Coluna | Por que não temos um Hamilton brasileiro?

Por Andressa Mota e João Vitor Santos

O Veterano
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8 min readDec 1, 2021

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Reprodução do retrato de Hamilton na nota de US$10 a partir do Flickr

Em 12 de maio de 2009, o então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, recepcionou alguns dos mais renomados artistas e políticos americanos na Casa Branca para um evento de música e poesia. A última pessoa a subir ao palco foi o jovem Lin Manuel Miranda, um compositor e dramaturgo porto-riquenho que apresentou ao mundo pela primeira vez sua ideia de contar, através do rap e do hip-hop, a história de um dos pais fundadores dos EUA: o Secretário do Tesouro Alexander Hamilton.

Hoje, o musical Hamilton é um fenômeno absoluto da Broadway. Dentre muitas conquistas, a produção conta com 11 prêmios Tony – o mais prestigioso reconhecimento do teatro dos Estados Unidos –, um Grammy, um prêmio Pulitzer e uma gravação profissional para a plataforma de streaming Disney +. Com o sucesso de crítica e a aclamação popular que o musical tem recebido nos últimos anos, é inevitável que o público brasileiro se pergunte: por que não temos um equivalente ao Hamilton em nosso país?

A princípio, é importante esclarecer que o que aqui se questiona não é propriamente o motivo pela falta de uma adaptação do musical americano, mas sim a razão pela qual não há uma grandiosa e bem-sucedida obra artística nacional para enaltecer a história de um de nossos pais fundadores. Superada essa explicação, passa-se então a analisar algumas peculiaridades da independência do Brasil que, quando comparadas ao processo americano, nos ajudam a responder essa indagação.

Ainda que proclamada majoritariamente por aristocratas, a independência dos Estados Unidos é consagrada pelo lema “We The People”. Há, portanto, no primeiro plano desse movimento, a proteção da liberdade individual de cada estadunidense como cidadão e a sensação difusa de que o povo foi a peça fundamental para esse ato revolucionário. Nesse sentido, a independência promovida por nacionais reforça uma clara. rejeição da participação de britânicos no processo emancipatório.

Por outro lado, a independência brasileira foi declarada por. D. Pedro de Alcântara de Bragança, um português. Embora ele tenha se colocado ao lado dos brasileiros, assumindo o posto de imperador e rompendo com Portugal frente às sucessivas tentativas de retorno do controle da metrópole sobre a colônia, D. Pedro não deixou de ser a figura central desse processo. Mesmo que em nome da liberdade da população brasileira, a independência foi proclamada na prática por um aristocrata estrangeiro que tinha interesses predominantemente políticos.

Isso posto, a ideia consagrada no Hino Nacional e na pintura Independência ou Morte de Pedro Américo de que o “brado retumbante” veio do “povo heróico” não passa de uma fantasia. Em contrapartida, o trecho do cântico estadunidense, “By the millions unchained/ Who our birthright have gained/ We will keep her bright blazon/ Forever unstained”, traz o direito de nascença daqueles nascidos em solo americano como elemento essencial para libertação da metrópole e do povo.

Não obstante, movimentos populares prévios à declaração de independência – como a Conjuração Baiana e a Conjuração Mineira – não tiveram sucesso algum na efetiva separação entre Brasil e Portugal. Logo, uma vez que nossos pais fundadores não eram nacionais, é possível dizer que há um certo descolamento do povo em relação às personalidades da independência, dificultando a criação de um Hamilton brasileiro.

Além disso, o processo histórico de independência ainda aponta para outra diferença crucial: ainda que o Brasil tenha se separado do então Reino de Portugal, Brasil e Algarves, o sistema político vigente permaneceu praticamente inalterado. A monarquia continuou aqui como forma de organização governamental, enquanto nos EUA, o país recém-formado tornou-se logo de início uma federação de Estados republicanos.

De fato, o Brasil não promoveu uma ruptura institucional profunda com os costumes e valores da Coroa, sendo em alguma medida quase uma extensão daquilo que Portugal representava. Antes da partida de D. João VI, inclusive, menciona-se a célebre frase do então rei para seu filho: “Pedro, se o Brasil for se separar de Portugal, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”. Desse modo, o fantasma da Coroa deixado pela manutenção do regime monárquico também faz com que o povo brasileiro não tenha desenvolvido um grande apego ao período da independência e seus supostos heróis.

No entanto, esses fatos históricos não parecem ser suficientes para explicar com exatidão a falta de um Hamilton brasileiro. A transformação de um musical sobre a vida do Secretário do Tesouro dos Estados Unidos em um fenômeno cultural decorre muito mais da narrativa fantasiosa sob a qual essa história foi construída do que propriamente de quaisquer peculiaridades do processo de independência americano. Compartilhamos então, nesse ponto, do posicionamento do crítico de arte Aja Romano, que caracteriza Hamilton como uma espécie de fanfic pós-moderna a qual modifica a histórica americana.

Sob essa perspectiva, a construção de um enredo que romantiza e enaltece essas personalidades históricas pode ser sobretudo uma tentativa de apaziguar o público estadunidense sobre o seu passado, principalmente quando o presente aparenta ser tão instável e conflituoso. Conforme explica David Waldstreicher, o espírito do musical busca permitir, por exemplo, que o povo americano supere de alguma maneira a desilusão e o constrangimento de ter pais fundadores que apoiaram a escravidão. Com efeito, ainda que a peça apresente determinadas críticas à independência, o sentimento que prevalece no espectador ao sair das portas do teatro é o de que a história dos EUA é, acima de tudo, gloriosa.

Nesse sentido, para que Hamilton pudesse existir, foi necessário sacrificar o rigor biográfico em prol do revisionismo e admitir expressamente que essa é “uma história dos Estados Unidos do passado, contada pelos Estados Unidos de hoje”. Aliás, é nessa mesma direção que se manifesta a principal mensagem do musical: o legado e a história de determinada pessoa são noções maleáveis e podem ser contadas por qualquer um.

Antes de se tornarem ícones da cultura popular americana, Alexander Hamilton era “o cara da nota de dez dólares” e Aaron Burr, por sua vez, “o homem que o matou em um duelo”. Foi a partir desse ponto de partida que Lin-Manuel Miranda pôde construir a sua própria narrativa da história dessas pessoas e, de ora em diante, mudar a maneira como elas seriam marcadas na consciência coletiva estadunidense. O retrato de Hamilton passou a ser o de um herói trágico, brilhante e revolucionário, que personifica o chamado Sonho Americano, ao passo que Burr se tornou um antagonista complexo, enigmático e profundamente arrependido pelos seus atos.

Dessa forma, quando assistimos ao musical, estamos diante de uma narrativa que não somente conta a história de Alexander Hamilton, mas que também conta a história de Lin-Manuel Miranda e suas visões de mundo. Para muitos críticos de teatro, por exemplo, Hamilton é um óbvio símbolo da Era Obama. Nessa linha, acredita-se que Miranda – um auto declarado apoiador do então presidente – teria extraído traços da personalidade dele para representar o protagonista e tecido comentários sociais no musical que remontariam à própria agenda política do democrata. Não surpreendentemente, Jeremy McCarter e Lin-Manuel Miranda afirmam, no livro Hamilton: The Revolution, que “a presidência do Obama acaba em janeiro de 2017, mas essa peça, que compartilha tanto de seu espírito, vai continuar em cartaz”.

Além disso, também é possível identificar no personagem um reflexo de grandes nomes do rap idolatrados pelo compositor. Além de claras alusões sonoras às músicas de DMX, Eminem e outros artistas, Miranda defende que a história de Alexander Hamilton é essencialmente uma clássica história de hip hop: alguém que nasceu em circunstâncias muito difíceis (profunda pobreza, falta de pais, problemas financeiros), usou as palavras para superar esse contexto, e então morreu violentamente por causa delas. Assim como é o caso do pai fundador, essa também foi a história de vida de Tupac e Notorious B.I.G.

Independentemente de quais tenham sido as exatas inspirações para a peça, o que se argumenta aqui é que a resposta para o nosso questionamento central se encontra menos na figura do Hamilton, e mais na de Miranda. Em entrevista à revista Time, ele explica que, assim como o revolucionário, é imigrante de uma ilha na América Central e esteve desde criança preocupado com o legado que deixaria no mundo.

Ao enxergar essa conexão, Miranda pôde alinhar sua narrativa pessoal com a narrativa do Hamilton e assim escrever uma história que – influenciada pelas suas preferências políticas e musicais – acaba sendo, no fundo, sobre ele mesmo. Em suas próprias palavras, “toda história é inteiramente criada pela pessoa que a conta”. Logo, para além dos fatos históricos, o motivo pelo qual não temos um Hamilton brasileiro está especialmente relacionado à falta de alguém interessado e determinado a contar tal narrativa.

Mas por que? Há de se reconhecer que a narrativa do Estado brasileiro não é desprovida de heróis e que já existiram diversas tentativas de enaltecer figuras históricas em manifestações artísticas nacionais. Ocorre, porém, que não existe hoje no Brasil o mesmo espírito de autocelebração identitária como há nos EUA. Assim como Washington, Jefferson e outros pais fundadores, a figura do Hamilton incorpora os ideais de liberdade, individualismo e independência, servindo como alicerce desse fanatismo cívico americano. No Brasil, o cenário é completamente distinto.

Diferentemente dos americanos, temos no nosso sistema de ensino um certo receio à educação cívica. Nesse ponto, o Estado brasileiro pode ser considerado até mesmo como “demofóbico”, ou seja, dotado de uma percepção – sobretudo pelas elites sociais – de que o aumento do exercício da cidadania provocará a desordem e a decadência do mundo político civilizado. A aversão à participação cidadã do povo implica, portanto, na dificuldade de se fortalecer uma cultura e uma narrativa propriamente brasileira que justificasse o apego aos nossos pais fundadores.

Em suma, o sucesso de Hamilton nos EUA nos permite entender que a história, ainda que baseada em fatos, consiste invariavelmente na construção de narrativas. No fim do dia, apesar de todas as críticas, Hamilton é assumidamente uma obra de entretenimento que reconhece como seu ponto central a importância daquele que conta sua história. Assim sendo, além das peculiaridades do processo de independência do Brasil e da falta de uma cultura cívica auto-celebratória, não temos um Hamilton brasileiro porque não temos um Miranda brasileiro.

No entanto, talvez antes de nos perguntarmos por que não temos um Hamilton brasileiro, precisaríamos questionar a quem pertence o nosso passado. Quais são as figuras históricas nacionais que merecem ocupar esses espaços de veneração? Aliás, considerando todos os problemas apresentados, será que deveríamos mesmo ter um Hamilton brasileiro?

Ainda que tais perguntas devam ser melhor analisadas em uma outra oportunidade, podemos concluir aqui que ao invés de celebrarmos ou tolerarmos eventuais tentativas de redesenhos históricos, seria talvez mais valioso que aprendêssemos sobre os verdadeiros erros da nossa história. Em vez de ignorarmos, alterarmos ou apagarmos os problemas do nosso passado, devemos ser primordialmente capazes de assumi-los. Em vez de agirem como líderes de torcida, os americanos deveriam se sentir desconfortáveis com as partes de sua história em que promoveram racismo, violência e genocídio. Nós também.

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O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.