Princípios, Civilização e História

Pedro Gaya
O Veterano
6 min readOct 27, 2021

--

Glossário:

  • arché: um primeiro princípio e, na filosofia pré-socrática, uma substância ou elemento de primazia.
  • eschaton: momento final da escatologia (final dos tempos).
  • mythos: um conjunto de crenças ou presunções sobre algo, mitologia.
  • moirai: as moiras ou os destinos são 3 mulheres que encarnam o destino. Clotho, Lachesis e Atropos tecem o fio da vida de mortais e imortais e lhes impõem um destino desconhecido. Na recente obra de Madeline Miller, “aqueles que lutam contra a profecia somente amarram a sua corda mais firmemente em suas gargantas” — sendo ainda comum que tentassem.
  • WWI: Primeira Guerra Mundial (World War One).
  • Causa final: razão da ocorrência de algo tendo em vista a finalidade do evento.
  • Imanentização: incumbir a si uma obrigação presumida inerente.

Nos últimos 5 séculos, o significado da religião na arena política e na sociedade pública foi drasticamente esvaziado. Quando surge um político discursando a plenos pulmões citando um livro sagrado (para o caso brasileiro, a Bíblia), urrando como se as suas doutrinas muito específicas (e provavelmente desconhecidas pelo discursante) fossem a verdade mais absoluta, é esperado que os fetichistas do Estado laico se tornem verdadeiros revolucionários ateus. E isso é esperado. Como em outros campos, houve aqui uma polarização. Há votos dados em nome puro da religião, muitos baseados em tradições malignas, e há aqueles que acreditam nos cultos seculares de Robespierre ou talvez em alguma variação da China atual.

Deveras, Robespierre trouxe a faísca de um incêndio que culmina na Primeira Guerra Mundial. O fim da Era Monárquica cessa de todo a ideia contida na própria etimologia da palavra arché, sendo aqui uma questão de princípio, e devendo ser associada à reivindicação principiológica das religiões. Quando inicia-se a Era Democrática e o foco passa à hoste, esvazia-se a noção de autoridade concedida por princípio à religião dominante. Como o poder é imanentizado no povo, o eschaton referente ao universo imaginário político deve ser ou levado para o campo de alguma abstração ideológica ou cessar. Em outros termos, o mundo deixa de funcionar como consequência de uma mitologia e passa a funcionar pela opinião pública.

[Aproveito um breve desvio para lembrar que uma religião oficial não implica qualquer discriminação religiosa, basta mirarmos o Reino Unido.]

O mundo da belle époque e pré-WWI é, em grande parte de sua extensão, a concretização derradeira do paradigma da civilização ocidental. Viena deve ser considerada como uma verdadeira cosmópolis, não vista desde os antigos tempos romanos. O mundo intelectual, literário, cultural, científico, político, e sartorial é todo unido e coeso em Viena. A The Economist publicou um artigo seminal (How Vienna Produced Ideas That Shaped the West) que desnuda na frente dos nossos olhos a grandeza do mundo vienense.

Na Europa Insular, o mundo londrino também mostra sua grandeza. A Era Vitoriana nos mostra o ápice do Império Britânico. O próprio modo de vida vitoriano tomou o poder que Versalhes outrora tivera em definir seu pequeno mundo aristocrático — le monde. Aliás, isso ocorreu ainda antes da rainha Vitória. Beau Brummel, no período de regência, foi quem definiu a elegância masculina: “Para ser verdadeiramente elegante, o homem não deve ser percebido”. Para aqueles que subestimam a importância de coisas aparentemente tão superficiais, invoco os sábios pensamentos de Sir Roger Scruton. ‘Nada é mais útil que o inútil’.

A experiência espiritual que afeta o interesse humano é chave para o entendimento do que ocorreu, ocorre e ocorrerá. No passado, a religião tem a proeminência, mas “quando não achamos essa experiência na religião, achamos onde quer que podemos” (Hugo Jacomet). Ou seja, a imanentização ocorrida a partir de diversos mythos da religião passa a um tipo diferente, o mythos do materialismo ideológico. Havendo a outra opção, que remove a ideia de imanentização, mas sendo esse caso mais complexo e menos evidente nos eventos após a WWI, reservando lugar em escalas mais pessoais. Em última instância, é a diferença entre uma visão divina/nomológica que dá ordem finalística à história e a trata como tal, cruzada por verdadeiros desígnios do destino, e uma visão pragmatista que contrasta com a tendência psicológica humana de atribuir causas finais para tudo que existe.

A nossa eterna busca é, pois, uma condenação a necessitar o inútil. Agora, note bem: superar a ideia causal é diferente de criar dentro de si a negação de sua existência. Os “homens práticos” que negam a demanda não são realistas, mas demagogos. Em verdade, eles são vítimas da própria ignorância, caindo no cadafalso apresentado por lorde Keynes: “Homens práticos que se consideram bastante isentos de qualquer influência intelectual, geralmente são escravos de algum economista extinto. Loucos com autoridade, que ouvem vozes no ar, estão destilando seu frenesi de algum acadêmico de alguns anos atrás”. E o mesmo vale não apenas para os economistas, como para os filósofos, profetas, sociólogos e outros.

O mundo antes da Primeira Guerra Mundial se regia por outros princípios, e os novos ainda não foram formados, pois ainda estamos na promoção do caos de outros fins da história. Não é sem fundamento que se pode constantemente comparar os últimos 100 anos com o processo de capitulação do Império Romano. Já dizia o prof. Oliveira Martins que “a História da republica romana é o paradigma de todas as historias conhecidas”. Eu iria além, diria que a história da Roma antiga como um todo é o paradigma político, econômico e nomológico de toda a história conhecida. Inclusive, a França falhou em legar para o mundo um “exemplo de estado desconhecido em Roma”, após os escritos do professor.

A ação humana é processada por causas finais, resultante de um pensamento que possui um universo limitado de elementos, em uma estrutura de hierarquia entre eles. Os princípios individuais são, pois, os elementos mais poderosos da dita hierarquia.

Werner Jaeger bem nos apresenta o paradigma principiológico do mundo greco-romano, que é o homem de virtudes, completo. É claro como água de rocha que essa última parte não se manteve pelo mundo da Era Monárquica — que engloba desde a queda de Roma até a Primeira Guerra. O homem deste período não é o mesmo, mas a heterogeneidade interna não pode ser comparada com a diferença após o período. Quer dizer, o homem monárquico (como escolho chamar os viventes da Era Monárquica) é um homem incompleto, mas que mantém o princípio da virtude. Isto é, no mundo antigo havia dois princípios (“completude” e virtude), enquanto o monárquico tinha um (virtude).

Então chegamos ao mundo moderno. A Grande Guerra verte o princípio único do Estado (monarquia — monarkhía -> monos arché, princípio único), que ironicamente concorda em significado com o modelo humano do período, na sua ausência (democracia — demos kratos, poder do povo), que também concorda com o que se tem hoje. Não há mais um princípio no sentido de modelo humano, há o poder. E o poder atua no teatro da ideologia política — não da teoria/princípio legitimador(a).

Retornando à linha dos fatos, é importante ressaltar que a necessidade finalística sobre a história não tem uma relação de necessidade lógica com o modelo humano. Ainda assim, o modelo antigo foi o mais próximo de incentivar a rejeição dessa ordem, tendo em vista a sua conjunção com um mythos que não dá o destino nas mãos de deus(es), mas das moirai. E os destinos são quase sempre enfrentados, não aceitos e imanentizados.

Assim, a relação de princípios, modelos humanos e grau de secularização tem uma tendência evidente, mas não necessária. Não é possível admitir aqui uma lei nomológica. O que ocorre aqui é a necessidade de vitória sobre a infeliz demanda finalística que resulta nos desastres imanentizadores. Como diria Voegelin, “não imanentize o eschaton”. Em sentido amplo, cabem aqui os alertas de Karl Popper sobre o utopianismo, que toma o papel do eschaton como fim da história.

O tipo errado de racionalismo é aquele que leva ao Utopianismo. […] Eu considero o que chamo de Utopianismo uma teoria atrativa e, de fato, atrativa demais; mas eu também considero que é perigosa e perniciosa. É, eu acredito, auto-destrutiva e leva à violência. (Karl Popper)

--

--