados pelo vídeo que mostra Robert Wilson (Stanford University) indo à casa de seu amigo, Paul Milgrom (Stanford University), avisá-lo que também havia ganhado o Prêmio Nobel em Economia. O trabalho dos dois economistas da Universidade de Stanford proporcionou avanços na teoria de leilões e criou novos formatos de leilão.

O objeto de estudo dos economistas premiados está em toda parte. O governo utiliza leilões como forma de conceder os direitos de venda para bens como frequências de rádio, gás natural e créditos de emissão de carbono, por exemplo. Sabendo da importância e do impacto deste mecanismo de venda na vida de todos nós, Wilson e Milgrom contribuíram com mecanismos que são capazes de alocar os recursos para aqueles com maior capacidade de gerenciá-los e alcançar os melhores preços para as partes integrantes do leilão.

Durante as décadas de 60 e 70, em uma investigação sobre os leilões de valor comum — valor do objeto leiloado é desconhecido e o mesmo para todos os licitantes -, Wilson mostrou que os agentes racionais iriam superestimar o valor do objeto e sofreriam da chamada winner’s curse.

Mais adiante, estudando os leilões de valor privado — o valor do objeto depende da pessoa -, Milgrom percebeu que, à medida que os licitantes ganham mais informação no decorrer do leilão, a maldição do ganhador seria melhor evitada — padrão seguido pelo leilão inglês em que o preço começa baixo e vai aumentando a cada oferta. Além disso, informações como protocolos de inspeção e certificados de autenticidade aumentam a receita esperada do leilão.

Na década de 1990, os dois economistas foram os responsáveis pelo desenho de um novo tipo de leilão chamado Simultaneous Multiple Round Auction (SMRA). Atendendo à necessidade do governo estadunidense de alocar as frequências de rádio, os laureados desenharam um leilão em que todas as frequências são ofertadas de forma simultânea e os licitantes têm a possibilidade de fazer uma oferta sobre a quantidade de itens que desejam. Seguindo o mesmo sistema do leilão inglês, este modelo foi implementado em diversos países pelo fato de possibilitar uma melhor alocação de recursos e o aumento da receita obtida por parte dos governos.

Prêmio Nobel de Literatura

Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Thomas Mann e Bertrand Russell são alguns dos nomes de autores consagrados com o Prêmio Nobel de Literatura que teve, neste ano de 2020, como escolha a poetisa estadunidense Louise Glück. A motivação do prêmio foi descrita da seguinte forma: “pela sua inconfundível voz poética que com beleza austera faz a existência individual universal”.

A autora concentra suas poesias em temas cotidianos como relações familiares entre irmãos e pais, a morte e divórcios. Em seus mais de 12 livros, Glück aborda as agonias do eu explicitando os sentimentos mais profundos do leitor ao colocá-lo em contato com situações de aflição existencial e casos de amor desastrosos.

A profundidade dos cenários vividos pelos personagens fictícios na obra de Glück é descrita através de uma escrita direta e apreensível para todo o público. As vozes que dão vida à sua obra tem a capacidade de se utilizarem das situações cotidianas pessoais — ornadas com uma escrita acessível sem ser coloquial — para construir experiências universalmente válidas.

Prêmio Nobel da Paz

Entre as áreas escolhidas por Alfred Nobel para serem consagradas pelo prêmio, a com maior viés humanitário e na resolução de conflitos diretos entre povos é o da Paz. Para o ano de 2020, a escolha do World Food Programme (WFP) faz jus à vontade de Nobel e premia um programa que está ativamente na luta para evitar que a fome seja uma arma de guerra e combatê-la em territórios assolados pela violência.

A iniciativa das Nações Unidas tem como objetivo principal erradicar a fome em níveis globais — em 2019 prestou assistência para mais de 100 milhões de pessoas em mais de 80 países. Apesar do auxílio prestado pelo programa, o número de pessoas sofrendo com fome aguda foi o maior dos últimos anos devido aos conflitos e guerras — mais de 130 milhões de pessoas.

A fome não é apenas uma forma de tornar uma localidade mais fraca e suscetível à invasão, mas é também o motor que engendra conflitos em meio ao desespero. Atacar os dois problemas ao mesmo tempo é a tarefa que o WFP tem feito de forma pioneira em localidades de diferentes continentes e, sem dúvidas, tem cumprido o desejo de maior fraternidade entre as nações descrito no testamento de Alfred Nobel.

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Guilherme Morais
O Veterano

Undergraduate student of Economics at FGV — EPGE.