Série Questões Raciais | Por que, na contemporaneidade, ainda pensar em uma literatura negra?

Por Jucilene Nogueira

O Veterano
O Veterano
3 min readNov 20, 2021

--

Foto no Unspash

É comum ouvirmos que as obras têm seu valor estético, independentemente daqueles que a produzem, e, por essa razão, não se deveriam levar em conta os atributos que apontassem para autoria. Todavia, a falsa ideia de universalização camufla, na literatura e em tantos outros campos, tensões que emergem das inegáveis diferenças que nos constituem. Toda obra é política porque é escrita por sujeitos políticos, conscientes ou não da responsabilidade de suas atuações.

Os últimos anos do século XX e início do XXI revelam-nos uma expressiva constelação de nomes da literatura nacional que reivindicam, em seus textos, novos olhares para a ideia de humanidade. Esta, forjada a partir de uma perspectiva europeia, era personificada por um ideal de homem branco, heterossexual e, de preferência, de classe social alta. Novos olhares exigiam novas formas, novas linguagens, outras estéticas e uma relevante problematização do que se considerava “obra de arte”.

Dentre tantos agentes políticos que vêm tensionando o universo literário brasileiro, destacam-se autores e autoras negras que abordam os mais variados temas, atravessando a escrita com experiências que a singularizam. Nessa esteira, Conceição Evaristo traz-nos o conceito de “escrevivência”, referindo-se à produção literária de mulheres negras que, fundindo escrita e vivência, não contribui para adormecer a casa-grande, mas para acordá-la de seus sonos injustos. A injustiça social contra os negros, tão presente na história do país, não reside apenas nos horrores mais explícitos dos castigos, mas também nos efeitos produzidos na subjetividade daqueles que foram elaborados para serem “os outros”, ou “a margem”. Assim, é comum que os negros tenham que enfrentar não só o preconceito disseminado pelos olhares dos outros, mas também pela ideia que lhe ensinaram a fazer de si.

Um exemplo interessante dessa escrevivência pode ser encontrado na poesia contemporânea de mulheres negras. Nos últimos anos, autoras como Cristiane Sobral, Lubi Prates, Valeska Torres, Tatiana Pequeno, Tatiana Nascimento, Natasha Félix, entre tantas e tantas outras, vêm rasurando certa concepção mais tradicional de poesia, imprimindo nuances que expressam a multiplicidade das formas poéticas. O corpo das poetas e o corpo do texto não disputam entre si, mas complementam-se em um movimento político-estético que reivindica o papel de sujeito(a) da escrita e da vida. Esse movimento merece destaque porque vai de encontro a certas críticas e produções literárias que, pretendendo-se universalistas, costumavam apresentar recortes situados alçados à ideia de totalidade, simulando abrangência e verdade.

Obviamente, nessa tradição literária, não só escaparam representações singulares das mulheres negras, mas também se forjaram hierarquias que as rebaixaram à condição de mercadorias, objetos de trabalho ou de desejo. Uma vasta dicção poética contemporânea produzida por essas mulheres denuncia os falseamentos históricos, apresenta outras possibilidades de apreensão do passado e do presente, além de mobilizar transformações futuras. É uma estética que se apresenta sempre no plural, que compreende que os modelos unívocos e os pragmatismos arbitrários são sempre ferramentas de controle e de manipulação. Uma estética que privilegia iniciais minúsculas, experiências cotidianas e linguagem simples porque entende que a hierarquia é um instrumento político moldado através de um discurso de diferenciação.

A poesia contemporânea de autoras negras tem também, como traço expressivo, poéticas acerca da sexualidade. Desejos, corpos, prazeres, interdições e experiências revelam-se não só como um convite à reinvenção de novos olhares sobre os corpos, com destaque para os corpos negros historicamente tão violentados, mas também como possibilidades de ressignificar modos de existência, de propor reinvenções. A partir do entendimento de que a elaboração de tabus, como os do sexo por exemplo, constrói monopólios de saberes articulados em prol de interesses das elites, pode-se apontar as fragilidades desses falsos saberes e propor outros olhares sobre si, colaborando para um processo necessário de libertação.

Colocando em xeque o controle dos corpos, questiona-se qualquer forma de controle em defesa de certa erótica da subversão. Desse modo, a poesia escrita por mulheres negras, bem como toda a literatura de autoria negra, não pode ser classificada como uma poética que só fala de dores, de violências e de horrores. Sua temática não é limitada, seu trabalho formal é extremamente diverso; são múltiplas as suas abordagens e inumeráveis os afetos que insistem em produzir. No entanto, essa poesia ainda precisa ser rotulada como “Literatura negra”, para evidenciar as diversidades, para denunciar a perversidade que ainda se esconde em tão frágeis generalizações.

--

--

O Veterano
O Veterano

O Veterano é um jornal estudantil criado por alunos da Escola Brasileira de Economia e Finanças em 2020.